quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Sombras






A meio desta vida continua a ser 
difícil, tão difícil 
atravessar o medo, olhar de frente 
a cegueira dos rostos debitando 
palavras destinadas a morrer 
no lume impaciente de outras bocas 
anunciando o mel ou o vinho ou 
o fel. 


Calmamente sentado num sofá, 
começas a entender, de vez em quando, 
os condenados a prisão perpétua 
entre as quatro paredes do espírito 
e um esquife negro onde vão desfilando 
imagens, só imagens 
de canal em canal, sintonizadas 
com toda a angústia e estupidez do mundo. 


As pessoas - tu sabes - as pessoas são feitas 
de vento 
e deixam-se arrastar pela mais bela 
respiração das sombras, 
pela morte que repete os mesmos gestos 
quando o crepúsculo fica a sós connosco 
e a noite se redime com uma estrela 
a prometer salvar-nos. 


A meio desta vida os versos abrem 
paisagens virtuais onde se perdem 
as intenções que alguma vez tivemos, 
o recorte obscuro de perfis 
desenhados a fogo há muitos anos 
numa alma forrada de espelhos 
mas sempre tão vazia, sem abrigo 
para corpo nenhum. 




Fernando Pinto do Amaral
in, 'Pena Suspensa'







Pessoas que mudam vidas de outras pessoas


Simon Gudgeon




Todos nós tivemos, no nosso percurso de vida, alguém - um professor, dentro da escola ou em alguma actividade paralela, um tio, um mestre, uma paixão absolutamente marcante - que fez efectivamente a diferença, que foi fundamental para aquilo em que nos tornámos.

Há uma frase profética que diz que as coisas que não nos acontecem, são tão importantes como as coisas que nos acontecem.

Podia dourar a pílula e dizer que foi o meu avô, o homem que me levou ao altar, mas quando me perguntam acerca da pessoa que mais me influenciou, tenho que falar sobre o meu pai.
E foi na sua ausência voluntária e muitas vezes dolorosa que me fiz pessoa.
Foi quase tudo o que ele não foi, que fez de mim tudo o que sou.
Foi essa cadeira vazia que fez da minha mãe uma poltrona.
Foi por ele não ter querido existir que o meu avô se fez pai pela segunda vez.
Foi nesse espaço por preencher que se fez oxigénio, dor, revolta e depois carácter.

É difícil entender que a não existência de uma pessoa seja tão brutal como a sua permanência.
Chega a ser quase injusto para quem permanece. Mas nós somos tanto de permanência, como de intermitência. Sou uma pessoa feliz, de rancor nem verbo, nem memória.

De quem não está não reza a história.
Mas quando crescemos damo-nos conta que a vida não é, nem nunca foi, uma narrativa cronológica linear, que corre sem guião, que não tem plano de cena ou personagens definidas. E quando as há, elas podem bem revoltar-se: A árvore que quer ser duque, o pano quer ser cenário, a princesa que quer ser espadachim, o pai que não quer ser pai.
Há medida que o tempo vai encorpando a nossa existência vamos discernindo a importância que a ausência teve, as notas onde se entornou, os acórdãos que influenciou, as decisões que empurrou consigo.

Mentiria se não dissesse, que a pessoa que mais me influenciou foi a que não se dando a conhecer, me levou à orfandade de mim. E que foi esse vazio, que fez com que outros se enchessem de coragem de ser. Enriquecendo os seus papéis, duplicando as suas funções, majorando a sua importância.

Não sou maluca para lhe agradecer a ausência, mas já sou crescida que chegue para lhe tirar proveito.
Pai.



Isabel Saldanha





terça-feira, 30 de janeiro de 2018

......................................... memórias post-mortem





Frio...
Pantominas estáticas de mimo
Em corpo frio e rígido, desprovido
Do sangue que dá vida, agora imóvel
Em livores discretamente dispersos pela matéria
Que enformou o teu Ser.

Longo sono decretado por Morfeu,
Que tentou despojar-me de ti.

Intento, todavia, negado por
Rede intrincada de memórias
Vivas e para sempre presentes na minha mente
Onde percorro a intemporal teia
Longa e diligentemente executada por Aracne
E re-vivo cada um dos momentos
Que te confirmaram como um Homem aos meus olhos,
Anuindo a permanência de quem foste
Na plenitude das conformações que 
Compreendem a dimensão incorpórea do Ser.


Rui Amaral Mendes





PODE IR





A entrevista que o ator Reynaldo Gianecchini deu à jornalista Marília Gabriela.
Houve quem se apegasse ao selinho e ao “te amo” no final, que nada mais foi do que uma manifestação espontânea de afeto entre ex-amantes que se dão bem, mas o que merece registo foi a abertura emocional da conversa, coisa que a TV não costuma esbanjar.
A entrevista comoveu do início ao fim, chegando perigosamente perto do piegas, porém Gianecchini foi tão grandioso, que calou qualquer crítica. Não perdeu a classe, não se vitimizou, falou com desenvoltura e honestidade – foi perfeito.

Houve um momento que sobressaiu aos demais.
Foi quando ele contou como foram os últimos instantes de vida do pai dele, que também tinha câncer e que veio a falecer.
Gianecchini, sabedor de que o pai estava desenganado, foi ao hospital e juntos tiveram a oportunidade de conversar sobre diversas questões pendentes – que pais e filhos não têm questões pendentes? Não querendo ser mais um a choramingar “por que não disse tal e tal coisa ao meu pai quando ele era vivo?”, foi lá e fez o dever de casa.
Tiveram tempo para zerar as dívidas.
Quando não havia mais o que falar, Gianecchini abraçou o pai longamente e disse: “Pode ir”.
Então olhou para os monitores e viu que os batimentos cardíacos dele começavam a cair, que o pulso começava a cair – o pai começava a morrer. Ele acompanhou a morte chegando, até que as máquinas deram o sinal de que tudo havia acabado.
“Não senti tristeza. Senti paz.”

