domingo, 5 de fevereiro de 2017

Três Histórias de Amor




Tenho um grande desejo de solidão para pensar melhor em ti e em mim. Sobretudo para pensar em mim, porque me ignoro ainda totalmente e me vou perdendo de mim própria. Pensar em ti é pensar num passado que está morto porque não chegou sequer a existir. Pensar em mim é preparar-me para o novo presente e para todas as surpresas possíveis que hão-de vir. Não sei quem foi que me disse que pensar no futuro é o mesmo que viver no passado, eternamente preso a coisas mortas. Eu penso agora em mim como um lago tranquilo, imperturbável, enquanto as sombras velhas vão ficando para trás em divisões do tempo.

in, Quem Se Eu Gritar




Foi pena.
Foi pena. Foi pena porque eu já estava quase totalmente purificada, virgem de emoções, sensações e desejos, e no momento em que perdi a música comecei a naufragar e a afundar-me novamente naquele espaço hostil.
(...)
De qualquer modo a música lavou o fumo dos cigarros, lavou o riso e o vinho, lavou-me o corpo e a alma. A música foi como uma tempestade de chuva, cinzenta, miúda, penetrante e lavou-me de ti. Sinto-me outra vez capaz de pensar.

in, Quem Se Eu Gritar



O desejo de amar cresce como uma onda nas madrugadas frias, nas madrugadas lentas.
(...)
Acordei sozinha no meu quarto e senti-me profundamente triste e abandonada porque o tempo estava contra mim, pela primeira vez na minha vida.
O meu amor era a contra-relógio.
Agora as coisas teriam sido diferentes, embora nada me garanta que pudessem por isso ser melhores.
(...)
Ao enorme desejo de me dar para ficar em ti substituiu-se a sensação imediata de me ter dado inutilmente. Eu não fiquei em ti (às vezes pergunto-me a mim mesma se realmente me cheguei a dar) e num amor a contra-relógio é o tempo que ganha.
Hoje tenho a certeza e por isso modifiquei a minha ideia do tempo, já que o amor tal como foi é imodificável. Tenho a certeza também que voltarei a fazer o mesmo de cada vez que ame, porque sinceramente o tempo não me assusta agora que o conheço. Mas espero primeiro até ser loucamente amada. Digo loucamente e não é fazer literatura. Tem de ser loucamente.
Como um bicho que rói alucinado as noites e os dias, o riso e o choro e as simples emoções neutrais de todas as pessoas. Se não não vale a pena, é um amor de mortos.
(...)
Foi voluntariamente belo e triste. Aceitei logo de inicio a tristeza do nosso amor por causa da beleza que encerrava e que estoirou depois como um abcesso. Ainda não consegui desvendar o mistério que há nos desencontros.
Sejam quais forem as nossas relações fica sempre por resolver o mistério de tudo o que poderia ter acontecido e não aconteceu, não sei porquê.

in, Quem Se Eu Gritar



Sempre o bem e o mal. Todo o bem todo o mal de todos nós. De cada um por si. De todos nós. O bem e o mal nos olhos acesos pela noite com uma luzinha viva de tédio e de desejo. (...) Não nos devemos agarrar à vida porque a vida é pecado. Mas se não nos agarrarmos à vida enquanto dura o que nos ficará depois nas mãos vazias? Atam-nos as mãos e os braços e os pés e as pernas: Agora és minha. Agora podes começar a ser feliz. Somente em mim, comigo, sozinha nunca mais. Não pode ser. Eu tenho de partir. Seguir o meu caminho. Meu Deus, é a única coisa que te peço. Seja feita a minha vontade sobre mim sobre a terra. Por algum tempo ainda por favor seja feita.

