segunda-feira, 30 de setembro de 2019

A única forma de perdão é o perdão pessoal





Sempre que se fala em infâncias difíceis, todos dizem que já perdoaram quem as magoou, alimentando assim a visão da Vítima/Carrasco.

Eu, com o passar dos anos, cada vez falo menos da minha infância.
Já senti muita necessidade de falar da minha infância, porque culpava muito os outros pela infância que tive. Punha-me muito no lugar da vítima, na maior parte das vezes, de forma inconsciente.

Até que, numa fase tardia já perto de fazer 40 anos, percebi que a única forma de perdão é o perdão pessoal.
Não há nada a perdoar nos outros.
Assim como já não dependo do perdão dos outros para seguir em frente.
Considerando que atraímos pessoas e situações, isso torna-nos co-responsáveis e co-criadores desses eventos. Dessa maneira, a proposta é perdoarmos o que um dia fizemos, num passado inconsciente que se materializou no evento presente.

Como diz a lei do Karma, se queremos saber o que fizemos, olhemos para o que recebemos.
Ou seja, quem nos faz “mal ou bem” vem apenas mostrar o que um dia saiu de nós, para que possamos escolher se queremos, com o nosso livre arbítrio, manter ou mudar a acção.
Julgar o outro como um fim é viver em ilusão, é projectar fora a nossa questão interna e adiar o verdadeiro processo pessoal de responsabilidade.

Ainda estou a aprender a viver de acordo com isto.
Não é fácil, e nem sempre consigo.
Por vezes, os pensamentos dificultam bastante.
Há dias em que é difícil olhar para o que de mais feio, triste, egoísta, violento e aparentemente injusto chegou à minha vida e perdoar a pessoa que fui, provavelmente numa vida passada.
Há dias em que é difícil aceitar que um dia dei vida a essas energias.
Aceitar que elas voltaram para que eu as olhe de maneira diferente e para que eu lhes dê uma resposta positiva.

Mas, ter consciência de todas estas dinâmicas já é um passo gigante em frente.
Porque, ao ter esta consciência, tenho a oportunidade de as neutralizar, libertando com humildade e sem julgar quem as veio devolver.
Por isso é tão importante focar apenas no nosso processo!
Os outros são apenas o Mensageiro!






OUTONO






Uma lâmina de ar
Atravessando as portas. Um arco,
Uma flecha cravada no Outono. E a canção
Que fala das pessoas. Do rosto e dos lábios das pessoas.
E um velho marinheiro, grave, rangendo o cachimbo como
Uma amarra. À espera do mar. Esperando o silêncio.
É outono. Uma mulher de botas atravessa-me a tristeza
Quando saio para a rua, molhado como um pássaro.
Vêm de muito longe as minhas palavras, quem sabe se
Da minha revolta última. Ou do teu nome que repito.
Hoje há soldados, eléctricos. Uma parede
Cumprimenta o sol. Procura-se viver.
Vive-se, de resto, em todas as ruas, nos bares e nos cinemas.
Há homens e mulheres que compram o jornal e amam-se
Como se, de repente, não houvesse mais nada senão
A imperiosa ordem de (se) amarem.
Há em mim uma ternura desmedida pelas palavras.
Não há palavras que descrevam a loucura, o medo, os sentidos.
Não há um nome para a tua ausência. Há um muro
Que os meus olhos derrubam. Um estranho vinho
Que a minha boca recusa. É outono
A pouco e pouco despem-se as palavras.



JOAQUIM PESSOA
in, GUARDAR O FOGO




Rui David feat. Manel Cruz - Sol da Primavera

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

The Long Shadow of Lincoln: A Litany



Laurence Winram





Be sad, be cool, be kind,
remembering those now dreamdust
hallowed in the ruts and gullies,
solemn bones under the smooth blue sea,
faces warblown in a falling rain.

Be a brother, if so can be,
to those beyond battle fatigue
each in his own corner of earth
      or forty fathoms undersea
      beyond all boom of guns,
      beyond any bong of a great bell,
      each with a bosom and number,
      each with a pack of secrets,
each with a personal dream and doorway
and over them now the long endless winds
      with the low healing song of time,
      the hush and sleep murmur of time.

Make your wit a guard and cover.
Sing low, sing high, sing wide.
Let your laughter come free
remembering looking toward peace:
“We must disenthrall ourselves.”

Be a brother, if so can be,
to those thrown forward
for taking hardwon lines,
for holding hardwon points
      and their reward so-so,
little they care to talk about,
their pay held in a mute calm,
highspot memories going unspoken,
what they did being past words,
what they took being hardwon.
      Be sad, be kind, be cool.
          Weep if you must
      And weep open and shameless
          before these altars.

There are wounds past words.
There are cripples less broken
than many who walk whole.
      There are dead youths
      with wrists of silence
      who keep a vast music
      under their shut lips,
what they did being past words,
their dreams like their deaths
beyond any smooth and easy telling,
having given till no more to give.

      There is dust alive
with dreams of The Republic,
with dreams of the Family of Man
flung wide on a shrinking globe
      with old timetables,
      old maps, old guide-posts
      torn into shreds,
      shot into tatters
      burnt in a firewind,
      lost in the shambles,
      faded in rubble and ashes.

      There is dust alive.
Out of a granite tomb,
Out of a bronze sarcophagus,
Loose from the stone and copper
Steps a whitesmoke ghost
Lifting an authoritative hand
In the name of dreams worth dying for,
In the name of men whose dust breathes
      of those dreams so worth dying for,
what they did being past words,
beyond all smooth and easy telling.

Be sad, be kind, be cool,
remembering, under God, a dreamdust
hallowed in the ruts and gullies,
solemn bones under the smooth blue sea,
faces warblown in a falling rain.

Sing low, sing high, sing wide.
Make your wit a guard and cover.
Let your laughter come free
like a help and a brace of comfort.

      The earth laughs, the sun laughs
over every wise harvest of man,
over man looking toward peace
by the light of the hard old teaching:
      “We must disenthrall ourselves.”



Carl Sandburg
in, The Complete Poems of Carl Sandburg









Expansão de Consciência





Todos conhecemos o fenómeno da expansão da consciência.

Para muitos talvez não ainda por este nome, mas sim quando nos referimos a termos como maturidade ou esperteza. Ou seja, há coisas que só entendemos ou somos capazes de sentir quando crescemos ou amadurecemos. Ou quando já conseguimos ter essa perspectiva. 
Por exemplo, podemos explicar a uma criança o que é uma paixão ou o estado de estar apaixonado, ou mesmo as sensações de fazer amor. Mas ela só as conseguirá sentir quando chegar o tempo dela. Quando ela passar pela própria experiência. A criança não é burra ou ignorante. Apenas ainda não passou pela experiência.

Por vezes a expansão de consciência não precisa de uma experiência física para nos levar mais longe no entendimento da nossa pessoa e da nossa vida.

Um livro pode trazer essa expansão de consciência e dar-nos respostas que nunca havíamos considerado antes. Respostas essas que para serem aceites tiveram que ser substituídas pelas velhas crenças que nos mantinham no velho. Tive o privilégio de poder observar centenas de pessoas a fazer mudanças positivamente radicais nas suas vidas, apenas pela mudança de perspectiva quanto às suas realidades.
Por exemplo aplicando a Lei da Atracção, considerando que a pessoa que nos está a trazer um determinado desafio ou dor não é um simples carrasco, mas alguém que esconde uma oportunidade de elevarmos a nossa energia e de superarmos algo em nós. Uma maneira bem diferente, e mais desafiante, do que a antiga vitimização certo?

