terça-feira, 29 de dezembro de 2020

PASSAGEM DO ANO






O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus…

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles… e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
in, ROSA DO POVO






A Vida





A vida decepciona-te para parares de viver com ilusões, e para veres a realidade.
A vida destrói todo o supérfluo até que reste somente o importante.
A vida não te deixa em paz, para que deixes de te culpar, e aceites tudo como “É”.
A vida vai tirar-te o que tens, até parares de reclamar e começares a agradecer.
A vida envia pessoas difíceis para te curar, para deixares de olhar para fora e começares a reflectir o que tu és por dentro.
A vida permite que tu caias de novo e de novo, até que decidas aprender a lição.
A vida tira-te do caminho e apresenta-te encruzilhadas, até que tu pares de querer controlar tudo e fluas como um rio.
A vida coloca os teus inimigos na estrada, até que tu pares de “reagir”.
A vida te assusta e assustará quantas vezes for necessário, até que tu percas o medo e recuperes a fé.
A vida tira-te o teu amor verdadeiro, não concede ou permite, até que tu pares de tentar comprá-lo.
A vida distancia-te das pessoas que amas, até entenderes que não somos este corpo, mas a alma que ele contém.
A vida ri-se de ti muitas e muitas vezes, até tu parares de levar tudo tão a sério e começares a rir de ti mesmo.
A vida quebra-te em tantas partes quantas forem necessárias para a luz penetrar em ti.
A vida confronta-te com rebeldes, até que tu pares de tentar controlar.
A vida repete a mesma mensagem, se for preciso com gritos e tabefes, até tu finalmente ouvires.
A vida envia raios e tempestades, para te acordar.
A vida humilha-te, e por vezes derrota-te de novo e de novo, até que tu decidas deixar o teu ego morrer.
A vida nega-te bens e grandeza, até que pares de querer bens e grandeza e comeces a servir.
A vida corta a tuas asas e poda as tuas raízes, até que não precises de asas nem raízes, mas apenas desapareças nas formas e o teu ser voe.
A vida nega-te milagres, até que entendas que tudo é um milagre.
A vida encurta o teu tempo, para te apressares a aprender a viver.
A vida ridiculariza-te até te tornares nada, ninguém, para então te tornares tudo.
A vida não te dá o que tu queres, mas o que tu precisas para evoluir.
A vida magoa-te e atormenta-te até que tu soltes os teus caprichos e birras, e aprecies a respiração.
A vida te esconde tesouros até que tu aprendas a sair para a vida e buscá-los.
A vida nega-te Deus, até que consigas vê-lo em todos e em tudo.
A vida acorda-te, poda-te, quebra-te, desaponta-te… Mas acredita, isso é para que o teu melhor se manifeste… até que só o AMOR permaneça em ti.



Bert Hellinger





quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

I Dream I'm the Death of Orpheus



Anka Zhuravleva





I am walking rapidly through striations of light and dark thrown under an arcade.

I am a woman in the prime of life, with certain powers
and those powers severely limited
by authorities whose faces I rarely see.
I am a woman in the prime of life
driving her dead poet in a black Rolls-Royce
through a landscape of twilight and thorns.
A woman with a certain mission
which if obeyed to the letter will leave her intact.
A woman with the nerves of a panther
a woman with contacts among Hell’s Angels
a woman feeling the fullness of her powers
at the precise moment when she must not use them
a woman sworn to lucidity
who sees through the mayhem, the smoky fires
of these underground streets
her dead poet learning to walk backward against the wind
on the wrong side of the mirror.



Adrienne Rich





Para vencer é preciso arriscar


Gabriel Barceló
Exposição "Rostros Andinos"





- As serpentes podem ser muito perigosas. - Explicou Mama Maru.
Existem três tipos de serpentes: 
O primeiro tipo são as serpentes que se assustam ou fogem facilmente e que, assim que ouvem os passos de alguém escapam e só atacam quando estão encurraladas; 
O segundo tipo são as serpentes agressivas, perversas, com um carácter terrível e que, quando se zangam, costumam andar às voltas, e quando não conseguem morder, mordem-se a si mesmas acabando por suicidarem-se, tal como fazem os seres humanos; 
O terceiro tipo são serpentes serenas, normalmente de grandes dimensões, pacíficas e sábias, chegando até a proteger as crianças em situações de perigo, e que habitualmente morrem de fome ou de morte natural.
(...)
- Há duas maneiras de domar as serpentes, disse Mama Maru a Kantu.
Com a Voz e com o Olhar.