in, As Palavras que Pena



És a minha imagem fantasma. Kaponhe ua Katua. És como um sonho espécie de regresso inacabado desejo inconsciente eu preferia varrer-te da memória porquê tão longe porquê tão abraçados. Sonhos que me fazem sofrer quando regresso do fundo do fundo e de dentro de mim ideia perfeita do êxtase do amor sensação permanente só tocar ao de leve e já não estou em mim estou em ti e já não estás em ti estás em mim os dois flutuando os dois um só no ar espaço azul fluído transparente. Muhamba ua tumuari. Contra os sonhos. Contra as imagens fanstasmas perpétuas recorrentes. Contra o outro lado de ser que não domino. Descansar por uns tempos das trevas das procuras das interrogações. Viver. (...) Não pensar, porque pensar em excesso enfraquece o corpo e a alma.

in, As Palavras Que Pena



"A comunhão dos santos. Em primeiro lugar descobre-se a linha e o ponto. E só depois de se terem esgotado todas as possibilidades é que a linha se enrola suave sobre si mesma cheia de invenção e o ponto cresce e alarga-se formando assim o círculo. Com linhas com pontos e finalmente com círculos tem-se o mundo na mão. É preciso apenas descobri-lo, persegui-lo, possuí-lo. E tem-se o mundo na mão. Regular os espaços. Ou melhor: regular os tempos e os espaços. Cria-se a terra com o seu recheio de seres e de coisas. Pequenas constelações isoladas umas das outras. Sem comunicação. E o que é pior - sem nada a comunicar.
(...) De vez em quando há um homem. Parece conduzir-nos. Mas não há nada atrás dele, ninguém o segue. E de vez em quando uma estrela tem pena e aproxima-se, mas encadeia-o com a sua luz excessiva e ele perde-se mais ainda, perde-se até dos próprios passos. A estrela no fundo é inútil, não serve para nada.
(...) Quando na floresta as árvores são vivas e se agitam e eu posso percebê-las. Sopram ventos da terra. Ventos fundos que sobem das raízes e se espalham nos ramos e nas folhas e as árvores estremecem como se tivessem sido acordadas nesse instante e agitam-se toda a noite e são vivas. Adivinho o mistério, cheio de seiva, cheio de frutos maduros. Adivinho o meu sonho idêntico ao sonho delas. Todos os sonhos provêm do mundo a que pertencemos. Do verdadeiro mundo. Surgem inesperadamente, desgarrados na noite, às vezes por engano sonhamos sonhos dos outros e às vezes por engano não chegamos sequer a reconhecer os sonhos que são nossos. Seguimos sempre no escuro. Mas seguimos.
(...) Com a lua não se segue no escuro. É-se conduzido por dentro, sem reflexão, sem problemas. Mas só enquanto há lua.

in, As Palavras Que Pena



Não tenho remorsos e não lamento nada. Só é pena que tu não tenhas estado à minha altura para transformar o nosso encontro em mais do que uma história banal. Mas este problema é teu, não deve interessar-me, embora me humilhe quando penso. Procurei-te tanto nas noites da floresta. Encontrei-te e perdi-te lutando contra o tempo entre a terra e o mar e entre as paredes frias do quarto branco e preto.
A minha vida, que me entregaste inteira e de longe, e em que eu só reparei no fim, quando já vinha sentada no comboio, a vomitar quilómetros de morte entre nós.
(...) Quanto tempo durou o nosso encontro? Um só momento ou uma vida inteira? Eu estava morta e agora parece-me que vivo novamente. Mas não me deixo prender nos laços de mim própria. Eu sei que entre nós está tudo acabado, porque de facto nada chegou sequer a começar. Mas já não me interessa. Quando eu amar alguém será fora do tempo, com todo o tempo livre para nós, alguém que fique em mim longamente entre o sono e a consciência morna, alguém em quem eu fique. O meu amor será extenuante. Será doce e profundo mas extenuante. Tu já não tens idade. O teu coração velho e o teu corpo usado não aguentam mais do que o peso e a forma e a sensação normal ou desviada de uma leve aparência. Nas horas de amor não é um ritmo de sangue que bate dentro de ti. É um relógio. O teu amor cansado não vem antes de tempo. E o teu tempo é urgente. E o verdadeiro tempo corre ao lado, e a música desfaz-se nele e todas as sensações se desfazem com ele. E ele próprio desfaz-se na memória.
(...) Amo as noites da rua, o ar frio que me corta os lábios e as mãos. E o mistério dos outros bate em mim, e os outros passam e passam ao meu lado, sociáveis, bem vestidos, muito íntimos, excessivamente íntimos, tão íntimos que me empurram para o lado e me passam por cima. A maravilhosa cidade que não muda, e não diz como é. Onde o amor agoniza a cada canto e renasce mais longe. O amor.
É verdade, o amor que me falta. Concretamente é isso que me falta. Um grande amor para as margens do rio e para as ruas brancas da cidade. Um grande amor de dia e de noite. Um grande amor selvagem e macio, e ao mesmo tempo frio, leve e frio, como o ar que respiro de noite nas ruas da cidade.
Enfim, um grande amor que eu já não tenha usado.