Usando uma simples metáfora,
são os dragões que farão de nós Heróis. 
Ou noutro exemplo, ao ler a biografia de alguém que passou por determinados desafios e por causa desses desafios é hoje uma pessoa inspiradora e cheia de luz e paz, pode-nos confrontar interiormente com a nossa vida e respectivos bloqueios, mentiras pessoais e estado geral energético e emocional. Esse livro irá-nos fazer lembrar que algo dentro de nós busca essa mesma transformação e que sem ela não haverá libertação. Esse livro será assim um agente de transformação e expansão de consciência.

Todos sabemos a força que as crenças podem ter em nós e o quanto podemos ser vitimas delas. Tanto do apego às nossas próprias como sendo alvo das dos outros sobre nós.

Ficar preso, resistir ao novo, lutar contra o diferente, estar fechado perante o oposto mantêm-nos numa velha e desactualizada área de conforto, e tal como a criança se não sair dela nunca irá experienciar o amor e a paixão, também nós nunca iremos experienciar estados mais elevados de ser e viver e relacionar e amar e superar, e entender e tanto e tanto mais até descobrirmos que afinal, por baixo de todos aqueles bloqueios, estava desde sempre um maravilhoso, livre, sábio e amoroso Ser de Luz.

Cada vez que saímos da zona de conforto ou segurança, estamos a expandir a nossa consciência, estamos a esticar o elástico da nossa percepção, estamos a ter uma atitude cósmicamente inteligente, estamos a dar uma prova de amor próprio e de Fé à Vida. E essa mesma Vida aplaude e devolve sempre esses mesmos actos de coragem. O brilho interior e o estado de contentamento são apenas dois dos variadíssimos efeitos secundários. Passamos a entender melhor o que nos acontece sob uma lógica Sagrada, tornamo-nos mais tolerantes e amorosos, conseguimos ver os sinais invisíveis que chegam até nós das mais variadas maneiras e aos poucos vamos conseguindo afastarmo-nos do drama, e ver como tudo afinal não é mais do que um teatro para o jogo energético que escondemos dentro de nós.

Aos poucos vamos saindo da limitada visão 3D do nosso ego, vamo-nos livrando do colete de forças mental, e conseguiremos aceder a mais elevadas e fascinantes dimensões da nossa realidade.



Vera Luz



Dengaz - Para Sempre (Unplugged) ft. Seu Jorge

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Casa


Montserrat Diaz





durante a noite
a casa geme agita-se aquece e arrefece
no interior frio do olho da tua sombra sentada
na cadeira aparentemente vazia

esperas acordado sem sono
que a temperatura da casa funda
com a temperatura incerta do mundo
depois
escreves exactamente isto: o horror dos dias
secou contra os dentes - e rouco
dobrado para dentro do teu próprio pensamento
ferido
atravessas as sílabas diáfanas do poema

levantas-te tarde
atordoado
para extinguires o lume ateado
junto à memória da casa - respiras fundo
para que o gelo derreta e afogue
a vulgar noite do mundo

olhas-te no espelho
atribuis-te um nome um corpo um gesto
dormes
com a árvore de saliva das ilhas - com o vento
que arrasta contigo esta chuva de fósforo e
estes presságios de tranquilos ossos




Al Berto
in, Horto de Incêndio





Torus





The Torus or primary pattern, is an energy dynamic that looks like a doughnut – it’s a continuous surface with a hole in it. The energy flows in through one end, circulates around the center and exits out the other side. You can see it everywhere – in atoms, cells, seeds, flowers, trees, animals, humans, hurricanes, planets, suns, galaxies and even the cosmos as a whole. 
– Nassim Haramein




sábado, 21 de setembro de 2019

ADEUS





Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.



EUGÉNIO DE ANDRADE
in, OS AMANTES SEM DINHEIRO





As formas doentias de viver o amor


Mario Haberl






Os jovens são mais propensos a apaixonar-se intensamente e de forma imoderada.
O cérebro adolescente é ainda imaturo, há uma discrepância entre o desenvolvimento intelectual e o emocional, e é frequente não conseguirem analisar e controlar o que sentem. Essa discrepância também acontece ao nível do crescimento emocional e físico: um adolescente pode ser sexualmente maduro, mas não ser capaz de lidar com um relacionamento sexual. Quando experimenta um sentimento de rejeição, é comum não conseguir gerir as emoções envolvidas.

“to fall in love”, ou seja, cair...

As descrições da experiência passam efetivamente por essa sensação de cair, de ser incapaz de exercer controlo sobre as suas emoções e os seus sentimentos. Com isto não quero dizer que o amor acaba em loucura, pode até ser muito gratificante. Mas se vivido de forma extrema, conduz a mudanças no comportamento e na personalidade e, por vezes, a estados emocionais próximos dos que encontramos na doença mental. Romanos e gregos viam no amor uma coisa boa, mas com um potencial disruptivo que devia ser levado a sério.

A idealização.
Amar perdidamente e adoecer de amor é um mecanismo que está ligado ao conjunto de crenças acerca do que é o romance, algo profundamente enraizado na cultura ocidental, que assenta na ideia de que a pessoa que amamos deve ser perfeita e, como tal, deve ser idealizada, seja uma mulher por ser bonita ou um homem como um ser mais nobre ou generoso do que na realidade é.
Idealizar é ignorar ou negar os lados menos simpáticos e até sombrios de alguém.
Ninguém é totalmente bom, ou bonito, ou perfeito. Todos temos falhas, lados maus, características menos atrativas, é algo que faz parte da natureza humana.
O romance implica virar costas ao que é negativo, e isso conduz a estados de infelicidade e desilusão.
Quanto mais se distorce a perceção do mundo na tentativa de reduzir o desconforto e a ansiedade, mais vulnerável se fica à perda de contacto com o real.
O romance é uma fantasia, uma ilusão do amor verdadeiro.
Ora, este passa por amar a pessoa tal como ela é, sem idealizar.

O amor à primeira vista tem uma base evolutiva.
Os nossos antecessores precisavam de viver em casal, durante três ou quatro anos, para ajudar a criar a ganhar maturidade cerebral e corporal suficiente para sobreviver. Após estes quatro anos, em média, a paixão perde importância. Curiosamente, é também nesta altura da vida conjugal que se registam mais divórcios, ainda que nem todos os casais se separem!
Tomamos decisões sem ficar escravos das emoções e da nossa herança evolucionista.
No início da paixão, somos escravos do amor, sentimos atração sem ter coisas em comum nem gostar realmente da outra pessoa. Quando se diz “vimo-nos e logo ali percebemos que estávamos destinados a ficar um com o outro”, estamos a falar de desejo físico mútuo, não de amor.
Só mais tarde é que o amor se converte numa escolha – está-se com alguém sem se ser refém do desejo.

Muita gente perde o interesse sexual ao fim de algum tempo de convivência.
É preciso haver algo mais do que sexo para manter um relacionamento.
É bastante invulgar um relacionamento de longa duração ser inteiramente sustentado pelo sexo.
Há muitos casais a optar por não terem sexo, mas existem razões de peso para que ele tenha lugar na vida conjugal: é uma fonte de prazer, reforça a ligação íntima e promove a saúde mental pela vida fora.
Quem não tem sexo tende a ter menos saúde a nível psicológico.
No limite, pessoas com tendência suicida tendem a não ter sexo ou têm menos sexo do que os não suicidas.
A adição sexual não é muito diferente da adição química, associada às drogas recreativas.
Um viciado em sexo procura, vezes sem conta, obter o prazer químico que a atividade proporciona.

