Ancestralidade,
noção do comum,
tecnologia e
luta das mulheres
na visão da historiadora italiana Silvia Federici
Tal como Silvia Federici explica no seu livro "Caliban e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva", as autoridades seculares eventualmente descobriram a estratégia popular de dar tudo o que as mulheres tinham aos homens inclusive as próprias mulheres.
Na obra, ela conta a transição do feudalismo para o capitalismo, mostrando a violência empregada para derrotar os movimentos que organizavam a vida a partir da comunidade e do compartilhar das riquezas, e não pelo feudo ou pelo Estado.
A professora de 74 anos falou sobre a noção do comum, a ancestralidade, o trabalho doméstico e as lutas das mulheres.
As vozes dos escravos, na figura do personagem shakespeariano Caliban, e das mulheres, condenadas como bruxas, estão vivas nas lutas do nosso tempo e também na produção da autora.
Os funcionários públicos não se esqueceram de contabilizar o valor económico do trabalho feminino; foi, pelo contrário, explicitamente excluído da contabilidade económica - declarou-se não ter valor. Os comerciantes (homens) coordenavam boicotes às mulheres que tentavam ser comerciantes assim como aos homens que trabalhassem com elas.
As mulheres que persistissem em tentar qualquer negócio/profissão eram humilhadas, chamadas de prostitutas ou bruxas ou atacavam-nas sem sofrer represálias.
Eventualmente presumia-se que uma mulher que estivesse em público sozinha era uma bruxa ou uma prostituta. A violência contra as mulheres era normal e tinha cariz sexual.
As mulheres eram cada vez mais levadas a prostituirem-se se nenhum homem as suportasse financeiramente ou quando eram excluídas do seu círculo social por causa de acusações de mau comportamento, relações ilícitas ou abuso sexual.
Na prostituição os homens importantes da comunidade podiam torturar essas mulheres à vontade, sendo elas as únicas sujeitas a sanções legais.
Afim de participar na resolução do problema da população revoltada e adquirir o seu quinhão de riquezas, a igreja aprovou e abençoou com o selo divino esta destruição dos direitos e independência das mulheres.
Os padres inventaram as bruxas. Ou seja, inventaram mulheres que adoravam o diabo e tinham sexo com ele, o que lhes dava poderes caricatos que o historiador feminista Max Dashu chama de diabolismo.
Além disso a igreja afirmava que tudo o que não fosse aprovado como cristão era diabolismo.
Mas não havia nenhumas bruxas tal como a igreja as define.
A imagem pornográfica e diabólica descrita no Malleus Maleficarum não se refere a nenhuma pessoa existente. Na maior parte nem sequer se refere a coisas possíveis, apesar do facto que algumas práticas indígenas espirituais e curas para mulheres serem incluídas como evidências de bruxaria.
Bruxas eram apenas mulheres.
Era isso que os homens queriam dizer nas suas próprias palavras.
India Melodia
Silvia Federici examina o extermínio das bruxas como um acto fundamental do sistema capitalista que domestica mulheres, impondo-lhes a reprodução da força de trabalho como trabalho forçado sem remuneração.
É no modo de desenvolvimento desse trabalho reprodutivo que Federici encontra um terreno central de luta para o movimento das mulheres.
Isto não é um conto de fadas, nem é simplesmente sobre bruxas.
As bruxas expandiram-se em outras mulheres e personagens próximas: a herege, a curandeira, a parteira, a esposa desobediente, a mulher que ousa viver sozinha, a mulher obeah (praticante de magia secreta) que envenenou a comida do mestre e inspirou os escravos a se rebelarem.
O capitalismo, desde as origens, persiste e combate essas mulheres com fúria e terror.
Em Caliban e a Bruxa, Federici faz as perguntas fundamentais sobre essa figura emblemática da mulher:
- Porque é que o capitalismo, desde o início, precisou guerrear contra essas mulheres?
- Porque é que a caça às bruxas é um dos massacres mais brutais e menos registados da história?
- O que é supostamente eliminado quando essas mulheres são condenadas à fogueira?
- Porque é possível esboçar um paralelo entre elas e os escravos negros das plantações na América?
Caliban é o rebelde anticolonial, o trabalhador escravo que se revolta; e a
Bruxa, deixada no pano de fundo pelo escritor inglês, agora toma a cena: sua aniquilação representa o início da domesticação das mulheres, o roubo do conhecimento que lhes dava autonomia para dar a luz, a conversão da maternidade em trabalho forçado, a desvalorização do trabalho reprodutivo como não-trabalho, e o crescimento difuso da prostituição diante da espoliação das terras comunitárias. Juntos, os nomes de Caliban e da Bruxa sintetizam a dimensão racista e sexista que o Capital tenta impor aos corpos, mas também as figuras desobedientes e plebeias através das quais eles resistem.