Entre tantas coisas difíceis que enfrentamos na vida, as despedidas estão entre as mais cruéis. Dificilmente sentimos paz: romper um vínculo é uma pequena morte, e com ela advêm a dor, a culpa, a saudade e o medo diante do que o futuro reserva.
Mesmo as despedidas do tipo “fácil”, como as que ocorrem em aeroportos e rodoviárias, são angustiantes: quando nos veremos de novo? Ao menos, sabe-se que haverá um novo encontro, seja quando for. Já as difíceis implicam separação definitiva. Incluem-se aí divórcios, fins de namoro, discussões que dissolvem amizades, sociedades, empregos. Apesar de necessárias, sangram por dentro. Adeus. Palavrinha fatal.

Pois Gianecchini reverteu a tese de que toda despedida é um suplício.
Diante do irreversível, não fez drama.
Sofrimento e drama não são sinónimos.
Existe o sofrimento pacífico, assimilado, generoso: “Pode ir”.
É a aceitação da morte como um rito de passagem tanto para quem vai quanto para quem fica.

O drama é que torna tudo mais doloroso. 
Elimina a razão, não permite formulações nem aprendizado, apenas corrói, desespera.
O drama, que tem na despedida sua cena representativa clássica, é cafona e improdutivo: o tempo que gastamos arrancando os cabelos poderia ser mais bem aproveitado se transformado em meditação e humildade.

Aceitar o luto inerente a tudo que acaba é sabedoria das mais refinadas.


Martha Medeiros




Veja parte da entrevista AQUI






segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Murmúrio





Ele murmura:
deixemos o sonho para quando os corpos se perderem
no excesso das imagens ou na sua imitação
eles simulam o amor

um olhar rápido pelo lugar abandonado
pressente-se ainda a fuga dos corpos
na aragem que limpa a casa
a memória poderá reconstruir tudo a partir das imagens
e do intenso cheiro a mato
por agora nada mais é visível
azul e mais azul e nenhuma mudança na paisagem
nenhum vestígio

as luzes apagaram-se o material foi guardado
o lugar adormece por baixo do bolor imutável
e no esquecimento
os actores caminham para o fim do filme

um gravador esquecido
regista os passos que se afastam devagar
não sabemos ao certo para onde



Al Berto





O Anel


Réplica de Anel Atlântida, ou Anel Luxor
Descoberto em 1860, no Vale dos Reis, Egipto
Fabricado há mais de 10.000 anos em Atlântida, em quartzo negro
 O anel tem características de “Puzzle” – uma composição geométrica confusa-gravado em absoluta harmonia, 
chamada “micro-ritual-arrangment”. Estas características transmitem ondas que formam uma “shut-off-position” (desligamento) contra tudo que possa perturbar a oscilação do usuário. 
Esta fórmula traz invisíveis forças e efeitos codificados em símbolos no anel, 
e é considerada um incrível mistério de micro oscilação pela física moderna, 
pesquisada com grande interesse pelos cientistas.













"Venho aqui, professor, porque me sinto tão pouca coisa, que não tenho forças para fazer nada. Dizem-me que não sirvo para nada, que não faço nada bem, que sou lerdo e muito idiota. Como posso melhorar? O que posso fazer para que me valorizem mais?

O professor sem olhá-lo, disse:
– Sinto muito meu jovem, mas não posso te ajudar, devo primeiro resolver meu próprio problema. Talvez depois.
E fazendo uma pausa falou:
– Se você me ajudasse, eu poderia resolver este problema com mais rapidez e depois talvez possa te ajudar.

– C…Claro, professor – gaguejou o jovem. Mas se sentiu outra vez desvalorizado e hesitou em ajudar seu professor.
O professor tirou um anel que usava no dedo pequeno e deu ao garoto e disse:
– Monte no cavalo e vá até o mercado. Devo vender esse anel porque tenho que pagar uma dívida. É preciso que obtenhas pelo anel o máximo possível, mas não aceite menos que uma moeda de ouro. Vá e volte com a moeda o mais rápido possível.

O jovem pegou o anel e partiu. Mal chegou ao mercado começou a oferecer o anel aos mercadores. Eles olhavam com algum interesse, até quando o jovem dizia o quanto pretendia pelo anel. Quando o jovem mencionava uma moeda de ouro, alguns riam, outros saiam sem ao menos olhar para ele.
Só um velhinho foi amável a ponto de explicar que uma moeda de ouro era muito valiosa para comprar um anel.Tentando ajudar o jovem, chegaram a oferecer uma moeda de prata e uma xícara de cobre, mas o jovem seguia as instruções de não aceitar menos que uma moeda de ouro e recusava as ofertas.

Depois de oferecer a jóia a todos que passaram pelo mercado, abatido pelo fracasso montou no cavalo e voltou. O jovem desejou ter uma moeda de ouro para que ele mesmo pudesse comprar o anel, assim livrando a preocupação de seu professor e assim podendo receber ajuda e conselhos.
Entrou na casa e disse:
– Professor, sinto muito, mas foi impossível conseguir o que me pediu. Talvez pudesse conseguir 2 ou 3 moedas de prata, mas não acho que se possa enganar ninguém sobre o valor do anel.
– Importante, meu jovem – contestou o professor sorridente – devemos saber primeiro o valor do anel. Volte a montar no cavalo e vá até o joalheiro.
Quem melhor para saber o valor exato do anel?
Diga que quer vender o anel e pergunte quanto ele te dá por ele. Mas não importa o quanto ele te ofereça, não o venda. Volte aqui com meu anel.

O jovem foi até o joalheiro e lhe deu o anel para examinar. O joalheiro examinou o anel com uma lupa, pesou o anel e disse:
– Diga ao seu professor, se ele quer vender agora, que não posso dar mais que 58 moedas de ouro pelo anel.
– 58 MOEDAS DE OURO!!! – exclamou o jovem.
– Sim, replicou o joalheiro, eu sei que com tempo eu poderia oferecer cerca de 70 moedas, mas se a venda é urgente…

O jovem correu emocionado até a casa do professor para contar o que ocorreu.
– Senta – disse o professor. E depois de ouvir tudo que o jovem lhe contou disse:
– Você é como esse anel, uma joia valiosa e única. E que só pode ser avaliada por um expert. Pensava que qualquer um poderia descobrir o seu verdadeiro valor??? E dizendo isso voltou a colocar o anel no dedo.
– Todos somos como esta joia. Valiosos e únicos e andamos por todos os mercados da vida pretendendo que pessoas inexperientes nos valorizem."







domingo, 28 de janeiro de 2018

A Outra Metade de Mim ( Mischling )




Acabei de ler este livro ontem...
Vim aqui partilhar, porque é um livro que nos fica entranhado por vários dias seguidos.