Todos achamos que somos menos vulneráveis do que realmente somos.
O romantismo faz parte da nossa cultura.
Tudo depende da forma como o encaramos.
Pode ser algo emocionante ou assustador.

É essencial que saibamos que, na paixão, estamos a desfrutar de uma experiência, como andar numa montanha-russa: é apaixonante, mas não passa de uma experiência.
Quando o romance se confunde com a realidade, isso é um delírio.
Acreditar que só há o marido ou a mulher na vida, que o destino de ambos é estarem juntos, ou que o cônjuge está a ser infiel, pode ser devastador. Viver com isto não é tão incomum, mas é intolerável e um problema com o qual é difícil lidar.
Mais saudável é não alimentar fatalismos, admitir desde logo que ambos estão ali para resolver problemas em conjunto, numa base diária.
Parte do problema associado ao romantismo é que pressupõe que as pessoas se percam uma na outra.
Diz-se que “o amor é a resposta”: não é.
Desiluda-se quem pensar que sim.
Um relacionamento significativo é muito importante nas nossas vidas mas não é tudo, há que dar atenção aos filhos, familiares, amigos, trabalho, interesses pessoais...

Todos somos estranhos na nossa privacidade.
Desde que não se cause danos na esfera íntima e haja consenso, não deve haver julgamentos acerca do que é, ou não, normal.


Frank Tallis





sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Once the world was perfect


Alexis Pifou




Once the world was perfect, and we were happy in that world.
Then we took it for granted. 
Discontent began a small rumble in the earthly mind.
Then Doubt pushed through with its spiked head.
And once Doubt ruptured the web,
All manner of demon thoughts
Jumped through -
We destroyed the world we had been given
For inspiration, for life -
Each stone of jealousy, each stone
Of fear, greed, envy, and hatred, put out the light.
No one was without a stone in his or her hand.
There we were, 
Right back where we had started.
We were bumping into each other
In the dark.
And now we had no place to live, since we didn’t know
How to live with each other.
Then one of the stumbling ones took pity on another
And shared a blanket. 
A spark of kindness made a light.
The light made an opening in the darkness.
Everyone worked together to make a ladder.
A Wind Clan person climbed out first into the next world,
And then the other clans, the children of those clans, their children, 
And their children, all the way through time -
To now, into this morning light to you.


Joy Harjo
in, Conflict Resolution for Holy Beings: Poems





Which way is the frontline from here? - The Life and ...

                                           



Onde é a Linha da Frente? A Vida e a Obra de Tim Hetherington


Tributo ao malogrado fotojornalista de guerra e cineasta Tim Hetherington e ao legado que deixou.

Um retrato comovente do aclamado e premiado fotojornalista e cineasta britânico Tim Hetherington, morto na Líbia quando fazia a cobertura do conflito. A 20 de Abril de 2011, pouco depois da estreia do seu documentário ‘Restrepo’ sobre a guerra no Afeganistão e apenas seis semanas após ter estado presente na cerimónia dos Óscares como nomeado, o fotógrafo Tim Hetherington foi morto num ataque de morteiro na cidade de Misurata, onde fazia a cobertura da guerra civil líbia.

Tim morreu a caminho do hospital, confortado por um fotojornalista espanhol. Foi o final de uma brilhante carreira de 10 anos na qual Hetherington reportou histórias dramáticas na linha da frente dos conflitos. Da Libéria à Líbia, passando pelo Afeganistão, Tim procurou captar a humanidade em situações de conflito, registando uma sensação de intimidade que contrastava com a violência em redor.

O que mais me impressionou no documentário foi, as razões que levam militares e fotojornalistas de guerra a gostarem de viver em cenários de guerra.
Para eles, o anormal é regressar a casa.
O normal para eles é viver em cenário de guerra, não pela pátria, mas sim o viver em grupo e proteger o grupo até à morte. É isso que eles gostam, é isso que os faz querer voltar.

Tim Hetherington, depois da guerra do Afeganistão decidiu não voltar mais a cenários de guerra mas, estava viciado e não conseguiu fazer outro tipo de fotografia.
Voltou e, morreu.









quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Untitled






No matter the rush of undertow 
everything else is still 
here. I scrawl your name 
at the bottom of the river 
I sing it and it sings me 
back. What I’d give for a name 
so keen     it whittles 
the valleys of my neck. I’m forever drenched 
in this night, and you 
no longer exist. The river catches 
the sky’s black, ink 
meant to preserve a memory. I stay 
because it’s easy. Here. I relive 
what you did to me, find myself again 
in the water - swollen and sullen 
as a bruise. I trace 
and retrace, graffiti
every river’s bank, drown 
into ecstasy 

instead of moving on with my life. 
I wear what you did to me 
like gills, a new way to breathe. 
I jump into the river 
for days. I forget I have lungs at all.


Noor Ibn Najam




The Double Standard of Aging





Women have another option. 
They can aspire to be wise, not merely nice; to be competent, not merely helpful; to be strong, not merely graceful; to be ambitious for themselves, not merely for themselves in relation to men and children. 
They can let themselves age naturally and without embarrassment, actively protesting and disobeying the conventions that stem from this society’s double standard about aging. 
Instead of being girls, girls as long as possible, who then age humiliatingly into middle-aged women, they can become women much earlier – and remain active adults, enjoying the long, erotic career of which women are capable, far longer. 
Women should allow their faces to show the lives they have lived. 
Women should tell the truth. 

Susan Sontag





segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Antes de Adormecer






"Durante o sono, a minha mente apagará tudo o que fiz hoje. Amanhã acordarei como acordei hoje de manhã. A pensar que ainda sou uma criança. A pensar que tenho toda uma vida de escolhas pela frente…"

As memórias definem-nos.
O que acontece se perdemos as nossas memórias cada vez que adormecermos?
O nosso nome, a nossa identidade, o nosso passado, até mesmo as pessoas de quem gostamos - tudo perdido numa noite. E a única pessoa em quem confiamos poderá estar a contar-nos apenas metade da história.
Bem-vindos à vida de Christine.

O conceito do livro é aterrador:
Christine, de 47 anos, desenvolveu uma forma de amnésia que se caracteriza pela impossibilidade de armazenar memórias após adormecer num sono profundo.
Todas as manhãs, ela acorda deitada numa cama com um homem que ela não sabe quem é, o seu marido Ben, e tem de reaprender toda a sua história através de álbuns de fotografias e do que o seu marido lhe conta.
Todas as manhãs acorda a julgar, na maioria das vezes, ter apenas 20 anos, outras vezes a achar que é ainda criança. Tudo porque sofreu um acidente com um traumatismo cerebral que a deixou em estado de amnésia.
Todos os dias da sua vida acorda junto de um desconhecido que diz ser seu marido e reaprende novamente a sua história e o que perdeu nos últimos anos.
Não há um único dia em que Christine não tenha que se familiarizar com Ben, com a sua casa e até consigo mesma (várias são as passagens do livro, em que ela se olha ao espelho, incrédula com o que vê!)

Christine é contactada por um médico, Dr. Nash, que pretende realizar um estudo sobre o caso dela e consequentemente ajudá-la a restituir a sua memória. Desta forma, sugere-lhe que comece a escrever um diário onde possa registar o que faz ao longo dos seus dias e o que descobre ou se lembra ao longo dos mesmos.