(...)
É assim que se deve domar as serpentes.
E é assim que deves superar o medo. - Concluiu Mama Maru.
Na vida, não basta saber conviver com as serpentes, é fundamental aprender a conhecer e a enfrentar as serpentes de qualquer espécie.
Terás de usar a tua força mental para domares as serpentes e persuadi-las de que não podem e não devem morder-te, porque és mais forte do que elas. 
Terás de infundir muita força às tuas palavras, fazendo com que os sons venham do teu ventre; só assim as conseguirás subjugar; e para as domares totalmente terás de usar os olhos. 
Não podes duvidar, um instante que seja, de ti própria, do teu poder, da tua vontade - recomendou-lhe Mama Maru.
(...)
A verdadeira mulher deve mover-se como a serpente: aproxima-se e afasta-se sem dar nas vistas.
O movimento da mulher deve ser como uma carícia.

(...)
- Vês? Já as dominas. mereceste o direito de entrar para o grupo das Mulheres Serpente, das mulheres que venceram a guerra, das mulheres que conhecem a impiedosa guerra que aflige o mundo. 
Nós pertencemos a outra classe: 
somos mulheres apaixonadas pela vida e pela morte.
Acabaste de abrir outra porta. - Disse-lhe Mama Maru.
(...)
Agora, Kantu mereceu entrar para o grupo das Amaru.
Agora, era uma Mulher Serpente!
Agora Kantu sabia que a Serpente é um animal poderoso, enérgico, mas também que a mulher é muito mais poderosa e enérgica. Começou a compreender o significado do símbolo da mulher que pisa a cauda da serpente, utilizado por algumas religiões. 
Compreendeu que a mulher possui uma força interior muito poderosa que pode projectar-se para o exterior através da Voz e dos Olhos.
Mas para isso, a mulher tem de ter nervos de aço, uma enorme determinação, coragem, audácia, astúcia, e muita paciência. 
Atributos que Kantu demonstrou possuir.
Sentia-se muito mais segura de si, agora sabia que era capaz.
Aquela experiência demonstrou-lhe que sempre possuíra aquela força dentro de si, só que antes não sabia como projectá-la para o exterior.
(...)
- Para obter o que quer que seja na vida, temos de ousar, temos de enfrentar os obstáculos que se apresentam diariamente na nossa estrada e que fazem parte da nossa vida.
Temos de ser audazes e arriscar.
Os obstáculos superados fortalecem-nos e fazem-nos crescer como seres humanos porque nos valorizam. - Explicou Mama Maru.




in, A Profecia da Curandeira
Hernán Huarache Mamani








terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Era Urso?





Um urso hiberna na floresta e depois de meses acorda no pátio de uma fábrica que ali, no inverno, fora construída. Todos o tratam como um operário barbudo e imundo que precisa tomar banho para assumir o trabalho sem mais demora.
O que se segue é um embate feroz entre a argumentação do Urso, pautada em sua certeza de quem ele é, e todos os outros – o Vigia, o Chefe, o Gerente, o Diretor, o Vice-presidente e as respectivas todas Secretárias – que desdenham de seu engano e afirmam em coro que ele não passa de um vagabundo que mente.
O Presidente, quando por fim é acionado, do alto de sua presidência, profere tranquilamente a sentença: – Caaaaalma, meu filho. Você está muuuuuuito nervoso. Não precisa esconder nada… Sei muito bem que você não é urso. Faça a barba, tome banho, troque de roupa e vá trabalhar.
E como o Urso ainda assim insiste, para que se convença de uma vez por todas, levam-no ao Zoológico e ao Circo, lá onde vivem os ursos, lá onde se fosse urso certamente estaria.
O que lhe dizem os bichos – os ursinhos, inclusive – é que ele é um impostor, um vagabundo querendo se passar por urso! E trazem de volta o coitado para trabalhar com os operários.

Passa o tempo, passa de novo o tempo, e um dia a fábrica fecha…
Vão todos embora, mas o Urso não tem para onde voltar.
Olha para o céu e avista um bando de gansos voando para os trópicos – sabia que os gansos só voam naquela direção quando chega o inverno. Procura uma toca para se enfurnar, mas quando por fim encontra lhe vem à cabeça a imagem do Vigia, do Chefe, do Gerente, do Diretor, do Vice-presidente e do Presidente e da sua condição de humano, demasiado humano: – Eu não posso entrar na toca. Não sou um urso. Sou apenas um homem preguiçoso, que precisa tomar banho, fazer a barba e trocar de roupa.