Livros sobre o Holocausto são muito difíceis de ler.
Tenho sempre de fazer algumas paragens para me recompor.
São murros no estômago sucessivos.
É muito doloroso emocionalmente.
Mas, depois de ler os livros do escritor italiano Primo Levi, especialmente o livro "Se Isto é um Homem", e depois de ver o documentário sobre o Holocausto com a participação e testemunhos de alguns sobreviventes do Holocausto, percebi a importância de ler estes livros.
Para os sobreviventes, é insuficiente a informação dada nas escolas e nos livros de história sobre o Holocausto. Para eles, é fundamental que o mundo saiba a versão deles do que na realidade se passou, o que eles sentiram, o que sofreram, a dor que só pode ser descrita por quem a sentiu na pele.
Ao optarmos por não ler estes livros por motivos emocionais, estamos a dizer a estes sobreviventes que não queremos saber, não queremos partilhar a sua dor e sofrimento, e estamos a ignorá-los, a eles e à sua história.
Acho que é ofensivo e egoísta da nossa parte, não nos querermos envolver.
Tal como diz o Primo Levi num dos seus livros, Não Podemos Esquecer!!!!!!!
Os livros, os filmes e os documentários são uma forma de nos forçar a não esquecer!
O mínimo que podemos fazer, por respeito, é "ouvir" o que eles têm para nos dizer.
Por muito que nos custe.
A eles custou-lhes quase a própria vida.


A Stasha e a Pearl não me saem da cabeça...
Este livro mostra a possibilidade da existência de beleza num contexto de terror e desespero.

Mischling, o título original do livro, é uma palavra alemã que significa "mestiço". 
A palavra foi usada nas Leis de Nuremberg, de 1935, para designar os filhos de casamentos de judeus com alemães. A palavra possui significado ofensivo e pejorativo.
O Pai das gémeas era alemão, e a mãe das gémeas judia.

As papoilas na capa do livro são cheias de significado porque, no início do livro, quando as gémeas, o avô e a mãe, estavam a chegar a Auschwitz no "camião de gado" como as gémeas lhe chamaram, a mãe estava a desenhar uma papoila no chão.
Mais tarde, a Pearl começou a perceber que a determinada altura um dos gémeos desaparecia sem deixar rasto. Antecipando o que iria acontecer, pediu a Peter para roubar uma das teclas do piano que estava no armazém para dar a Stasha. A Pearl tocava piano antes da guerra, e quando levassem a Pearl e elas se separassem, Stasha teria sempre a tecla de piano para se lembrar da Pearl. Quando ela deu a tecla a Stasha, ela disse a Pearl que, quando ela sonhava com uma papoila era sinal que a família estava viva, mas quando sonhasse com um campo de papoilas era sinal de que estaria morta. Então, pediu-lhe a chorar que nunca a fizesse sonhar com um campo cheio de papoilas.
Já na última página do livro, quando a Pearl chega viva ao orfanato de Varsóvia escondida dentro de um caixão, encontra a Stasha a brincar com um cão abandonado no Jardim Zoológico, e jogam ao jogo que jogavam as duas, de costas uma para a outra, a desenhar no chão, para adivinharem o que cada uma estava a desenhar. Era uma forma de saberem se continuavam iguais. E o que as duas desenharam ao mesmo tempo, de costas coladas uma na outra, foi uma papoila...igual à que a mãe tinha desenhado no chão do "camião de gado".

Pearl tem a seu cargo o triste, o bom, o passado.
Stasha fica com o divertido, o futuro, o mau.

Corre o ano de 1944 quando as gémeas chegam a Auschwitz com a mãe e o avô.
No seu novo mundo, Pearl e Stasha Zamorski de 12 anos refugiam-se nas suas naturezas idênticas, encontrando conforto na linguagem privada e nas brincadeiras partilhadas da infância aparentemente alheadas da insanidade da época.
O confronto com a realidade não tarda, duro e cruel, ainda que disfarçado pela mentira de uma aparente benesse por serem crianças, gémeas e aparentemente perfeitas.
O preço desse interesse fez-se sentir da forma mais atroz e contraditória.

As meninas fazem parte da população de gémeos para experiências com humanos conhecida como o "Zoo" do Dr. Josef Mengele, inspirado em factos reais relacionados com Josef Mengele, médico das SS conhecido pelas suas experiências desumanas com os prisioneiros do campo de concentração de Auschwitz. Responsável pela distinção e selecção dos que serviam para trabalhar e dos que seriam destinados às câmaras de gás, Mengele praticou experiências desumanas em prisioneiros do campo, especialmente em gémeos.
E, na qualidade de cobaias no célebre Zoo de Mengele, Stasha e Pearl conhecem privilégios e horrores desconhecidos dos outros.

“Para onde quer que olhássemos, havia um duplicado, um ser idêntico. Quando passámos pelas raparigas nos poleiros, vi as escolhidas, as que haviam sido selecionadas para sofrerem de determinada forma, enquanto a outra metade permanecia intocada. Em quase todos os pares, uma gémea tinha a coluna disforme, ou uma perna em mau estado, um olho tapado, um ferimento, uma cicatriz, uma muleta.” 

Começam a mudar, a ver-se extirpadas das personalidades que em tempos partilharam, as suas identidades são alteradas pelo peso da culpa e da dor.
Nesse inverno, num concerto orquestrado por Mengele, Pearl desaparece.