Achei muito interessante este trecho do livro em que o Dr Nash explica a Christine o que é a amnésia:

“- A memória é uma coisa complexa – diz o Dr Nash. – Os seres humanos possuem uma memória de curto prazo que consegue armazenar factos e informação durante um minuto, mas possuem também uma memória de longo prazo. Aí conseguimos armazenar quantidades imensas de informação e retê-las durante um período de tempo aparentemente indefinido. Hoje em dia sabemos que estas duas funções são aparentemente controladas por partes diferentes do cérebro que partilham algumas ligações neurais. Há igualmente uma parte do cérebro que é aparentemente responsável por reter memórias de curto prazo, passageiras, e por as codificar como memórias a longo prazo, para serem recuperadas mais tarde.
Há dois tipos principais de amnésia – diz ele. – No mais comum a pessoa afectada não consegue recordar acontecimentos passados e aqui os acontecimentos mais recentes são os mais gravemente afectados. Portanto, se, por exemplo, quem sofre de amnésia teve um acidente de viação, pode não se lembrar do acidente, ou dos dias ou semanas que o precedem, mas consegue lembrar-se perfeitamente bem de tudo até ao acidente, ou na pior das hipóteses até seis meses antes do acidente.
O outro tipo de amnésia é mais raro. Às vezes há uma incapacidade de transferir memórias do armazenamento de memória a curto prazo para o armazenamento a longo prazo. As pessoas com este problema vivem no momento, só são capazes de recordar o passado imediato e então apenas durante um curto espaço de tempo.
A Christine sofre de ambos, uma perda de memórias que tinha, além de uma incapacidade de formar memórias novas.”


O marido nem sonha que ela anda nas consultas com o Dr. Nash e que está a escrever um diário onde regista tudo o que vai descobrindo sobre si, porque é contra novos tratamentos alegando que são inglórios e que só a desestabilizam.
Mas, a verdade é que o Ben não lhe conta a verdade sobre certos acontecimentos...não quer que ela recupere a memória, e vai manipulando a situação de acordo com os seus interesses pessoais.
E por isso, todas as manhãs o Dr. Nash telefona para um telemóvel que deu a Christine, a dizer quem é e a revelar-lhe o sítio onde ela esconde o diário. Todos os dias de manhã ela lê o diário para saber quem é. No entanto, esse diário tem muita informação falsa dada pelo seu marido Ben…

O poder de contar a uma pessoa com amnésia, apenas o que lhe convém, manipulando a situação e a história a teu favor...

O livro, contado na primeira pessoa, e sob a forma de diário, deslinda os vários aspectos sobre a protagonista, que até a própria desconhece. Os próprios registos do diário variam, quer em profundidade e interesse das revelações, quer em extensão dos mesmos. O problema de uma pessoa amnésica é que... alguns relatos repetem-se, e o sofrimento em relação a esses relatos é sempre como se fosse a primeira vez a saber.

A vida de Christine é uma intensa espiral de acontecimentos, descrita ainda que de forma manipulada pelo Ben. Além de se focar nos aspectos da vida da protagonista, o autor pormenoriza os cenários ou descrições físicas e estados de espírito das personagens, o que ainda torna o livro mais interessante.


  • O que sentir em relação a uma pessoa amnésica?
  • Como lidar com pessoas nesta situação, em que todos os dias fazem as mesmas perguntas, e se tem de contar a mesma história todos os dias?
  • Como contar todos os dias a uma pessoa que o filho morreu na guerra, e ver a pessoa a sofrer brutalmente a perda de um filho todos os dias como se fosse a primeira vez a receber a notícia?
  • Como gerir os sentimentos com uma pessoa que não se lembra de nós, muito menos do amor que sentíamos antes de ter ficado amnésica?
  • Como ter uma vida sexual com um marido que não se lembra que tem, e por quem não sente nada?


Não temos informação suficiente para sentir além de pena.
Conhecemos a Christine apenas através do seu diário.
Os reduzidos fragmentos de memória desta personagem fizeram com que a mesma ficasse isenta de qualquer sentimento relativamente aos poucos que a rodeiam.


Este é um dos relatos que ela faz no livro em relação ao que sente ao olhar-se ao espelho:

“ Está outro dia a terminar. Em breve dormirei e o meu cérebro começará a apagar tudo. Amanhã tornarei outra vez a passar por tudo isto. Apercebi-me de que não tenho ambição. Não posso ter. Tudo quanto quero é sentir-me normal. Viver como toda a gente, com uma experiência, com cada dia a dar forma ao dia seguinte. Quero crescer, aprender coisas e aprender com as coisas. Aqui, na casa de banho, penso na minha velhice. Tento imaginar como irá ser. Ainda acordarei, com os meus oitenta anos, a julgar-me no início da vida? Acordarei sem fazer ideia de que os meus ossos estão velhos, as articulações rígidas e pesadas? Não consigo imaginar como aguentarei quando descobrir que a minha vida já passou, que já aconteceu, e que não tenho nada para mostrar do que fiz. Não tenho nenhuma reserva de recordações preciosas, nenhuma riqueza de experiências, nenhuma sabedoria acumulada para legar.
Que somos nós, senão uma acumulação das nossas memórias?
Como me sentirei, quando olhar para um espelho e vir o reflexo da minha avó?
Não sei, mas agora, não posso permitir-me pensar em tal coisa.”

Outro relato dela:

“ Tinha escrito que era como estar morta. Mas isto? Isto é pior. Isto é como morrer todos os dias. Vezes e vezes repetidas. Não consigo imaginar-me a continuar assim por muito mais tempo. Sei que vou adormecer à noite, e amanhã de manhã acordarei sem saber de nada outra vez e a descobrir tudo como se fosse pela primeira vez, a sofrer tudo como se fosse a primeira vez. E assim será no dia seguinte, e no seguinte, eternamente. Não consigo imaginar viver assim. Não é vida, é apenas uma existência, a saltar de um momento para o seguinte, sem qualquer ideia do passado e sem plano nenhum para o futuro. É como eu imagino que devem ser os animais. O pior é que nem sequer sei o que é que não sei. Talvez existam montes de coisas, à espera para me magoarem e fazerem sofrer. Coisas com que eu ainda nem sonhei sequer.”

Continuamente ela tenta definir e emendar a sua própria identidade. Uma mulher que apresenta demasiadas fragilidades e de facto, tudo o que possamos reter a partir do seu diário, e sentir pela protagonista, é uma sentida compaixão pela mesma.
Em relação às restantes personagens, fui constantemente invadida por um sentimento de empatia/dúvida em relação a Ben, que aparenta ser o marido dedicado, ou ao Dr. Nash que ostenta ser o médico profissional de que Christine tanto precisa. E de Claire, a melhor amiga de Christine, que lhe perdeu o rasto há 4 meses atrás… e o Dr. Nash consegue de novo o seu contacto de forma a que as duas se possam reencontrar. Nesse reencontro, muitas revelações são feitas e mudam drasticamente o desenvolver da história.

Conhecemos as personagens através dos relatos da protagonista, e tal como ela, a cada registo do diário é feita uma reformulação, ainda que igual, da identidade de cada personagem.
Este livro é um clássico exemplo de que quatro personagens é o suficiente para se contar uma excelente história.

Um livro cativante, tenso, intrigante, dotado de uma dose de tensão psicológica elevadíssima, provocando uma sensação quase como claustrofóbica. A isto ainda acrescento um desfecho, inesperado, que eu nem sequer tinha equacionado!

