terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Violência sem classe




Uma vida marcada na primeira chantagem, na primeira agressão. E que se repete, sempre. Até ao dia em que ela ou ele furam o bloqueio do silêncio imposto pelo medo, pela vergonha. Têm a coragem de se assumir como vítimas. Hoje celebra-se o Dia dos Namorados, tempos de corações vermelhos trespassados por setas de Cupido, dia de troca de rosas. Ou mensagens lamechas.
E, enfim, do comércio faturar mais do que o normal.

O Dia de S. Valentim - o santo que desafiou Cláudio, o imperador adverso ao casamento dos jovens antes de entrar no seu exército - transformou-se, também, num dia de denúncia. 
Nunca é de mais lembrar: chantagem e posse são palavras interditas numa relação a dois.

Mas a realidade amorosa, em certos casos, é dura, e os sinais surgem muito mais cedo do que seria expectável. Há crianças de 13 anos vítimas de violência no namoro. Os resultados de um inquérito desenvolvido pela UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) deixam a nu uma realidade preocupante. Por exemplo, 24 por cento dos jovens ouvidos consideram normal partilhar, nas redes sociais, fotos íntimas ou insultar. Normal, a posse; normal, o insulto. E uma percentagem menor - mas ainda muito mais jovens do que seria razoável - legitima a violência psicológica.

Um longo caminho foi, no entanto, feito. A perceção de que a violência existe é a grande conquista, embora jovens e também adultos considerem apenas como ato violento a agressão física. Nada mais perigoso. Estudos recentes, em que a UMAR e a Associação de Apoio à Vítima assumem papel fundamental na denúncia e na pedagogia, revelam algo escondido durante muitos anos. Na violência não existe classe social, e nem diminui à medida que as habilitações académicas aumentam. 

Não deixa de ser surpreendente alguém, formado e informado, independente e autónomo, permitir que o outro controle os seus passos, as suas amizades, o comprimento da saia ou a parte do corpo que fica a descoberto.
Não deixa de ser surpreendente que alguém formado e informado, independente e autónomo, seja maltratado, hospitalizado, uma, duas, três vezes... perca a conta das agressões e continue a sofrer em silêncio. 

O Dia de S. Valentim é ridículo, soa a falso. Mas continuaremos a celebrá-lo para que as vítimas daqueles que lhes deveriam dar afeto possam acordar e inverter a velha máxima: o silêncio é de ouro. O silêncio é o inimigo, o principal aliado de quem agride e humilha.
Assim, além de fomentar o negócio, o santo casamenteiro, nos novos tempos, desperta também as consciências.



Paula Ferreira




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