quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

O ISIS é a Arábia Saudita




A maioria dos muçulmanos pensa que a sharia é divina, mas na verdade é uma construção humana na História. É uma lei construída no século IX, quase 250 anos depois da morte do Profeta. O que é interessante é que até aí havia racionalismo na cultura muçulmana, não havia sharia, não havia hadiths [conjunto de ditos de Maomé], eles estavam a reuni-los nessa altura. E nesse período clássico inicial, a sociedade islâmica fervilhava de ideias, pensamento e aprendizagem. Quando a sharia foi formulada, os teólogos inventaram uma espécie de truque para aumentar a confiança nestas regras, sugerindo que a sharia era divina. Mas a maior parte da sharia vem dos ditos do Profeta, que são fabricados.
É uma espécie de dogma manufacturado. Isso pode ser demonstrado muito claramente. Por exemplo, a sharia diz que um apóstata [alguém que abandona a religião] deve ser morto, mas o Corão diz que não há pertença compulsiva ao islão. A sharia diz que a mulher tem um estatuto inferior e deve cobrir-se, mas o Corão diz que homem e mulher são iguais. Há muitos aspectos da sharia que estão em completa contradição com o Corão. Afirmar que a sharia é divina é totalmente ridículo e grande parte do fundamentalismo vem de aceitar a sharia como lei divina.

Quando os poderes coloniais chegaram também marginalizaram essa parte da História.
Se olharmos para a História da Ciência, parece que começa com a Grécia e depois é como se não tivesse acontecido nada até ao Iluminismo. Mas o próprio Iluminismo nunca teria acontecido sem a Filosofia e o pensamento muçulmanos. Muitos dos componentes básicos do Iluminismo vêm do que chamamos literatura adab, a literatura da ética e do humanismo, que criou universidades, instituições académicas, professores, condutas para ser um bom ser humano, condutas de boa governação. O Iluminismo adaptou todas as partes da literatura adab, que se tornou na sua base. Por exemplo, na literatura adab era obrigatório aprender tudo na língua clássica, o árabe, o Iluminismo não tinha nenhuma e foi buscar o latim. Passou a ser preciso aprender latim para ser um bom estudioso. O colonialismo relegou toda a cultura anterior para as margens, renegando o conhecimento do islão. Para mim, a História da Europa é tanto islâmica como qualquer outra coisa, não haveria Europa sem islão. Os jovens crescem sem saberem nada desta História e acreditam no que os fundamentalistas dizem sobre o islão.

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Na Europa, ainda há uma versão romantizada do colonialismo, a verdade do colonialismo não é ensinada nas escolas e nas universidades, a sua brutalidade. É como se pensássemos que fizemos bem, que civilizámos esses países. Mas muito do sofrimento que ainda existe nalguns destes países é um produto do que os europeus lá fizeram. Os portugueses foram brutais em África, horrendos. Criando estes mitos e perpetuando-os só contribuímos para perpetuar a opressão e a injustiça. Temos de ensinar essa História para podermos ter um mundo mais harmonioso.





O fundamentalismo actual não tem nada a ver com o início do islão nem com a sua herança racional.
Não, vem de uma área muito específica, vem da Arábia Saudita e da ideologia wahhabita. Até 1925, 1930, havia diferentes tradições do islão e pessoas que concordavam com umas e com outras. Havia jihads, mas tinham princípios éticos, eram lutas contra o colonialismo e o imperialismo, com regras claras, era proibido atacar civis, matar mulheres e crianças, matar prisioneiros. Jihad [guerra santa] não significa declarar guerra a toda a gente. Mas quando a Arábia Saudita se tornou numa petro-monarquia e começou a exportar a sua ideologia, tudo mudou. Os sauditas foram muito espertos, foram a todo o mundo construir mesquitas e madrassas [escolas corânicas] e depois enviaram os seus imãs [quem lidera as orações], professores e livros. E incentivavam toda a gente a ir estudar em Meca e Medina. Conseguiram exportar o wahhabismo para todo o mundo muçulmano.