Stasha sofre a perda da irmã, mas agarra-se à possibilidade de que ela continue viva.
Depois de ver a mãe morta numa carroça cheia de cadáveres, de uma forma brusca e inesperada ao lado do Dr. Mengele antes de ele lhe pôr à força a gota no olho que a cegou, Stasha já no limite das suas forças físicas e psicológicas ouve a voz da mãe dizer-lhe ao ouvido intacto: 
"Vamos jogar a um jogo. Vais ser uma formiga. As formigas podem carregar um peso 50 vezes superior ao seu. Precisas da força da Formiga."  
A sobrevivência de Stasha, quando parecia que a morte dela era inevitável...a jogar ao Jogo das Coisas Vivas.

Quando o campo é libertado pelo Exército Vermelho russo, ela e o companheiro Feliks - um rapaz que jurou vingança depois da morte do seu gémeo - atravessam a Polónia, um país agora destruído, à procura de vingança, a caminho de Varsóvia para matarem o Dr. Mengele.
A vingança do Urso (Feliks) e da Chacal (Stasha).
Não os detêm a fome, os ferimentos e o caos que os rodeia, motivados como estão em igual medida pelo perigo e pela esperança.
Encontram no seu caminho aldeões hostis, membros da resistência judaica e outros refugiados como eles, e continuam a sua viagem incentivados pela ideia de que Mengele tem de morrer de forma cruel pelas suas mãos.
À medida que os jovens sobreviventes descobrem o que aconteceu ao mundo, tentam imaginar um futuro nele.

Stasha perdeu a audição de um ouvido e a visão de um olho.
Pearl, foi esventrada e roubaram-lhe o útero, e partiram-lhe os dois pés para não poder fugir.


  • Até onde se consegue preservar a identidade pessoal quando expostos a tantas experiências?
  • Será que a transformação física e emocional imposta por vivências improváveis, traumáticas e imponderáveis altera a identidade que procuramos preservar como se de um ponto cardeal se tratasse?
  • Haverá uma componente biológica no conceito de identidade pessoal?
  • Será possível preservá-la quando parte dos nossos traços físicos externos fica irreconhecível?
  • Até que ponto o nosso corpo expressa uma parte daquilo que somos como pessoas?


As gémeas Pearl e Stasha Zamorski passam-nos uma convicção de integridade, essência e preservação, independentemente do que viveram, como se as mudanças físicas impostas pela crueldade do médico Josef Mengele não tivessem valor real.
À desfiguração física gradual, lenta e calculada de uma das gémeas, como se de uma prova de resistência se tratasse, sobreveio a integridade do referencial afectivo e da própria imagem física, aparentemente inatacável pela barbárie a que estavam expostas.

Já no fim do livro, Pearl descreve o encontro dela na prisão com Elma, o braço direito do "Anjo da Morte" (Dr Mengele), que foi condenada em tribunal a prisão perpétua.
Pearl diz a Elma que a perdoa, e Elma goza com ela por andar de bengala e cospe-lhe nos pés.
Uma mensagem de perdão e de esperança na sobrevivência da raça humana:
“O meu perdão foi uma repetição constante, o reconhecimento de que continuava viva, a prova de que as experiências deles, os seus números, as suas amostras, tudo isso falhou – eu continuei a viver, um tributo aos seus erros de cálculo, pois subestimaram o que uma rapariga consegue suportar. O meu perdão deixou claro o seu fracasso em aniquilar-me.”

Impossível terminar sem referir a Dra Miri...
A confissão dela no hospital sobre o que os nazis lhe fizeram, a ela e à sua família, foi inesperadamente brutal e emocionante.
Assim como, o Pai dos Gémeos, que salvou várias crianças fazendo-os passar por gémeos, para irem para o "Zoo", na esperança de sobreviverem a Auschwitz.
O sofrimento dos dois no final do livro, por terem participado contra vontade no trabalho no Dr. Mengele no "Zoo". Apesar de terem ajudado as crianças sempre que podiam, e de no final terem levado as 32 crianças até Cracóvia sãs e salvas, isso não aliviou em nada a culpa e o peso na consciência de tudo o que fizeram em Auschwitz no Zoo de Mengele.

Uma história extraordinária, contada numa voz que tem tanto de belo como de original, Mischling é um livro que desafia todas as expectativas, atravessando um dos momentos mais negros da história da humanidade para nos mostrar o caminho para a beleza, a ética e a esperança.






sábado, 27 de janeiro de 2018

Inside the nucleus of each of your atoms





Is there really such a thing as ONE?! One what?
For example, how can we say we are each ONE person when each one of us is made of an estimated 100 TRILLION cells that are then each made of an estimated 100 TRILLION atoms?

Inside the nucleus of each of your atoms are much much smaller protons rotating around each other at the speed of light inside which one are 10 to the 60 (a 1 with 59 zeros after it) much much much smaller packets of energy called Planck voxels (spherical Planck units) that make up the very fabric of space-time in an infinite holofractalgraphic 3D flower of life structure that we simply call space.

So the next time someone asks you if you are busy, no matter if it is on the personal, physical, biological, chemical, cellular, atomic, sub-atomic or even at the Planck voxel level, the answer is always, yes.


Jamie Janover






A Mais Perfeita Imagem


Dennis Ramos





Se eu varresse todas as manhãs as pequenas 
agulhas que caem deste arbusto e o chão 
que lhes dá casa, teria uma metáfora perfeita para 
o que me levou a desamar-te. Se todas as manhãs 
lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além 
do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparência 
que o nada representa, veria que o arbusto não passa 
de um inferno, ausente o decassílabo da chama. 
Se todas as manhãs olhasse a teia a enfeitar-lhe os 
ramos, também a entendia, a essa imperfeição 
de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes 
desarma geometria. E a cor. Mesmo se agora visse 
este poema em tom de conclusão, notaria como o seu 
verso cresce, sem rimar, numa prosódia incerta e 
descontínua que foge ao meu comum. O devagar do 
vento, a erosão. Veria que a saudade pertence a outra 
teia de outro tempo, não é daqui, mas se emprestou 
a um neurónio meu, unia memória que teima ainda 
uma qualquer beleza: o fogo de uma pira funerária. 
A mais perfeita imagem da arte. E do adeus.



Ana Luísa Amaral
in, 'A Arte de Ser Tigre'






sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Intimidade é perder-se na pele do outro sem perder a própria pele.





