domingo, 14 de fevereiro de 2016

Canção de mim Mesmo 26




Agora nada farei além de ouvir,
Para acrescer o que ouço aos meus cantos, para deixar que os sons contribuam em sua direcção.

Eu ouço o talento dos pássaros, o alvoroço do trigo que cresce, a fofoca das chamas, os estalos dos gravetos a cozinhar as  minhas refeições,
Eu ouço o som que amo, o som da voz humana,
Eu ouço todos os sons a propagarem-se juntos, combinados, fundidos ou em sequência,
Sons da cidade e sons fora da cidade, sons do dia e da noite,
Jovens faladores com os que deles gostam, a risada estridente dos trabalhadores durante as refeições,
A base irritada da amizade desfeita, os tons débeis dos doentes,
O juiz com as mãos presas à mesa, seus lábios pálidos a pronunciar uma sentença de morte,
Os altos brados dos estivadores descarregando os navios no cais, o refrão dos levantadores de âncora,
O toque dos alarmes, o grito de "fogo!", o ronco dos motores rápidos e do carro com mangueiras e tinidos premonitórios e luzes coloridas.
O apito a vapor, o rolamento sólido do comboio que está a chegar,
A marcha lenta tocada à frente da associação, a marchar dois a dois,
(Eles vão recolher alguns corpos, o topo das bandeiras drapejado com musselina negra).

Ouço o violoncelo (é o lamento do coração do rapaz),
Ouço a corneta de teclado que desliza rapidamente pelos meus ouvidos,
Ela causa uma agonia louca e doce que atravessa as minhas entranhas e o meu peito.

Ouço o coro, é a grande ópera,
Ah, isso sim é música! — isso se casa comigo.

Um tenor grande e novo como a criação me preenche,
O céu esférico da sua boca está a jorrar em mim e a realizar-me.

Ouço a soprano virtuosa (o que é este trabalho quando comparado ao dela?)
A orquestra faz-me rodopiar numa órbita mais larga que a do vôo de Urano,
Faz surgir em mim tais ardores que não imaginava possuir,
Ela faz-me navegar, mergulho meus pés descalços, eles são lambidos pelas ondas indolentes,
Sou cortado por um granizo amargo e irado, perco o fôlego,
Macerado por melíflua morfina, minha traqueia sufocada em farsas da morte,
Ao fim, solto-me uma vez mais para sentir o enigma dos enigmas,
E aquilo chamamos Ser.


Walt Whitman
in, Song of Myself


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