segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Sistema de Montado




A seguir à II Guerra Mundial há uma mudança radical na agricultura de todo o mundo, que chega a Portugal mais pelos anos 50. Houve uma simplificação dos processos com a revolução industrial e ao mesmo tempo uma intensificação da produção, que tem que ver com a fome que nós criámos, a destruição do aparelho produtivo e com a necessidade de produzir mais. E estas duas tendências começaram a ser aplicadas pelo meu avô.

Desmonta-se o sistema agrícola que tivemos durante pelo menos 800 anos, a que chamamos “montado”. É um sistema definido por uma complexidade enorme de culturas e de actividades em que existiam não apenas vacas, mas cabras, porcos, galinhas, frangos, perus.
E todo o tipo de cereais, em pequena escala, leguminosas, hortícolas. Havia sempre uma horta em cada monte, havia cultura da oliveira, a vinha, o forno de lenha.

O montado é uma história maravilhosa do nosso país.
Temos na Península Ibérica um clima muito especial, o mediterrânico, que só ocupa 2% do planeta e tem características muito importantes para a agricultura, com quatro estações muito marcadas.

Normalmente, na natureza, 1 cm de solo leva pelo menos 100 anos a formar-se, na Península Ibérica leva pelo menos 1000 anos. Nestes solos muito lentos e com um clima muito adverso, há um ecossistema que se estabelece aqui, milhares de anos antes de nós, e a natureza faz sempre a mesma coisa nestas circunstâncias: criar complexidade.

O que o Homo Sapiens encontrou na Península Ibérica foi um bosque cerrado, com uma complexidade de espécies que nós não fazemos ideia. Um esquilo podia ir de copa em copa de árvore desde Sagres até Barcelona. E o homem começa a criar uma coisa extraordinária, um agro-ecossistema, que é o montado.

É um sistema agrícola, com pelo menos três níveis: árvores, arbustos e pastagens. É um mosaico muito complexo de culturas e actividades (pecuárias, agrícolas, florestais), muitas domesticadas, mas interactuando com actividades silvestres como a caça, as plantas silvestres.

Há no montado processos de simbiose, de entreajuda, um porco que ajuda uma árvore e ajuda todo um sistema — com o nariz faz buraquinhos no solo e quando chove a água em vez de escorrer fica ali em microlaguinhos, cuja água se vai infiltrando para o lençol freático e a árvore vai ter a possibilidade de ir lá abaixo ao freático nos meses de Verão, bombear água cá para cima, criar uma zona húmida por baixo da copa da árvore, que faz com que os microrganismos não morram e com que o processo seja todo diferente.

Depois há a ecofuncionalidade: cada ser deste planeta tem muitas funções. E, ao contrário do que as pessoas pensam, há [no montado] muito mais biodiversidade do que numa floresta amazónica. É nos sítios difíceis do mundo que a natureza cria os maiores índices de biodiversidade, por causa da cooperação.

Quanto mais seres, mais conexões. Se eu só tenho vacas, elas só são capazes de comer uma parte da pastagem alta; se eu tiver ovelhas, elas comem mais um bocadinho abaixo; se eu tiver um peru, ele come a folhinha minúscula e o insecto que está ao lado; se eu tiver um porco, ele ainda come por baixo. Quanto mais dimensões, quanto mais ferramentas, melhor posso aproveitar os recursos.

Esse modelo permitiu-nos durante 800 anos construir um metro de solo fértil no Alentejo. Se fosse só a natureza, teria feito 1cm, nós fizemos 100 vezes mais.

O montado começou a ser destruído para se começar a usar o solo para produzir cereais, com uma crescente mecanização. Salazar manda fazer as campanhas do trigo, cortar as árvores e transformar em cereal aquele solo vivo, completamente autónomo, que não necessitava de adubos. É nesse período que o Alentejo se transforma no “celeiro de Portugal”. O Alentejo é a paisagem portuguesa que mais mudou nos últimos anos.

O resto dos recursos, o pouco solo que ainda havia, é gasto com uma mistura dos químicos quando Portugal entra para a Comunidade Económica Europeia (CEE). Portanto, nós hoje não temos montado. Dizemos que temos um milhão e cem mil hectares de montado... Não é verdade. Temos restos de uma estrutura abandonada.

As coisas funcionam bem numa lógica de cooperação competitiva, como existe na natureza.
Só acredito em responsabilidade colectiva com base em responsabilidades individuais.



Alfredo Cunhal Sendim
Herdade do Freixo do Meio
Foros de Vale Figueira
Montemor-o-Novo



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