Eu gosto de me perder na etimologia das palavras, ajuda-me sempre. A palavra “intimidade” tem origem no latim, no adjetivo intimus que significa “no interior, no fundo”. A intimidade envolve o movimento de nos virarmos para o interior, e deixar o outro saber o que vai dentro de nós. Às vezes não é nada fácil! Usamos a palavra em diferentes contextos, por exemplo, dizemos “Foi um concerto intimista”, ou, “Os músicos tocaram numa sala intimista”. O que queremos dizer com isso é que o concerto nos virou para dentro de nós e ativou emoções, que de alguma forma sentimos partilhar com o resto das pessoas ali presentes. Um espaço intimista é uma sala acolhedora, que proporciona proximidade, com pouca luz, que ajuda a sentir.

A intimidade é um conceito complexo que já fez correr muita tinta na Psicologia.
Existem vários modelos teóricos para explicar a intimidade mas, vamos simplificar.
A intimidade é uma condição necessária à sobrevivência humana.
Parece excessivo? Vejamos.
Numerosa investigação tem demonstrado que o contacto íntimo é um poderoso determinante da saúde e do bem-estar do indivíduo e está positivamente relacionada com níveis de amor, confiança e satisfação.

Trata-se de um processo interpessoal - sempre entre duas pessoas – mas as díades íntimas podem ser um par amoroso, pais/filhos, entre amigos, ou até entre desconhecidos. A intimidade implica um processo de comunicação (do latim, communicȃre: pôr em comum) caracterizado pela auto-revelação de aspetos privados, e essa comunicação pode ser verbal ou não-verbal.

Vale a pena distinguir entre interação íntima e intimidade na relação. 
Pode haver uma interação íntima sem ter que existir uma relação, por exemplo, entre duas pessoas que se sentam lado a lado num avião num voo de longa duração, que se revelam uma à outra numa troca empática de conteúdos privados. Talvez esta exposição e auto-revelação súbita sejam mesmo facilitadas pelo facto de saberem que não voltarão a encontrar-se.
A intimidade na relação pressupõe exatamente isso, uma relação, embora haja muitas relações sem intimidade (são relações vazias, áridas, mas que ainda assim se podem manter).

A intimidade nas relações é como o açafrão (o verdadeiro!) num prato oriental, um vintage na garrafeira, ou as melhores cerejas no bolo. E quem não quer provar o verdadeiro açafrão, ter bom vinho na garrafeira e bolos com cerejas? Mas nem sempre se consegue. A intimidade tem uns ingredientes de luxo: expressão, liberdade, confiança, verdade, emoção, alteridade. E isto, nem todos alcançam.
Daí os psicólogos dizerem que é necessário haver uma diferenciação do self, ou seja, a pessoa deve ter o sentido do Eu bem desenvolvido, diferenciado e integrado, para poder partilhá-lo com outras pessoas.

A intimidade implica expressar e partilhar conteúdos pessoais e isto pressupõe sempre um ato de entrega. Uma entrega de algo que é privado, e que habitualmente gera uma ativação emocional. Esse algo podem ser emoções, vulnerabilidades, fracassos, imperfeições, alegrias e prazeres. Esses conteúdos são recebidos pela outra pessoa e de alguma forma são devolvidos na forma de compreensão e validação. E como resultado desta troca, ambos se sentem aceites e validados.
Numa interação íntima, a pessoa revela-se ao outro e expressa a sua verdade. E este ato de se deixar ver, exige uma enorme liberdade. E confiança.

Intimidade é:
  • Ouvir o silêncio com alguém, e gostar
  • Contar ao parceiro como foi o prazer, logo a seguir ao amor
  • Dar um abraço, e ficar no abraço
  • Chorar no colo de alguém sem ter que explicar nada
  • Ler a história ao filho antes de dormir, e trocar comentários sobre o que nos fez sentir
  • Rir com um amigo das próprias misérias
  • Ficar acordado até de madrugada a partilhar memórias conjuntas


A experiência da intimidade implica estar separado e junto ao mesmo tempo. Como diz L’Abate*,
“exige a força para juntar-se ao outro e partilhar as fragilidades, e ao mesmo tempo, estar separado o suficiente para estar disponível para ele, sem exigência de soluções ou perfeições”. 

Esta ideia remete-nos para o título, uma feliz definição de Abraham Passini:

Intimidade é perder-se na pele do outro 
sem perder a própria pele. 

É uma metáfora poderosa que encerra os elementos essenciais do que seria um elevado grau de intimidade numa relação. Um indivíduo, com o seu mundo interno e privado, e com um self diferenciado (“a minha pele”), é capaz de criar a ponte com o outro e compreender a sua verdade, a revelação do seu mundo privado (“a pele do outro”). A intimidade implica participação no outro, tomar parte nos seus conteúdos, partilhar, mas sem se fundir com ele, sem ser absorvido por ele (“sem perder a própria pele”). A intimidade precisa que se mantenha a própria individualidade, implica diferenciação no ato de partilhar. Dar-se ao outro requer uns limites individuais claros, não é um processo de fusão. E muitas vezes é isto que assusta, esta possibilidade de nos perdermos no outro e de perder a própria individualidade. Há pessoas que têm mais dificuldades com a intimidade e resistem a envolver-se numa relação íntima. Pode ser por temerem expor-se ao outro, não quererem revelar-se por sentirem que isso implica uma perda de poder (“se o outro souber tanto de mim, já não vou poder fazer o que eu quero”), ou por falta de confiança. Pode também ser pelo medo do abandono, a preocupação de que se a outra pessoa chegar a conhecer-nos demasiado bem, pode abandonar-nos. Seja por que razão for, o medo da intimidade priva a pessoa de uma experiência vivencial riquíssima e perturba o crescimento afetivo.

A intimidade é um processo vital, onde podemos sentir-nos livres para revelar e partilhar as nossas complexidades e contradições, os nossos prazeres, os nossos medos e esperanças, recebendo em troca a compreensão e aceitação da outra pessoa. E este encontro é magnífico e reparador.


*L’Abate, L. (1999). Increasing intimacy in couples through distance writting and face-to-face approaches. In, J. Carlson & L. Sperry (Eds.), The intimate couple (pp 328-340). Philadelphia: Taylor & Francis.