A Primeira Parte do livro fornece uma visão geral das lutas sociais no final da Idade Média, A Segunda Parte trata da dinâmica geral de desapropriações na Europa no final do século XV (daí a repressão dessas lutas pelo poder na transição para o capitalismo) Os dois últimos capítulos lidam com a opressão específica das mulheres durante este período, na Europa e na América do recém-colonizado. Durante este período, o corpo de trabalhadores é transformado em "ferramenta", enquanto que a das mulheres é dedicada à reprodução da força de trabalho. Ficam gradualmente despojadas dos seus meios de subsistência e actividades que anteriormente exerciam.
O exemplo da caça às bruxas é um bom lugar para esta história:
Segundo a autora, todos os hereges que são reprimidos-as no início do período de referência, em seguida, uma mudança é progressiva, mulheres pedintes ou ladrões, parteiras (que praticam o aborto e a contracepção), mas também as mulheres consideradas imorais (ou seja, exercendo a sua sexualidade fora do casamento e da procriação) são designadas como bruxas e duramente perseguidas.
A caça às bruxas foi inventada na Europa, mas mais tarde foi estendida às mulheres do "Novo Mundo", a fim de quebrar a resistência indígena à colonização implementada em grande parte por mulheres.
O trabalho não remunerado feminino que continua até hoje é a condição para a desvalorização da força de trabalho. Sem esse trabalho, a classe capitalista teria de fazer um grande investimento em todas as infraestruturas necessárias para a reprodução da força de trabalho e sua taxa de acumulação sofreria sérias consequências. Há também a questão do lado político subsequente a essa desvalorização e da consequente naturalização sobre o trabalho reprodutivo. Ele tem sido a base material para uma hierarquia na divisão do trabalho que divide mulheres e homens e que permite ao capital controlar a exploração do trabalho feminino de forma mais eficiente a partir do contrato de casamento e da relação marital, incluindo aí a ideologia do amor romântico, ao mesmo tempo que também pacifica os homens dando a eles uma serviçal a quem eles possam exercitar seu poder.
Assim se explica a reconstrução das relações patriarcais no capitalismo a partir da definição da função social das mulheres, assim como da questão da força de trabalho não remunerada na re/produção da sociedade.
Silvia Federici
Me gustaría pasar a otro tema y plantear la cuestión de la acumulación primitiva de la que hablas en Calibán y la bruja. Marx expuso cómo el capitalismo creció y obtuvo su acumulación originaria a través de la conquista, el robo y la esclavitud. En el libro expones tus ideas sobre la acumulación originaria, que se relacionan estrechamente con las de Marx, pero también guardan importantes diferencias.
¿Podrías explicarlas?
Silvia Federici:
La noción de acumulación primitiva fue elaborada por Adam Smith, de quien la tomó Marx para desarrollar sus propios argumentos. Marx explicó que para que se produjera el origen del capitalismo hubo un proceso previo de ordenamiento de algunas de las relaciones fundamentales y de acumulación de algunos de los recursos necesarios para que despegara el capitalismo.
En concreto, era necesario separar a los productores de los medios de producción.
Marx describe ese proceso como un periodo de acumulación primitiva, lo que equivale a decir, acumulación de tierra, trabajo y plata. En los siglos XVI y XVII tuvo lugar la conquista de una parte del continente americano y aquello trajo los recursos necesarios para impulsar la economía de mercado. En muchos lugares de Europa, empezando por Inglaterra y Francia, se inició el proceso de cercamientos que expropió a la mayoría del campesinado. Esto transformó progresivamente a una población de campesinos, granjeros, artesanos, etc., con cierto acceso a los medios de su reproducción, en poblaciones totalmente desposeídas y abocadas a trabajar por una miseria.
Lo que defiendo en mi libro es que la descripción que Marx hace de este proceso es extremadamente limitada. Probablemente él ve la importancia de la conquista colonial y de los cercamientos de tierras como esencial, pero lo que omite son otros procesos que, desde mi visión, son fundamentales para lo que se convertiría en la nueva sociedad capitalista.