Gostei bastante da história, desde o primeiro instante, em que constatamos a angústia da Christine por se ver num corpo que desconhece mais envelhecido, por viver num mundo que lhe é estranho, até ao momento em que começa a registar num diário os seus dias. Senti uma grande ligação com ela, não só por ser um livro escrito na primeira pessoa, mas também porque ficava contente com as suas vitórias, pelo facto de ela conseguir dia para dia, descobrir um pouco mais sobre si mesma. Senti por diversas vezes pena dela porque certamente não é fácil acordar todos os dias a sentir que anos da nossa vida foram roubados e que não nos lembramos das pessoas que mais deveríamos amar. Achei-a uma personagem interessantíssima, não só pela sua condição, mas pela forma como encarava a vida e as pessoas que a rodeavam, pois nunca sabia em quem podia ou não confiar.
Deve ser complicado viver sem saber em quem confiar, e com a sensação que todos lhe estão a mentir, com a suposta desculpa que é para a proteger.

E, o facto de o livro ser escrito, na sua maioria, em forma de diário, tornou-o ainda mais interessante porque faz-nos quase sentir como se tivéssemos na pele da personagem principal e sentirmos as suas vitórias, medos e descobertas quase como nossas.


  • Como será viver a saber que vai dormir e amanhã não recordará nada...???
  • Como será acordar todos os dias e não reconhecer o rosto que
  • nos retribui o olhar no espelho?
  • Como será o vazio de não sabermos quem somos, onde estamos e quem são as pessoas que nos rodeiam?
  • Como será não conseguir reter rostos ou nomes dos que nos rodeiam, dos que fazem parte do nosso passado e presente. Pior que isso, não se recordar dos momentos que nos trouxeram até ao dia de hoje nem de como foi o dia de ontem. Uma coisa tão simples como o dia de ontem?


É arrepiante pensar que o que sabemos de nós mesmos nos é contado por outra pessoa e que sem essa ajuda não seriamos nada. E saber que a versão dos eventos na boca dos outros nunca é a mesma que dita por nós, por mais semelhante que seja.
Até que ponto, o que nos dizem corresponde à verdade?

Este livro dá sentido à frase "viver um dia de cada vez" porque a Christine só tem mesmo isso, o dia de hoje para aprender todo o passado enquanto está a tentar se situar no presente.
Com um passado e um futuro pela frente, Christine vive cada dia como se este fosse o primeiro e o último, não por vontade própria, mas por motivos de amnésia, onde sempre que adormece, quando acorda a sua memória fica limpa, não consegue reter a sua memória após o sono.

Christine começa a ter alguns flashes de memória, recorda certos momentos, acredita e fica com vontade de cada vez saber mais e mais. E o querer saber mais, recordar-se de mais, acreditar num filho que lhe dizem todos os dias estar morto, acreditar num casamento, num mundo que a rodeia que não existe, ou que poderá mesmo ter existido… pode levá-la a descobrir que isto pode ser o seu fim.

Quanto mais avançava ao longo das 345 páginas, mais certezas eu ia criando que o Ben era um marido que a usava para ter residência europeia; um marido que lhe administrava drogas para não conseguir reter memórias e assim mantê-la perdida e afastada dos seus planos; um marido infiel, ou com segredos que ela descobriu e que por isso ele a atacou até ficar sem memória, e arrependido cuidava dela mas não queria que ela se lembrasse do que ele tinha feito no passado; um marido que por ciúmes a atacou e é responsável por ela ter perdido a memória, etc etc…
Mas na realidade não foi o que aconteceu.
O final é viciante…e inesperado.

Ela foi infiel ao marido Ben, quando o filho deles, o Adam tinha 2 anos, que não sabia que ela tinha um amante, e num desses encontros com o amante Mike num quarto de hotel ela decide acabar com a relação. O amante Mike era psicopata, ciumento e possessivo, não aceitou e atacou-a, deu-lhe um porradão e tentou afoga-la na banheira. Depois, quando pensou que ela estava morta foi embora. Mais tarde descobriu que recuperou os sentidos e foi encontrada toda nua no meio da estrada sem saber quem era e onde estava.
O marido Ben, perdoou-lhe a traição e cuidou dela mas, a situação agravou-se, ela tinha crises fortes e teve de ser internada num hospital psiquiátrico. Quando o marido ia lá visitá-la com o filho Adam de 2 anos, ela não se lembrava deles e ficava muito alterada e tinha crises, e quando não a visitavam ela ficava calma e muito sociável, e por isso o marido Ben decidiu pedir o divórcio por achar que seria melhor para ela. Deixou de a visitar e foi trabalhar para outro país. O filho Adam casou-se e foi viver para outra cidade longe de Londres onde ela estava internada. E a amiga Claire perdeu-lhe o rasto quando ela mudou de hospital. Ou seja, ela passou a não ter visitas no hospital. Foi quando o antigo amante Mike passou a visitá-la no hospital fazendo-se passar pelo marido Ben. Tirou-a do hospital, levou-a para casa e inventou uma vida de mentira para a forçar a ficar com ele, dizendo-lhe que eram casados, que tiveram um filho que morreu na guerra do Afeganistão. Por isso ele não queria que ela tivesse consultas com nenhum médico para não recuperar a memória e descobrir que ele não era o marido Ben, mas sim o antigo amante Mike que a atacou e a tentou matar.

No fim, com a ajuda do diário e da amiga Claire, que lhe contou a verdade, descobriu que a descrição do suposto marido não correspondia ao Ben, e que o filho Adam estava vivo, casado e a viver numa cidade longe de Londres, as duas ligaram os pontos e descobriram que o homem que vivia com a Christine era um homem desconhecido que se fazia passar pelo marido Ben.
Quando chega a casa, o ex-amante já tinha descoberto o diário escondido no armário, leu e descobriu o que ela sabia através da leitura do diário todos os dias.
Decide levá-la para o mesmo quarto de hotel onde a atacou da primeira vez, queima o diário à frente dela para ela não ter como saber o que descobriu, e tudo voltar ao normal no dia seguinte. O problema é que a amiga Claire sabia da verdade e não podiam voltar para casa. Então decide matar a Christine da mesma forma que fez naquele quarto de hotel há 20 anos atrás. Ela luta para se libertar, o quarto pega fogo, o Mike morre no incêndio e ela é salva pela amiga Claire que foi lá com o Dr. Nash à procura dela. Com o porradão que levou e as pancadas na cabeça, recuperou a memória e no hospital é visitada pelo filho Adam e pelo marido Ben.

O livro foi escrito em 2008, e em 2014 foi lançado o filme baseado nesta história, realização de  Rowan Joffe; o elenco com  Nicole Kidman, Colin Firth, Mark Strong.



