domingo, 3 de janeiro de 2016

ANDRÉ GIDE




O mais veloz corredor da sua geração, pelo menos 
no arranque, não admira que tenha chegado primeiro 
a muito lado. Mas tão cedo partia, invariavelmente, 
que nem louros nem medalhas, pois a prova ainda não 
tinha começado. Sofria essa mania de correr por fora 
de qualquer certame, por conta própria, em mandatos 
espontâneos, auto-atribuídos. Deste modo, andava 
sempre sozinho, porque quando os seus émulos partiam, 
já ele estava em casa, a preparar com a sombra a sua 
próxima aventura, que no fundo consistia em abrir pistas 
para quem viesse atrás. Assim, se queria conversar com 
alguém, só lhe restava fingir uma queda no senso-comum, 
uma lesão no joelho – e amiúde o fazia, pois na verdade 
pouco tinha de misantropo, chegando mesmo a execrar 
como maldita a compulsão que o levava a partir antes 
do tiro de largada, e a chegar primeiro onde ninguém 
o esperava. Talvez isso explique a timidez de anacoreta 
que sempre exibia, e a prudência relativa das suas passadas. 
Dez ou vinte anos depois, acelerados epígonos diriam 
morosas as suas corridas, convenientemente esquecidos, 
como é próprio de retardatários sem vergonha, que se 
faziam melhores tempos (os que faziam), era em pistas 
utilmente batidas e inauguradas por ele, o pujante pioneiro. 


José Miguel Silva

Sem comentários:

Enviar um comentário