ANA ALEXANDRA CARVALHEIRA





De que Serve a Bondade


Anton Okicki





1

De que serve a bondade 
Quando os bondosos são logo abatidos, ou são abatidos 
Aqueles para quem foram bondosos? 

De que serve a liberdade 
Quando os livres têm que viver entre os não-livres? 

De que serve a razão 
Quando só a sem-razão arranja a comida de que cada um precisa? 


Em vez de serdes só bondosos, esforçai-vos 
Por criar uma situação que torne possível a bondade, e melhor; 
A faça supérflua! 

Em vez de serdes só livres, esforçai-vos 
Por criar uma situação que a todos liberte 
E também o amor da liberdade 
Faça supérfluo! 

Em vez de serdes só razoáveis, esforçai-vos 
Por criar uma situação que faça da sem-razão dos indivíduos 
Um mau negócio! 


Bertold Brecht 
in, 'Lendas, Parábolas, Crónicas, Sátiras e outros Poemas' 






quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Dear Homophobes





Dear Homophobes
This is your logic.
God hates me for loving, but loves you for hating the fact that I'm loving.
This is your logic. 
God hates that I accept, 
but loves that you reject. 
I 100% do not deserve any respect.
This is your logic. 
I'm going to hell for affection. 
You're going to heaven for rejection.
This is your logic.
All of us made this steadfast decision 
to sprint headfirst into this collision
because this is what we want-
is to be continuously discriminated against 
and for our commitment to be a criminal offense.
This is your logic. 
It really doesn't make sense.


The Cura





As mulheres estão cada vez mais mulheres!





As mulheres estão cada vez mais mulheres.
A verdade é que começaram a perceber 
que não precisam 
se igualar aos homens em nada!


Precisamente porque sabem hoje que não é na comparação que se cresce. 
Bem pelo contrário.
Pela comparação cria-se não quem se é, mas quem se acredita que deve ser para atingir algum propósito.
Percebo que cada vez mais mulheres têm consciência de que tudo aquilo que precisam está dentro delas.

Vejo mulheres a dizer não ao desrespeito e a não querer entrar batalhas das quais não recebem mais do que mais desrespeito.
Acredito que as mulheres hoje sabem, ainda de forma mais clara, quando sair de uma luta sem se sentirem derrotadas, mas antes, mais enriquecidas no respeito que mostram por si mesmas.

Vejo também que, contrariamente ao que se divulgou bastante com o feminismo, as mulheres percebem que muito daquilo que se defendia tinha por base um certo “rancor” contra o “domínio” abusivo dos homens sobre elas próprias.

Hoje, já entenderam que o que foi, independentemente de muita injustiça, foi o que foi.
No fundo, sem querer ser injusto, foi o que permitiram, muitas vezes sem terem muita consciência de que podiam existir outras realidades.
A verdade é que uma grande parte das mulheres tornou-se livre dessa comparação sem sentido com os homens. Hoje, já não procuram ser tão “boas” quanto eles, mas antes boas como elas mesmas.

As mulheres sabem, até melhor do que a grande maioria dos homens, que têm um lado muito seu que lhes permite ser cada vez mais elas mesmas, apesar de toda a estúpida pressão na nossa sociedade que teima em comparar mulheres e homens. Esse lado é a sua sensibilidade.

Antes, as mulheres aplicavam a sua sensibilidade mais a um nível doméstico, sobretudo no seu papel de mães. Hoje, a sua sensibilidade estendeu-se a si mesmas e todo o seu valor, enquanto pessoas, emergiu na sua máxima intensidade.
A extensão da sua sensibilidade cresceu na dimensão do respeito que começaram a sentir por si mesmas enquanto mulheres e seres humanos, não com o direito a competir, mas a serem elas mesmas.

Os seres humanos não nasceram para competir.
A sociedade fê-los ser dessa maneira.
As mulheres estão a entender este processo da não competição de uma forma que ainda poucos homens conseguem. Tal constatação as faz ver a sua vida numa nova perspectiva, numa perspectiva em que o âmago de todas as questões passa primeiro por elas, antes de todos os outros, contrariamente ao que antes pensavam. Esta consciencialização não as faz ser egoístas e egocêntricas. Muito pelo contrário. Está a fazê-las crescer enquanto mulheres, mães, esposas e profissionais.
Tal pode parecer um contrassenso, mas, na verdade a sensibilidade das mulheres é a sua libertação de um mundo demasiado “preso” a conceitos e limitações.

Hoje, ao ter plena consciência da sua sensibilidade, a mulher representa um lado a que o mundo competitivo não estava habituado. Hoje, a mulher, consciente da sua sensibilidade, é o elemento que faltava a este mundo para que ele pudesse ganhar um equilíbrio fundamental.
Ser mulher, em toda a sua sensibilidade, é aquilo que garante a esta sociedade, a este mundo, um renascer muito mais eficaz do que o que foi feito pelos homens.

Infelizmente, ainda muitas mulheres veem a sua sensibilidade como uma fraqueza, uma maneira fácil de serem manipuladas e enganadas pelas outras pessoas, nomeadamente pelos homens, e vitimizam-se em vez de serem gratas por essa sua característica. Como tal, procuram soluções fora delas mesmas, o que resulta num afastamento cada vez maior da sua sensibilidade e, consequentemente, da sua essência.

Uma mulher que não entende a sua sensibilidade acaba vítima de si mesma. 
O seu caminho torna-se, então, duro e dependente, deixando-a sem forças para lutar por si e rendendo-a a uma vida sem sentido e amor. Nestes casos, a mulher apenas sobrevive, culpa o mundo da sua situação e nunca é respeitada.

No entanto, a sensibilidade não tem nada a ver com poder. 
São poucas as mulheres com poder que conseguem ser sensíveis.
Para exercer poder é necessário pensar e lidar com a lógica. A sensibilidade não está no maior ou menor poder de uma mulher. A sua sensibilidade está na sua capacidade de se afastar dele e, mesmo assim, ser “poderosa” na maneira como se faz sentir mulher.