Eu já tinha visto dois filmes que abordam esta questão de pessoas com amnésia:
O “Memento” e “O Regresso de Henry”.
E fiquei muito impressionada ao saber que não é ficção, que é real, e que muitas pessoas vivem assim as suas vidas, sem saberem quem são.
O “Memento” é um  filme norte-americano de 2000, escrito e dirigido por Christopher Nolan, baseado no livro "Memento Mori" do seu irmão, Jonathan Nolan. É um filme que se desenrola de trás para a frente, e conta a história de Leonard Shelby, um homem que sofre de amnésia, impossibilitando que ele adquira novas memórias de coisas que acabaram de acontecer. As cenas iniciais do filme, (que mostram o final da história) Leonard é visto a matar Teddy (Joe Pantoliano). O filme sugere que essa morte foi uma vingança pelo estupro e assassinato da sua mulher (Jorja Fox) baseado na informação dada por Natalie (Carrie-Anne Moss).
Como Leonard explica, o seu problema é resultado de um ataque feito por dois homens em sua casa. Leonard matou o homem que estuprou e estrangulou a sua esposa; porém, o segundo homem bateu-lhe na cabeça e fugiu. A polícia não acreditou que havia um segundo homem na casa, porém Leonard acredita que o homem era branco cujo primeiro nome era John e seu sobrenome começava com a letra G.
O filme é muito usado para mostrar a diferença entre enredo e história. Os eventos são separados em duas narrativas: uma a cores, e a outra a preto e branco. As sequências a preto e branco são apresentados em ordem cronológica, mostrando Leonard a conversar com um desconhecido pelo telefone num quarto de motel. A investigação de Leonard é mostrada nas sequências a cores, que são apresentadas em ordem reversa. No momento que cada sequência começa, o público não sabe os eventos precedentes, do mesmo modo que Leonard deixa o espectador com a sensação de confusão. No fim do filme as duas narrativas convergem e nós entendemos a investigação e os eventos que levaram à morte de Teddy.
Este deve ser o tipo de desorientação que se sente quando se é amnésico…onde nada faz sentido, e não se pode confiar em ninguém.
É um filme do caraças, que não se esquece!
Muitos especialistas médicos citaram Memento como a mais realista e fiel representação de amnésia anterógrada em filme. O neurocientista Christof Koch, da Caltech, chamou Memento de "a representação mais fiel dos diferentes sistemas de memória na mídia popular", enquanto a física Esther M. Sternberg identificou o filme como "uma exploração quase que perfeita da neurobiologia da memória", concluindo que "Memento é um filme para qualquer um que esteja interessado no funcionamento da memória e, na verdade, que faz a nossa realidade".
A neuropsicóloga Sallie Baxendale escreve, "Diferente dos outros filmes do género, o personagem com amnésia mantém a sua identidade, possui uma pequena amnésia anterógrada e mostra várias das dificuldades do dia-a-dia da desordem. A fragmentada, quase mosáica qualidade das cenas do filme também reflete a natureza "perpetual do presente do síndrome".
Brutal, o filme!

O Regresso de Henry, com o actor Harrison Ford, conta a história de Henry Turner, um bem sucedido, implacável, arrogante e egoísta advogado de Nova Iorque, que precisa de ganhar cada caso a todo o custo, mesmo que signifique sacrificar a vida familiar com a mulher e a filha. Mas um único tiro na cabeça durante um assalto põe fim à vertiginosa vida de Henry, deixando-o fisicamente incapacitado e sem memória da vida que costumava levar. Depois, confrontado com a necessidade de começar de novo, Henry Turner aprende a dura verdade sobre alguém que lhe é totalmente estranho... ele próprio. E transforma-se num homem novo, mais atencioso e dedicado à família.







A PRENDA


Alexander Jansson 
Mr. Puppethead




O menino
recebeu a dádiva.

Era o seu dia, assim disseram.

Estranhou:
os outros dias não eram seus?

Se achegou.
Espreitou.

A oferenda,
era coisa nenhuma
que nem parecia existir.

– O que é isso?, perguntou.
– É uma prenda, responderam.

Que prenda poderia ser
se tinha forma de nada.

– Abre.

Abrir como
se não tinha fora nem dentro?

– Prova.

Como provar
o que não tem onde se pegar?

Olhou melhor.
Fixou não a prenda,
mas os olhos de quem a dava.

Foi, então:
o que era nada
lhe pareceu tudo.

Grato,
retribuiu com palavra e beijo.

O que lhe ofereciam
era a divina graça do inventar.

Um talento
para não ter nada.

Mas um dom
para ser tudo.



Mia Couto
in, “Vagas e Lumes“





sexta-feira, 13 de setembro de 2019

DÁ-ME





Dá-me um cavalo uma alma uma nave
Algo que voe ou galope ou navegue
E seja azul ou de outra cor mas leve
No seu vagar qualquer coisa que lave

Dá-me uma curva um espelho uma pausa
Algo que brilhe e demore e seduza
E se transforme ao ar em luz difusa
Ou nada ou coisa que não tenha causa

Dá-me um comboio um apito um berlinde
Algo que parta ou que role ou decida
E ao passar perto da hora perdida
Nos traga a rima precisa de brinde

Dá-me um baloiço um esquadro uma vez
Algo que meça que oscile que seja
Uma surpresa o gesto que se beija
A última loucura que se fez

Dá-me um segredo uma cor uma uva
Algo que importe ou se cheire ou escorregue
(mas não tropece nem ceda nem negue)
Por entre dedos ou gotas de chuva

Dá-me uma febre um papel uma esquina
Algo que rasgue ou se dobre ou estremeça
E que se esconda e mais tarde apareça
Sombra de vulto subindo a colina

Dá-me um arco que seja íris
Dá-me um sonho que seja doce
Dá-me um porto que tenha barcos
Dá-me um barco que nunca fosse
Dá-me um remo
Dá-me um prado
Dá-me um reino
Dá-me um verso
Dá-me um cesto
Dá-me um cento

Dá-me só
Um universo


MÁRIO DOMINGOS
in, O DESPERTAR DOS VERBOS





Nikola Tesla





Perhaps 
what Nikola Tesla calls "the core" 
is what Nassim Haramein and others call 
the vacuum or space itself, 
otherwise known over time as: 
aether, 
plenum, 
zero point field, 
source field, 
quantum foam, 
creator, god or whatever you want to call 
the very fabric of the universe...




terça-feira, 10 de setembro de 2019

ÁGUA NOCTURNA





A noite de olhos de cavalo que tremem na noite
a noite de olhos de água no campo adormecido,
está nos teus olhos de cavalo que treme,
está nos teus olhos de água secreta.

Olhos de água de sombra,
olhos de água de fonte,
olhos de água de sonho.

O silêncio e a solidão,
como dois animais pequenos que a lua guia,
bebem nesses olhos,
bebem nessas águas.

Se abres os olhos,
abre-se a noite de portas de musgo,
abre-se o reino secreto da água
que emana do centro da noite.

E se os fechas,
um rio, uma corrente doce e silenciosa,
inunda-te por dentro, avança, torna-te obscuro:
a noite molha margens na tua alma.


Octavio Paz





A presença consciente dissolve o passado





Onde quer que você esteja, esteja por inteiro

- Você pode dar exemplos da inconsciência comum?

Observe quando estiver reclamando, com palavras ou pensamentos, de uma situação que envolva você – pode ser alguém que fez ou disse algo que lhe aborreceu, algo sobre a sua situação de vida, o lugar onde mora, ou até mesmo o tempo.
Reclamar é sempre uma não aceitação de algo que é. Essa atitude contém invariavelmente uma carga negativa inconsciente. Quando você reclama, transforma-se em vítima. Quando fala, você está no controle. Portanto, mude a situação agindo ou falando, caso necessário ou possível, ou então fuja da situação ou mesmo aceite-a. Tudo o mais é loucura.
A inconsciência comum é sempre relacionada, de algum modo, com a negação do Agora. 
O Agora, naturalmente, também implica o aqui.

Você está resistindo ao aqui e agora? 
Algumas pessoas prefeririam estar num outro lugar. O “aqui” delas nunca é suficientemente bom. Observe-se e verifique se isso acontece em sua vida. Onde quer que você esteja, esteja lá por inteiro. Se você acha insuportável o seu aqui e agora e isso lhe faz infeliz, há três opções:
abandone a situação, mude-a ou aceite-a totalmente.
Se você deseja ter responsabilidade sobre a sua vida, deve escolher uma dessas opções e deve fazê-lo agora. Depois, arque com as consequências. Sem desculpas. Sem negatividade. Sem poluição física. Mantenha limpo o seu espaço interior.
Se você tomar qualquer atitude, abandonando ou mudando a situação, livre-se primeiro da negatividade. Uma atitude originada no discernimento tem mais efeito do que uma originada na negatividade.
Uma atitude qualquer é muitas vezes melhor do que nenhuma atitude, especialmente se há muito tempo você está paralisado numa situação infeliz. Se for uma atitude errada, ao menos você aprenderá alguma coisa, caso em que deixará de ser um erro. Se você não agir, nada aprenderá.