En concreto, Marx ignoró el papel de la caza de brujas, que fue una guerra en toda regla contra las mujeres; cientos de miles de mujeres fueron arrestadas, torturadas, asesinadas y quemadas en las plazas públicas. Tampoco aborda el papel de la legislación que penalizaba todos los métodos de anticoncepción ni el control sobre el proceso de reproducción biológica, o las leyes que introdujeron un nuevo tipo de familia, un nuevo tipo de relaciones sexuales. Eso situó el cuerpo de las mujeres bajo la tutela del Estado. Lo que se empieza a ver con el desarrollo del capitalismo es una política que ve el cuerpo de las mujeres y la procreación como un aspecto fundamental para la reproducción de la fuerza de trabajo. En ese sentido, con el desarrollo del capitalismo, los cuerpos de las mujeres son convertidos en máquinas para la producción de trabajadores, lo que explica por qué esas leyes tan violentas y sangrientas contra las mujeres eran instituidas allí donde se aplicaba la pena capital para cualquier forma de aborto.
Lo que he señalado en Calibán y la Bruja es que hay otra historia que está por escribirse: una historia no solo del proceso de producción, sino de la transformación del proceso de reproducción de la fuerza de trabajo. Es una historia que ve cómo el Estado básicamente libra una guerra contra las mujeres, destruyendo su poder, relegándolas a posiciones de trabajo no remunerado.
Ese es el trabajo histórico que he realizado, que no solo añade un nuevo capítulo a lo que ya sabíamos de este periodo, sino que, de alguna forma, redefine lo que es el capitalismo y cuáles son los requisitos para la reproducción de la sociedad capitalista. Al escribir esta historia, he desarrollado un marco teórico que más tarde he utilizado para interpretar la reestructuración de la economía global.
En Calibán y la Bruja hablas de los juicios de brujas y elaboras el concepto de Marx de acumulación originaria, pero también amplías las categorías de aquello que es acumulado. Te detienes a examinar la tierra, el trabajo y el dinero, pero también hablas de los conocimientos de las mujeres sobre anticonceptivos, por ejemplo, y cómo fuimos desposeídas del conocimiento de nuestros propios cuerpos y de nuestra capacidad para reproducir o formar las familias que eligiéramos.
Silvia Federici:
¡Así es! Partiendo de esa reelaboración de la acumulación originaria puedes pensar en muchos otros cercamientos: no solo los relativos a la tierra, sino también el cercamiento del cuerpo. Tu cuerpo queda cercado en el momento en que estás tan aterrorizada que no puedes ni controlar tu propia reproducción, tu vida sexual. Podemos pensar en un cercamiento del conocimiento porque, por ejemplo, hubo un ataque contra los medios que las mujeres habían usado para controlar la procreación. Las mujeres eran transmisoras de una inmensa cantidad de saberes. Hoy podemos mirar con incredulidad hacia algunos de ellos y pensar que quizá no fueran muy válidos como métodos anticonceptivos fiables, pero, de hecho, se transmitieron muchas técnicas de generación en generación.
Mi objeción a la argumentación de Marx, siendo importante como es, es su limitada concepción del proceso de desposesión necesario para la creación del proletariado moderno.
Como resumiria o objectivo da caça às bruxas?
Silvia Federici:
As caçadas às bruxas foram instrumentais na construção da ordem patriarcal em que os corpos das mulheres, seu trabalho e seus poderes sexuais e reprodutivos foram colocados sob controle do Estado e transformados em recursos económicos. Ou seja, os caçadores de bruxas estavam menos interessados em punir uma determinada transgressão do que estavam em eliminar formas generalizadas de comportamento feminino que não toleravam mais e que deveriam se tornar abomináveis aos olhos da população.
É por isso que a acusação podia ser estendida a milhares de mulheres...
SF: A acusação de bruxaria tinha uma função parecida com a de “traição” – que, sintomaticamente, foi introduzida no código legal inglês por volta da mesma época – e com a acusação de “terrorismo” nos nossos tempos. A vagueza da acusação – o fato de que era impossível comprová-la e de que ela, ao mesmo tempo, invocava um horror máximo – implicava que ela poderia ser usada para punir qualquer tipo de protesto, com o objectivo de gerar suspeita, incluindo os aspectos mais ordinários da vida quotidiana.
Podemos dizer que em sua perseguição, uma grande batalha foi travada contra a autonomia das mulheres?
SF: Da mesma maneira que os cercamentos expropriaram as terras comunais do campesinato, a caça às bruxas expropriou os corpos das mulheres, “liberando-as” de qualquer obstáculo que pudesse atrapalhar seu funcionamento como máquinas para reproduzir a força de trabalho. A ameaça de serem queimadas na fogueira levantou barreiras formidáveis em torno dos corpos das mulheres, maiores do que as que foram levantadas pelo cercamento das terras comuns. Na verdade, podemos imaginar o efeito que teve sobre as mulheres verem suas vizinhas, amigas e parentes queimadas na fogueira, e perceber que qualquer tentativa de contracepção seria percebida como resultado de perversão demoníaca.
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