Uma mulher sensível é uma mulher que se respeita acima de tudo e de todos.
É alguém que se faz sempre respeitar enquanto mulher.
É alguém que, com o seu exemplo, mostra aos homens as vantagens de eles deixarem vir à tona o seu lado sensível, aquele seu lado feminino que os ajudaria a serem pessoas mais conscientes de si próprios e do mundo em que vivem.

A mulher sensível está a transformar esta sociedade num lugar onde a sensibilidade se tornou o grande caminho para um novo mundo!



Jose Micard Teixeira





quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

AMORES PROIBIDOS








Onde está quem amamos quando amamos
outro corpo de fogo em movimento?
P'ra que abismo corremos, p'ra que enganos,
quando as promessas são poeira ao vento?
.
De que matéria alheia mal tentamos
fugir quando a verdade mora dentro
de alguém a cujo céu nos entregamos
numa noite de sonho e de tormento?
.
Ainda somos humanos se traímos
por instinto um amor de tantos anos
e só àquele instante obedecemos?
.
Ainda somos humanos? Ou seremos
a febre que há no sangue quando vimos
de súbito morrer num corpo e vamos
em busca do inferno que merecemos?
.
Talvez por um momento então sejamos
sonâmbulos fantasmas do que fomos
reflectidos num espelho que não vemos
.
Ou talvez nesse corpo descubramos
a memória da alma que perdemos
p'ra sempre no momento em que transpomos
a fronteira dos gestos quotidianos
e ao sabor de um desejo destruímos
todas as intenções, todos os planos,
em nome dos prazeres mais supremos
na noite em que deixamos de ser donos
do nosso próprio corpo e abandonamos
angústias e remorsos e partimos
em busca da manhã que não sabemos
.
Onde está quem amamos quando somos
mais do que humanos? Mais? Ou muito menos?



FERNANDO PINTO DO AMARAL 
in, POEMAS ESCOLHIDOS










DEPOIS QUE O AMOR ACABA





Depois que o amor acaba, entra em cena a isenção.

Agora você pode, enfim, avaliar o que aconteceu por outro ângulo.
"Pensando com mais clareza, agora vejo que aquela relação foi a experiência mais fascinante que vivi."
Oi?
Um ano antes, a mulher parecia um trapo encardido, passava chorando pelos cantos, lamentando a má sorte de ter se apaixonado por um Don Juan que só a humilhava e a fazia sofrer, e agora aquela dilaceração toda se transformou na experiência mais fascinante já vivida?
Sim. Qual o espanto?

Depois que o amor acaba, entra em cena a isenção.
Você não faz mais parte daquela nhaca.
Está desobrigada de administrar revezes, de procurar soluções para impasses, de fazer parte de um jogo maluco de sedução. Não há mais adoração, esperança, ódio, raiva, desapontamento. E não havendo nada, tampouco há interesse em descredibilizar o outro para tentar manter o que resta da própria dignidade. Não há mais risco. Ninguém mais precisa se salvar.
Agora você pode, enfim, avaliar o que aconteceu por outro ângulo.
Então, dali de onde ela estava, de uma distância segura do passado, tudo se transfigurou. O amor não era mais analisado pelo o que havia sido, mas pelo o que agora representava.
O que antes era dilacerante virou uma bela experiência anexada ao currículo.
O que antes era gigantesco foi reduzido a um tamanho médio.
O que antes era definitivo virou passageiro.
O que antes era para sempre, encontrou um fim sereno.

Dimensionamos nossas emoções de acordo com a força do momento.
Acreditamos nas definições que costumamos dar ao que está sendo experimentado, usando com orgulho as palavras "tudo", "infinito", "certeza". Ficamos apalermados pelo vigor da experiência, pelo absoluto das nossas sensações, até que, depois de um longo tempo de crença, perde-se a aposta, o jogo termina e vamos para outra mesa do casino, onde tudo recomeça.

É quando o passado ganha uma nova cara e novos significados.
O que era desespero transfigura-se em infantilidade, o que era perturbador torna-se risível, o que era intenso parece frugal. Você acreditou que era personagem de um melodrama, era assim que enxergava a história de dentro. Pulou para fora e agora só vê a parte amena, só a beleza da sua inocência. Aquela não é mais você, aquilo deixou de ser um tour de force, agora você se dá conta de que, quando se está no epicentro de um acontecimento, tudo parece maior do que é.

Estando em meio ao dilúvio, é inevitável sofrer, emocionar-se, dilacerar-se, abraçar todos os sentimentos inerentes àquele mergulho: não há como antecipar o amanhã, só existe a asfixia do hoje.

O consolo é lembrar que é só uma questão de tempo para tudo acabar num leve e agradecido "valeu!".


Martha Medeiros





terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Às vezes perdemos tudo






às vezes perdemos tudo
e aquilo que era estreito
e que habitava os dias
torna-se imenso
cresce desmedidamente no ventre das memórias
e quando não cabe lá dentro
rebenta o que cuidadosamente muralhámos
e inunda a planície em que pastam os nossos medos
no rebanho então tresmalhado do nosso passado

nesse momento dói tanto estar vivo

às vezes perdemos tudo
e aquilo que vivemos sem dar conta
e que no fundo éramos nós a respirar
grita-nos aos ouvidos que estamos a morrer
porque não sabemos viver quando perdemos tudo

grita-nos aos ouvidos que há oceanos que não sabemos muralhar
e que o nosso passado não existe realmente
porque perdemos o mapa da terra longínqua
da ilha esquecida
em que um dia o enterrámos

às vezes perdemos tudo
e aqueles que amámos à volta da mesa
a quem amarrámos as nossas mãos e jurámos amar para sempre
ficam tão longe
tão longe

e nessa altura desenterramos mesmo o que nunca chegámos a enterrar
mergulhamos sofregamente as mãos numa terra em ruínas
que outrora eram muralhas inabaláveis

sempre que perdemos tudo
percebemos que há minutos que são milénios imensos
e descobrimos que a vida que vivíamos sem dar conta
e que no fundo éramos nós a respirar
é um milagre cheio de elementos
que reconhecemos e em quem nos identificamos
um milagre onde habitam as pessoas a quem amarrámos as nossas mãos

e jurámos amar para sempre
um milagre que existe para lá das memórias que quisemos muralhar
e que no fundo nunca soubemos compreender



José Rui Teixeira
in, "Quando o Verão Acabar, Quasi"







................................................. largar a velha corda





A nossa necessidade de segurança faz-nos procurar uma nova corda antes de largarmos a velha.
Mas se não largamos a velha antes de encontrarmos a nova, é muito provável que os velhos padrões se transfiram para a nova.