Será que o medo está evitando que você tome uma atitude? 
Admita o medo, observe-o, concentre-se nele, esteja totalmente presente. Isso corta a ligação entre o medo e o pensamento. Não deixe o medo nascer em sua mente. Use o poder do Agora. O medo não pode prevalecer sobre ele.
Se não há mesmo nada a fazer e você não pode mudar a situação, então aceite o aqui e agora totalmente, abandonando toda a resistência interior. O falso e infeliz eu interior, que adora sentir-se miserável, ressentido ou com pena de si mesmo, não consegue mais sobreviver.

Isso se chama rendição. 
A rendição não é uma fraqueza.
Há uma grande força nela. Somente alguém que se rendeu tem poder espiritual. Através da rendição, você se livrará da situação internamente. É possível que você perceba uma mudança na situação sem que tenham sido necessários maiores esforços da sua parte. De qualquer forma, você está livre.

Ou haverá algo que você “deveria” estar fazendo mas não está? 
Levante-se e faça agora. Ou, em vez disso, aceite totalmente a sua inatividade, preguiça ou passividade neste momento, se esta é a sua escolha. Mergulhe nela por inteiro. Desfrute-a. Seja tão preguiçoso ou inativo quanto puder. Se você fizer isso conscientemente, logo sairá dela. Ou talvez não. Em qualquer dos casos, não há nenhum conflito interior, nenhuma resistência, nenhuma negatividade.

Você está sofrendo de stress? 
Pensa tanto no futuro que o presente está reduzido a um meio para chegar lá?
O stress é causado pelo estar “aqui” embora se deseje estar “lá”, ou por se estar no presente desejando estar no futuro. É uma divisão que corta a pessoa por dentro. Criar e viver com essa divisão é insano. O fato de que todas as pessoas estão agindo assim não torna ninguém menos insano. Se você não pode fugir disso, tem de se movimentar rápido, trabalhar rápido, ou até mesmo correr, sem se projetar no futuro e sem resistir ao presente. Quando se movimentar, trabalhar e correr, faça tudo por inteiro. Desfrute o fluxo de energia, a alta energia desse momento. Agora não há mais stress, não há mais divisão por dois, apenas o movimento, a corrida, o trabalho. Desfrute essas atitudes. Ou você também pode abandonar tudo e se sentar num banco do parque. Mas, ao fazê-lo, observe a sua mente. Pode ser que ela diga:
“Você devia estar trabalhando. Está perdendo o seu tempo”.
Observe a mente. Sorria para ela.

O passado toma uma grande parte da sua atenção? 
Você frequentemente fala e pensa sobre ele, tanto de forma positiva quanto negativa?
As grandes coisas que você conquistou, suas experiências e aventuras, ou as coisas horrorosas que lhe aconteceram, ou talvez que você fez a alguém?
Será que seus pensamentos estão gerando culpa, orgulho, ressentimento, raiva, arrependimento ou autopiedade?
Então, você está não só dando mais força ao falso eu interior, como também ajudando a acelerar o processo de envelhecimento do seu corpo através da criação de um acumular de passado na sua psique. Constate isso observando à sua volta aquelas pessoas que têm uma forte tendência para se apegar ao passado.
Morra para o passado a cada instante. Você não precisa dele. Refira-se a ele apenas quando totalmente relevante para o presente.
Sinta o poder do momento presente e a plenitude do Ser.
Sinta a sua presença.

Você tem preocupações? Tem muitos pensamentos do tipo “e se”? 
Você está identificado com a mente, que está se projetando num futuro imaginário e criando o medo. Não há como enfrentar tal tipo de situação, porque ela não existe. É um fantasma mental. Você pode parar com essa insanidade que corrói a saúde e a vida aceitando simplesmente o momento presente. Perceba a sua respiração. Sinta o ar entrando e saindo do seu corpo. Sinta o seu campo interno de energia. Tudo com o que você sempre teve que lidar, tudo que teve de enfrentar na vida real, em oposição às projeções imaginárias da mente, é o momento presente.
Pergunte-se qual é o seu problema neste exato momento, não no ano que vem, ou amanhã ou daqui a cinco minutos. O que está errado neste exato momento?
Você pode sempre enfrentar o Agora, mas não pode jamais enfrentar o futuro, nem tem de fazer isso. A resposta, a força, a atitude certa estarão à sua disposição quando você precisar, nem antes, nem depois.
“Algum dia vou fazer isso”. Seu objetivo está tomando de tal modo a sua atenção que o momento presente é apenas um meio para atingir um fim?
Está consumindo a alegria das coisas que você faz?
Você está esperando para começar a viver?
Se você desenvolver esse tipo de padrão mental, não importa o que você adquira ou alcance, o presente nunca será bom o bastante. O futuro sempre parecerá melhor. Uma receita perfeita para uma insatisfação permanente, você não acha?

Você está sempre “esperando” alguma coisa? 
Quanto tempo da sua vida você passou esperando?
Chamo “espera de pequena escala” à espera na fila do correio, num engarrafamento de automóveis, no aeroporto, por alguém que vai chegar, um trabalho que precisa ser terminado, etc.
Chamo de “espera em grande escala” à espera pelas próximas férias, por um emprego melhor, pelos filhos crescerem, por uma relação verdadeiramente significativa, pelo sucesso, para ficar rico, para ser importante, para se tornar iluminado. Não é raro que as pessoas passem a vida toda esperando para começar a viver.
Esperar é um estado mental. Significa basicamente desejar o futuro e não querer o presente. Você não quer o que conseguiu e deseja aquilo que não conseguiu. Em qualquer dos tipos de espera você, inconscientemente, cria um conflito interior entre o seu aqui e agora, onde você não quer estar, e o futuro projetado, onde você quer estar. Essa situação reduz grandemente a qualidade da sua vida ao fazer você perder o presente.
Não há nada de errado em nos empenharmos para melhorar a nossa situação de vida.
Podemos melhorar a situação da nossa vida, mas não podemos melhorar a nossa vida. A vida é básica.
A vida é o Ser interior mais profundo. É um todo, completo, perfeito. A nossa situação de vida se constitui das nossas circunstâncias e experiências. Não há nada de errado em estabelecermos metas e nos empenharmos para conseguir bens. O erro reside em usar isso como um substituto para o sentimento da vida, para o Ser. 
O único ponto de acesso a isso é o Agora. 
Agimos, assim, como um arquiteto que não dá atenção às fundações de uma construção, mas que gasta um bom tempo trabalhando na superestrutura.
Por exemplo: Muitos de nós estamos à espera da prosperidade. Ela pode não acontecer no futuro. Quando respeitamos, admitimos e aceitamos completamente a realidade do presente – onde estamos, quem somos, o que estamos fazendo agora –, quando aceitamos o que temos, significa que estamos agradecidos pelo que conseguimos, pelo que é, pelo Ser. A gratidão pelo momento presente e pela plenitude da vida atual é a verdadeira prosperidade. Não está no futuro. Então, no tempo certo, essa prosperidade se manifesta para nós de várias maneiras.
Se você não encontra satisfação nas coisas que possui, se tem um sentimento de frustração ou de aborrecimento por não ter tudo o que quer no presente, isso pode levá-lo a querer enriquecer, mas, mesmo que consiga milhões, continuará a ter uma sensação de que falta alguma coisa. Talvez o dinheiro lhe compre muitas experiências excitantes, embora passageiras, deixando sempre uma sensação de vazio e estimulando uma necessidade de gratificação física ou psicológica ainda maior. Você não vai se conformar em simplesmente Ser e, assim, sentir a plenitude da vida agora – a verdadeira prosperidade.
Portanto, desista da espera como um estado da mente. Quando você se vir escorregando para a espera… pule fora. Venha para o momento presente. Apenas seja e aprecie ser. Quando estamos presentes, nunca precisamos esperar por nada. Portanto, da próxima vez que alguém disser “desculpe por ter feito você esperar”, sua resposta pode ser:
 “Está tudo bem, não estava esperando. Estava aqui contente comigo, com meu eu interior”.

