terça-feira, 24 de janeiro de 2017

DOIS MEDOS





O que espantava mais Buchmann era o modo como o medo e a velocidade, a determinada altura, se misturavam, deixando de ser possível apontar alternadamente para um e para outro. Estava-se já perante uma nova substância – como o hidrogénio e o oxigénio na molécula de água – substância (medo/velocidade) mais explosiva que dinamite.
       
Ou, talvez com mais exactidão: o grande rastilho do mundo, pois essa mistura não era ainda a explosão mas o trajecto que terminaria na grande explosão. Seremos tanto mais fortes, dizia Buchmann a Kestner nas suas conversas sobre estratégia, quanto mais conseguirmos infiltrar na população esta mistura: movimento rápido e temor. Não os deixar parar para que não deixem de ter medo. Não deixar de os amedrontar para que não parem.
       
Havia, portanto, dois medos, e não apenas um. O primeiro medo arrancava as coisas da sua imobilidade e o segundo, o mais poderoso, mantinha as coisas em movimento. Quando dez mil habitantes de uma determinada etnia, desprotegidos e constituídos quase por completo por velhos, mulheres e crianças, fugiam de um local ao receber essa terrível informação do avanço dos outros, quando tal acontecia, esse primeiro movimento de abandono das terras natais era impulsionado por um primeiro medo. Porém, o que fazia com que esses refugiados, depois de caminharem a pé duzentos quilómetros ainda avançassem o mais velozmente possível, esquecendo já os mais fracos e os que começam a desfalecer, o que fazia com que isso acontecesse, duzentos quilómetros mais tarde, era o segundo medo, o mais poderoso, aquele que mantém em movimento o que está já, há muito, em movimento. Este segundo medo é tão forte que faz vencer a fadiga limite: chegará a noite e nenhum elemento desejará descansar.


Gonçalo M. Tavares
in,  Aprender a Rezar na Era da Técnica 



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