O frio aumenta e aumenta e ele tem saudade do quentinho da fábrica…
Quando não dá mais para suportar, levanta-se, afasta a neve em redor e caminha para a toca – lá na certa haveria calor. Entra com dificuldade, deita-se lá no fundo, se espreguiça, boceja, coça a barriga, deita-se outra vez de costas, cochila, dorme e sonha… que era um Urso.


Adaptação feita por Rosaura Soligo 
de Esdras do Nascimento, 
adaptado do original de Frank Tashlin (Ediouro, 1994).





Staind - It's Been Awhile (Official Video)

domingo, 6 de dezembro de 2020

Be as fresh as consciousness


Laura Zalenga



What you are is magnificent;
what we believe we are is so limited.
We don’t need to carry on this personal story.
It is not contributing to the beauty and freedom of your life.
Don’t be enslaved by the conditioned or indoctrinated mind.
It wants you to make anniversaries out of your pain—forget about it.
You don’t have to be so loyal, so faithful
to any tendency that causes suffering.

Often we ruminate over the past, not in order to be free,
but to strengthen the sense of ‘me’.

We say we can’t change the past, but yes you can!
Did you perceive it right in the first place?
Who is to say your perception is a fact?

It would be a futile and unending task
to search for the innumerable strands that have contributed
to the person you take yourself to be; mostly they are untraceable.
Better just drop the whole thing
and thus remain empty of conceptual debris.
Be fresh every moment.
Be as fresh as consciousness—history-less and happy.


~ Mooji


Seres Inteiros





Antigas formas de se relacionar não funcionam mais, nem antigos paradigmas de amor romântico, posse, sacrifício, culpa, de "salvar" o outro e depositar nele a nossa felicidade. Cada pessoa necessita trabalhar seus padrões emocionais, suas dores e dissabores, para não repetir sempre as mesmas situações nas relações. Necessitamos desenvolver relacionamentos mais íntegros, com respeito à individualidade e às peculiaridades de cada um. Não são metades que se buscam, mas seres inteiros que, nesta inteireza, são capazes de compartilhar aprendizagens e evolução. É um desafio e tanto, mas somente dessa forma é que evoluiremos como indivíduos e como parceiros de vida. 
Isabel Mueller




quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

The Pawn


 Victoria Ivanova





As I often watch people playing chess
my eye follows one Pawn
that little by little finds his way
and manages to reach the last line in time.
He goes to the edge with such eagerness
that you reckon here surely will start
his enjoyments and his rewards.
He finds many hardships on the way.
Marchers hurl slanted lances at him;
the fortresses strike at him with their wide
flanks; within two of their squares
speedy horsemen artfully
seek to stop him from advancing
and here and there in a cornering menace
a pawn emerges on his path
sent from the enemy camp.

But he is saved from all perils
and he manages to reach the last line in time

How triumphantly he gets there in time,
to the formidable last line;
how eagerly he approaches his own death!

For here the Pawn will perish
and all his pains were only for this.
He came to fall in the Hades of chess
to resurrect from the grave
the queen who will save us.



C.P. Cavafy



Álbum de Família





Família é sempre um prato cheio – e agridoce. 
Amor e ódio, atração e rejeição, acolhimento e desprezo, idealizações e desilusões, carinho e perversidade: um cardápio sortido de emoções contraditórias distribuídas sobre a mesa. 
Em volta dela, nós, famintos por compreensão e tendo que ser diplomáticos e civilizados até que uma provocação nos faça perder as estribeiras.

A questão é que entre família não há divórcio. Não existe ex-pai, ex-mãe, ex-filho, mesmo que se suma do mapa, mesmo que peguemos a estrada para o mais longe possível. DNA é praga. Não tem rota de fuga. Nasceu, está danado. Então, melhor condescender do que se estressar. 

Há famílias mais serenas do que outras, mais afetuosas do que cínicas, mais cinematográficas do que teatrais. Ainda assim, sempre haverá um papel para cada um de seus membros: o de vilão, o de vítima, o de playboy, o de trabalhador, o de folgado, o de frágil, o de problemático, todos apegados aos motivos que os levaram a ser como são.

E eles se acusarão a vida inteira, e se defenderão, e nunca haverá um consenso, e de nada adiantará tanto berro: de dramáticos passarão a patéticos, inevitavelmente.
Tragédia e comédia cedo ou tarde dão-se as mãos, elas que também são da mesma família.



Martha Medeiros