in, Quem Se Eu Gritar



Como pode o amor já ter acontecido e não acontecer? Esgotamento. O cérebro espremido como uma esponja. Cheio de buracos ainda húmidos ainda feridos pela presença de ideias que não existem mais. Vidasimulação, vidaprolongamento. Estado que se torna obcecante. Pensa-se nisso todo o dia. E quando os ponteiros do relógio dão a última volta pensa-se nisso toda a noite. E o tempo corre deitado ao nosso lado enquanto estamos deitados, ao nosso lado na cama em linha recta. E não nos toca. Ficamos pela primeira vez devido ao esgotamento isolados do tempo retirados do tempo formando pequenas unidades solitárias. (...) Mas o tempo. O tempo que passava, a ideia de desistir a insinuar-se, ter nas mãos uma série de fragmentos que não encaixavam uns nos outros, no fundo não ter começado não ter acabado nada. Desistir. Vou chegar sozinha ao fim da vida. A solidão cresceu dentro de mim, ocupa-me por dentro, estou presa à solidão do que procuro e não sei o que é e não vem ter comigo embora eu espere e pense, todas as noites penso antes de adormecer e enquanto penso rezo e tenho às vezes fé mas não dura o tempo suficiente. O tempo. Ir mais longe. Mesmo quando se chega ao fim. Ir mais longe, não parar nunca. Viagens em redondo como os círculos que o tempo abre e fecha nos relógios. Estou presa num relógio estou metida direita num ponteiro e quando julgo que os círculos acabam outros círculos nascem maníacos viciosos repetidos. Vão nascendo de mim. E sobre tudo isto a consciência. E o esgotamento. A noite da chegada, como que a desistir.

in, As Palavras Que Pena



Procuro nos meus dias algum significado. O que eu não quero é perder a memória, e deixar os dias murchando no passado só porque já passaram.
E não quero perder a memória porque os dias são belos. São belos porque são dias, são divisões do meu pequeno tempo, são criações da minha pequena vida.
E cada dia deve ser tão importante e tão completo em si como um poema.
Não é que a minha vida em particular, ou as minhas experiências, tenham importância. Têm importância não porque são minhas mas porque são a vida.
E cada vez eu amo mais a vida sobre todas as coisas. Amo-a como uma lição de abismo involuntário, principalmente quando me sinto derrotada.
A vida corre em mim como um longo poema sem principio e sem fim, um poema redondo, fechado por momentos, em que o amor ocupa todo o tempo e todo o espaço em branco.
Contigo despi-me de uma moral fictícia que trazia agarrada à minha antiga pele. Aquilo em que acreditamos com sinceridade é verdadeiro e bom.
Um sentimento fundo vale mais do que todas as regras.