A evolução só acontece quando nos atrevemos a largar a velha corda e caminhamos um tempo sem encontrar a nova.
É nesse tempo mágico que a alquimia se dá.
É nesses passos inseguros que aprendemos a confiar na vida e a ler os sinais à nossa volta.
É vibrando nessa nova energia, nesse misto de medo e excitação que fazemos atrair circunstâncias e pessoas que nos levam à nova corda.
É durante essa caminhada desconfortável que a nossa essência se revela, que nos reconectamos com a Fonte pois só aí, livres dos velhos apegos e da velha corda, estamos disponíveis para encontrar uma nova.


Vera Luz





segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Quando fores velha





Quando fores velha e grisalha e cheia de sono
E sentires a cabeça a cair diante da lareira
traz este livro para o teu colo e lê-o devagarinho, 
sonhando com o suave olhar
Que tinham os teus olhos e as tuas sombras sem fim;

Quantos amaram os teus momentos de graça e felicidade
E amaram a tua beleza com amor falso ou verdadeiro;
Mas um homem amou em ti a alma peregrina
E amou as mágoas do teu rosto enquanto mudava;

E debruçando-te sobre o brilho da lenha a arder,
Lembra-te, em voz baixa, 
de como o Amor voou
E passeou alto sobre as montanhas
Escondendo o rosto entre uma 
multidão de estrelas.


WILLIAM BUTLER YEATS





When You Are Old

When you are old and grey and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;

How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;

And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face amid a crowd of stars


WILLIAM BUTLER YEATS




A SOGRA E A NORA





Era uma vez uma jovem chinesa chamada Lin, que se casou e foi viver com o marido na casa da sogra. Passado algum tempo, Lin começou a perceber que não se adaptava à mãe de seu esposo. Seus temperamentos eram muito diferentes e a jovem se irritava com muitos dos hábitos e costumes da sogra, os quais criticava cada vez com mais frequência.

Com o passar dos meses as coisas foram se tornando cada vez piores, a ponto da convivência se tornar insuportável naquela casa. Contudo, segundo as antigas tradições da cultura chinesa, a nora tem que estar sempre a serviço da sogra e obedecer-lhe em tudo.

Mas a jovem Lin, não aguentando a ideia de viver com a aquela mulher por mais tempo, tomou a decisão de ir em segredo consultar um Mestre, velho amigo do seu pai. Depois de ouvir a jovem, o Mestre Huang pegou um ramalhete de ervas medicinais e disse-lhe:

– “Para te livrares da tua sogra, não deves usar estas ervas de uma única vez, pois isso poderia causar suspeitas. Misture-as com a comida, pouco a pouco, dia após dia, e assim ela vai sendo envenenada lentamente.”

Lin ouviu as palavras do Mestre, que continuou:

– “E para teres a certeza de que, quando ela morrer, ninguém suspeitará de ti, deverás ter muito cuidado em tratá-la sempre com muita amizade. Não discutas e ajuda-a a resolver os seus problemas.”

Ao que Lin respondeu:

– “Obrigado, Mestre Huang; farei tudo o que me recomenda”.

Lin ficou muito contente e voltou entusiasmada com o projeto de assassinar a sogra. Durante várias semanas serviu, dia sim, dia não, uma refeição preparada especialmente para a sogra. Tinha sempre presente a recomendação de Mestre Huang para evitar suspeitas: controlava o temperamento, obedecia à sogra em tudo e tratava-a como se fosse a sua própria mãe.

Passados seis meses, toda a família estava mudada. Lin controlava bem o seu temperamento e quase nunca se aborrecia. Durantes estes meses, não teve uma única discussão com a sogra, que também se mostrava muito mais amável. As atitudes da sogra mudaram ao ponto em que ambas passaram a tratar-se como mãe e filha.

Certo dia, Lin foi procurar o Mestre Huang para lhe pedir ajuda:

– “Mestre, por favor, ajude-me a evitar que o veneno venha a matar a minha sogra. É que ela transformou-se numa mulher agradável e hoje gosto dela como se fosse a minha mãe. Não quero que ela morra por causa do veneno que lhe dou.”

Mestre Huang sorriu e abanou a cabeça:

– “Lin, não te preocupes. A tua sogra não mudou. Quem mudou foste tu. As ervas que te dei são vitaminas para melhorar a saúde. O veneno estava nas tuas atitudes, mas foi sendo substituído pelo amor e carinho que lhe começaste a dedicar.”



Giordano Cimadon





sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

Noite de Estio





Notas suaves ecoam pelo quarto
Numa calma noite de Estio.
A natureza ascética da música envolve-me,
Transportando-me para fora da loucura humana.

Conduz-me à profundidade
De um sentimento devolvido,
Enlevando-me em imagens metafóricas
Que me revelam o significado
De tudo o que é etéreo.

Silêncios cortados
Pelo ambiente orfeico,
Onde, te olhando,
Me deleito no brilho de uma alma
Que me concede o donaire de um sentimento dúctil.

Sensações auditivas
Acalentam a visualização de um corpo nu, arqueado
Que contém a lubricidade que quero tangível.
Tronco descaído,
Os cabelos livres, em queda
Realçando a sensualidade de cumes cor de terra
E vales de alabastro cujas torrentes
Anseio percorrer

A beleza aflorada
Nas projecções vertidas nas paredes,
Quais sombras chinesas,
Ao som das notas que discorrem novos firmamentos.

Eis que realizo que o engenho do amor
Se revela no mais ínfimo grão das percepções sensorais,
E no domínio do supremo dom de ousar ouvir
O apurar do Universo rumo ao esperado parto
Em que te direi, amena, mansa e simplesmente:
“Amo-te!” 


Rui Amaral Mendes