Essas são apenas algumas das estratégias comuns da mente para negar o momento presente já incorporadas à inconsciência comum. São fáceis de passar despercebidas porque já estão entranhadas em nosso modo de vida, como o ruído de fundo do nosso eterno descontentamento.
Mas, quanto mais você praticar o monitoramento do seu estado interior emocional e mental, mais fácil será perceber em que momento você foi capturado pelo passado e pelo futuro, bem como despertar da ilusão do tempo dentro do presente. Mas tenha cuidado porque o eu interior falso e infeliz, baseado na identificação com a mente, vive no tempo. Ele sabe que o presente significa sua própria morte e sente-se ameaçado. Fará tudo para afastar você do Agora. Tentará manter você preso ao tempo.





O propósito interno da nossa jornada de vida


- Posso perceber a verdade do que você está dizendo, mas ainda acho que devíamos ter um propósito em nossa jornada, do contrário, ficamos sem rumo. Propósito significa futuro, não significa? Como conciliar isso com o viver no presente?


Ao partir numa jornada, é claro que ajuda muito sabermos para onde vamos ou, ao menos, a direção geral que estamos tomando. Entretanto, não podemos esquecer de que a única coisa real sobre a nossa jornada é o passo que estamos dando neste exato momento. Isso é tudo o que existe.
Nossa jornada de vida tem um propósito externo e um interno.
O propósito externo é o de alcançarmos o objetivo ou destino, realizarmos o que estabelecemos cumprir, adquirirmos uma coisa ou outra, o que, é claro, envolve o futuro.
Mas, se o destino ou os passos que vamos dar no futuro tomam tanto nossa atenção que se tornam mais importantes do que o passo que estamos dando agora, significa que perdemos completamente o propósito interno da vida, que não tem nada a ver com aonde estamos indo ou com o que estamos fazendo, mas tudo a ver com o de que modo. Esse propósito interno não está relacionado com o futuro e sim com a qualidade da nossa consciência no momento presente.

O propósito externo pertence à dimensão horizontal de tempo e espaço, enquanto o interno diz respeito ao aprofundamento do Ser na dimensão vertical do eterno Agora. Nossa jornada externa pode conter um milhão de passos enquanto a jornada interna só tem um, que é o passo que estamos dando neste exato momento. Quando tomamos maior consciência desse passo, percebemos que ele já contém dentro de si todos os outros passos, assim como o nosso destino. Esse único passo se vê transformado em uma expressão da perfeição, um ato de grande beleza e qualidade. Ele terá nos levado para dentro do Ser e a luz do Ser brilhará através dele.
Este é tanto o propósito quanto à realização da nossa jornada interior: a jornada para dentro de nós mesmos.


- Faz diferença se alcançamos nosso propósito externo, se somos bem-sucedidos ou se fracassamos?

Faz diferença se você não tiver alcançado seu propósito interno. Depois disso, o propósito externo é só um jogo que você pode apreciar e querer continuar jogando. Pode acontecer também de você falhar em seu propósito externo e, ao mesmo tempo, ter pleno sucesso em seu propósito interno. Ou de outra forma até mais comum, pode obter riqueza externa e pobreza interna, ou “ganhar o mundo e perder a alma”. Claro que, no fim, cada propósito externo está condenado a “fracassar” mais cedo ou mais tarde, simplesmente porque está sujeito à lei da não permanência de todas as coisas. Quanto mais cedo você perceber que o propósito externo não pode lhe proporcionar uma satisfação duradoura, melhor. Depois de ter constatado as limitações do seu propósito externo, você desiste da expectativa irreal de que ele deveria fazer a sua felicidade e torna-o subserviente ao seu propósito interno.



O passado não consegue sobreviver diante da presença

- Você disse que pensar ou falar sobre o passado é um dos caminhos pelos quais evitamos o presente. Mas, além do passado do qual nos lembramos e com que talvez nos identifiquemos, não existe um outro nível de passado dentro de nós mais enraizado? Falo sobre o passado inconsciente, que condiciona nossas vidas, em especial as experiências dos primeiros anos da infância, até mesmo as experiências de vida passada. Existem também os condicionamentos culturais, tão relacionados ao lugar e ao período histórico em que vivemos. Todas essas coisas determinam o modo como vemos o mundo, o que pensamos, que tipo de relacionamentos mantemos, como vivemos. Como poderíamos nos livrar disso tudo? Quanto tempo isso levaria? E se conseguíssemos, o que restaria?


O que resta quando terminam as ilusões?
Não há necessidade de investigar o nosso passado inconsciente, exceto à medida que ele for se manifestando no presente, na forma de um pensamento, de uma emoção, de um desejo, de uma reação ou de algo externo que nos aconteça. Uma eventual curiosidade quanto ao passado inconsciente poderá ser satisfeita através dos desafios do presente. Quanto mais penetramos no passado, mais ele se torna um buraco sem fundo. Haverá sempre alguma coisa a mais. Você pode pensar que precisa de mais tempo para entender o passado ou se livrar dele ou, em outras palavras, que o futuro irá finalmente livrá-lo do passado. Isso é ilusão. Só o presente pode nos livrar do passado. Uma quantidade maior de tempo não consegue nos livrar do tempo.
Acesse o poder do Agora. Essa é a chave.


- O que é o poder do Agora?

Nada mais do que o poder da sua presença, da sua consciência libertada das formas de pensamento.
Portanto, lide com o passado no nível do presente.
Quanto mais atenção você der ao passado, mais energia estará dando a ele e mais probabilidades terá de construir um eu interior baseado nele. Não confunda as coisas.
A atenção é essencial, mas não em relação ao passado como passado. Dê atenção ao presente. Dê atenção ao seu comportamento, às suas reações, seu humor, seus pensamentos, suas emoções, medos e desejos, da forma como eles acontecem no presente. Ali está o seu passado. Se você consegue estar presente o bastante para observar todas essas coisas, não de modo crítico ou analítico, mas sem julgamentos, significa que você está lidando com o passado e dissolvendo-o através do poder da sua presença. Não é procurando no passado que você vai se encontrar. Você vai se encontrar estando no presente.


- O passado não pode ser útil para nos ajudar a compreender por que fazemos certas coisas, reagimos de determinadas maneiras, ou por que, inconscientemente, criamos nossos dramas particulares?

Quando ficamos mais conscientes do presente, podemos ter um insight sobre o porquê de determinados condicionamentos. Podemos perceber, por exemplo, se seguimos algum padrão nos nossos relacionamentos e podemos ver mais claramente coisas que aconteceram no passado.
Fazer isso é bom e pode ser útil, mas não é essencial. 
O que é essencial é a nossa presença consciente. Ela dissolve o passado. Ela é o agente transformador. 
Portanto, não procure entender o passado, mas esteja presente tanto quanto conseguir. O passado não consegue sobreviver diante da sua presença, só na sua ausência.



Eckhart Tolle