Até aos anos 1920, os wahhabitas eram uma seita muito minoritária e as pessoas gozavam com eles, eram considerados fanáticos iletrados sem relevância. Mas esta seita tornou-se na ortodoxia muçulmana. E hoje, há duas questões fundamentais aqui. Por um lado, os muçulmanos aceitam esta ideologia porque reverenciam a Arábia Saudita de forma acrítica. Por ser lá que estão Meca e Medina, assume-se que como o Profeta nasceu em Meca estas pessoas teriam o melhor conhecimento do islão, quando têm o pior. Por outro, as potências ocidentais, a América, o Reino Unido, a França, a Alemanha, apoiaram a Arábia Saudita e os estados do Golfo por motivos económicos e militares, eles compram as armas que estes países produzem. Ao apoiar a Arábia Saudita, ignorando o seu fanatismo, dão-lhes liberdade de acção.

Wahhabismo e salafismo, a doutrina que se diz estar na base da ideologia da maioria dos grupos terroristas como a Al-Qaeda e o autodenominado Estado Islâmico, são quase iguais.
Essencialmente ambos defendem a interpretação literal do Corão e a aceitação da sharia como divina. Há salafistas e outros, mas no fundo são diferentes tipos de wahhabismo.

A própria organização de grupos como o Estado Islâmico se inspira no modelo saudita.
A ideia de um líder que não pode ser questionado e que é reverenciado.
As pessoas perguntam-me muitas vezes ‘de onde vem o ISIS’ [Estado Islâmico do Iraque e de al-Shams, como o Estado Islâmico se chamava a si próprio antes de declarar um califado, no Verão de 2014] e ‘como é o que o ISIS apareceu assim, tão depressa’.
A resposta às duas perguntas é muito simples.
O ISIS não apareceu do nada, sempre existiu, o ISIS é a Arábia Saudita.
Se olharmos para as leis que o ISIS pratica são exactamente as mesmas em vigor na Arábia Saudita [onde as mulheres têm de ter um guardião masculino e andar cobertas, e crimes como a blasfémia são sentenciados como chicotadas ou alguém que tenha cometido adultério pode ser condenado à morte]. Só há uma diferença entre o ISIS e a Arábia Saudita, a Arábia Saudita comete as suas atrocidades atrás de uma cortina enquanto o ISIS transforma as suas atrocidades em vídeos do YouTube. O ano passado, na verdade, mais pessoas foram executadas na Arábia Saudita [oficialmente, 151] do que pelo ISIS. Mas quando o rei [Abdullah] saudita morreu [em Janeiro], o primeiro-ministro britânico foi à Arábia Saudita e bandeira britânica foi colocada a meia haste.

Dizer que se vai fazer alguma coisa para combater a radicalização e o fanatismo e o terrorismo e depois continuar a apoiar a Arábia Saudita não faz sentido. Se atacarmos e destruirmos o ISIS, vai aparecer outro ainda pior no seu lugar.
Atacámos e quase destruímos a Al-Qaeda, que agora está a regressar, mas isso não foi o fim do fundamentalismo violento, o ISIS ocupou o seu lugar.
Temos de atacar a Arábia Saudita.
No filme Aliens, a protagonista, Ripley, vê o monstro extraterrestre que está a pôr ovos e estes tornam-se nos extraterrestres que vimos no primeiro filme. Os ovos são a Al-Qaeda e o ISIS, mas o monstro é a Arábia Saudita e o wahhabismo saudita.
Para fazer alguma coisa, é preciso destruir o monstro, não os ovos.

Bombardeiam-se os países onde o Isis está presente e, pelo meio, matam-se civis e perpetua-se este processo. Contribui-se para a radicalização. Alguns dos sírios que estão a ser bombardeados vão acabar por se juntar a grupos terroristas e aumentar o seu poder.

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Há 20 anos os pregadores extremistas só podiam chegar aos muçulmanos numa mesquita.
Agora, as pessoas vão até eles, podem aceder a centenas de milhares de pessoas por canais de YouTube ou de televisão. No Reino Unido temos 56 canais digitais que são basicamente canais de oração com doidos fundamentalistas a pregar lixo.
Depois ainda há o Facebook e o Twitter.
Basicamente, os extremistas têm o mundo todo aberto.
A radicalização acontece nos velhos e nos novos media. Mas a maioria desta pregadores ou são sauditas ou qataris ou foram educados pela Arábia Saudita, e quando não são, os sauditas encontram forma de os enquadrar, convidam-nos, premeia-nos, e financiam estes canais.


Ziauddin Sardar
Reformista Muçulmano


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