Manter-se ocupado é uma forma de preguiça:
Sogyal Rinpoche e o evitar das nossas questões reais
Com esta diferença: ele não se refere exactamente a uma “incapacidade de parar”, mas à atitude activa de “atrolhar nossas vidas com actividade compulsiva“, o que traz uma nuance notavelmente diferente. Por essa compreensão, estamos a encher os dias com movimento supérfluo, e nossa incapacidade de parar seria então uma consequência dessa compulsividade.
A preguiça, segundo Rinpoche, seria de enfrentar as questões reais de nossas vidas.
E de questões reais evitadas o mundo está cada vez mais cheio.
Mas quais são as questões reais?
Evitamo-las tão bem que nem sequer sabemos mais quais são. Enchemos nossos dias tão bem que está tudo bem evitado — até à próxima crise, pelo menos.
Mas por trás dessa activa compulsão de criar movimento, por trás dessa preguiça activa, obviamente deve haver alguma motivação mais profunda. Ninguém sai por aí a criar movimento compulsivo à toa. E como Rinpoche aponta, essa motivação tem a ver com não deixar nenhum tempo para as questões reais. Então seria a evitação pura e simples das questões reais, ou de algo que está envolto nelas, e que será trazido à consciência se dermos tempo a isso. A profundidade desse algo pode ser o próprio “obscurecimento ôntico“, uma expressão que é normalmente usada para se referir à ignorância do próprio ser, à ignorância de nós mesmos.
Nando Pereira
Eis o texto de Sogyal Rinpoche:
“Quantos de nós somos varridos pelo que eu chamo de “preguiça ativa”? Há naturalmente diferentes espécies de preguiça: a Oriental e a Ocidental. O estilo Oriental consiste em ficar à toa o dia inteiro ao sol, não fazendo nada, evitando qualquer tipo de trabalho ou atividade útil, tomando chá e fofocando com os amigos.
A preguiça Ocidental é bem diferente. Consiste em atrolhar nossas vidas com atividade compulsiva, de maneira tal que não exista nenhum tempo para enfrentar as questões reais.
Se nós olharmos para nossas vidas, veremos claramente quantas tarefas supérfluas, chamadas de “responsabilidades”, são acumuladas para preenchê-la. Um mestre as compara com o “serviço de limpeza em um sonho”. Nós dizemos a nós mesmos que queremos colocar nosso tempo em coisas importantes da vida, mas nunca há nenhum tempo. A simples atividade de levantar de manhã, já há tanto a fazer: abrir a janela, arrumar a cama, tomar banho, escovar os dentes, dar comida pro gato ou cachorro, lavar a roupa de ontem, ver se tem açúcar ou café, sair pra comprá-los, fazer o café da manhã – a lista é infinita. E há as roupas para escolher, passar e dobrar. E o cabelo? E a maquiagem?
Perdidos, assistimos nossos dias serem enchidos com ligações de telefone e projetos pequenos, com tantas responsabilidades — ou deveríamos chamar de “irresponsabilidades”?”
— Sogyal Rinpoche
in, “O Livro Tibetano do Viver e do Morrer”
pags. 19 e 20
Noutro trecho do mesmo livro:
“Nossas vidas parecem nos viver, possuindo seu próprio momentum bizarro, parecem nos carregar; no final sentimos que não temos escolha ou controle sobre ela. Claro que nos sentimentos mal por causa disso às vezes, temos pesadelos e acordamos suados, pensando: “O que estou fazendo com minha vida?”. Mas os medos duram apenas até o café da manhã; logo pegamos a mala e estamos de volta onde começamos.
Lembro do santo indiano Ramakrishna que disse a um de seus discípulos: “Se você gastar um décimo do tempo que você devota a distrações, como ir atrás de mulheres ou ganhar dinheiro, à prática espiritual, você estaria iluminado em alguns anos!”. Havia um mestre tibetano que viveu na virada do século, um tipo de Leonardo da Vinci dos Himalaias, chamado Mipham. Diziam que ele tinha inventado um relógio, um canhão e um avião. Mas assim que completou cada um deles, destrui-os, dizendo que teria sido somente a causa de mais distração.”
— Sogyal Rinpoche
in, “O Livro Tibetano do Viver e do Morrer”
pags. 19 e 20
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