in, Quem Se Eu Gritar



Uma vontade enorme demorada de um outro eu ao mesmo tempo igual e diferente em que ela finalmente pudesse dissolver-se. A unidade mística e sensual a unidade perfeita de um todo noutro todo tranquilidade última de lago. O amor. Sempre a vontade de amar como raiz de vida e de morte, de perfeição e aniquilamento. Amor. Êxtase. Amor. Todos os caminhos vão lá ter, a esse encontro breve que normalmente acaba em desencontro. Se há só um tronco na Árvore da Vida como é possível que os seus ramos se ignorem e permaneçam sempre afastados. E se há vários troncos e uma só raiz como é possível que subterraneamente os homens não se encontrem nem a si nem aos outros, como é possível que vivam isolados, dividos em pequenas parcelas de tempo e de espaço. A procura, percebes o que é? A procura, tal como dela dão testemunho tantos homens da nossa geração. Geração inquieta. Às vezes o movimento é tão interior que não se dá por ele. Julga-se que o homem em questão está parado. Ou até que retrocede. Mas pode nem sequer ser um movimento. Pode ser uma espera. Esperar é uma das muitas formas possíveis de procura. Esperar completamente só, completamente imóvel no silêncio.

in, As Palavras Que Pena



O que eu quero é a verdade. Não sei qual. Uma verdade que entre dentro de mim e me rebente o peito e me faça estalar em mil bocados espalhados por todo o universo. Uma verdade que me faça ascender que me puxe para fora de mim que me arranque e me deixe suspensa no tempo e no espaço. Que anule a diferença entre uma coisa e outra coisa um gesto e outro gesto um estado e outro estado. Que anule a diferença entre as pessoas. Que seja como um rasgão horizontal nos olhos. Passar a ver a n dimensões. E viver de acordo com o que vejo. Saber como é de facto a vida. O que é a vida. Como é e o que é a morte. Saber a sério por dentro. Saber com luz e sombra. Saber qual a verdade qual a realidade qual a finalidade da minha existência, de toda a existência em geral. E porque existe o mundo. E para quê. Ponho tudo em questão. Não acredito em nada que não me venha de dentro. Mas de dentro não me vem nada. Mesmo que Deus se procure e se encontre nos homens, nalguns homens apenas, nos eleitos, qual o sentido dos que ficam de fora. E porque razão ficam de fora. E onde ficam e como ficam e porquê e não percebo quanto mais quero pensar menos percebo. Não sei se devo ser eu a chegar à verdade ou se devo apenas esperar que ela chegue a mim. (...) Não sei como reconhecê-la caso não venha como eu a imagino revestida de sombra e de luz, penetrando-me como um fogo secreto que depois se revolve na cabeça e no peito. Espero. Retiro-me enquanto espero, não fico presa a nada. (...) O que eu quero saber é a verdade. De uma vez para sempre a verdade. Que corra para mim e se transforme em mar e me deixe ficar imóvel e submersa e acordada. Pela primeira vez mesmo acordada.

in, As Palavras Que Pena



Decidi-me finalmente a penetrar na noite. Ficarei acordada em vez de me esconder em sonhos repousantes. Ficarei com os olhos abertos para ver ouvidos destapados para ouvir ficarei sem medo estendida na cama com os olhos abertos até compreender finalmente qual é o meu caminho. Se é que há um caminho. The further one goes the less one knows. Não posso descansar. Não posso cruzar os braços fechar as mãos e julgar que estão cheias. Vem noite sobre mim (antíquissima e idêntica etc.) repousadamente noite desce sobre mim. Eu desisto do anjo mas que me mandem uma estrela uma só que finalmente me conduza ao caminho. Não posso olhar o céu, cheio de enigmas pequenos cruzados e brilhantes. Quero só uma estrela. Uma só. E que atrás dela voem bandos de pássaros sagrados noutros tempos. Hoje tão cegos como eu.

in, As Palavras Que Pena





Y. K. Centeno
in, Três Histórias de Amor



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