domingo, 1 de novembro de 2015

O Piropo




Não me lembro do meu primeiro “piropo”. Mas lembro-me bem da primeira vez que me senti como um objecto sexual, na rua. Tinha 14 anos e estava a vir da escola, do último dia de aulas do 2º trimestre do 9º ano. Por brincadeira, tínhamos pintado e rasgado as calças de ganga (uma espécie de celebração adolescente do Carnaval) e, apesar de ter “collants” opacos pretos por baixo, as minhas pernas estavam manifestamente à vista de quem passasse. Foi mesmo na minha rua, quase a chegar a casa. Um senhor bastante mais velho fez um comentário qualquer – não me recordo das palavras exactas – que me fez sentir que os dados do “jogo” tinham mudado: já não me viam como criança. Depois deste, vieram muitos. O piropo é um companheiro habitual de quase todas as mulheres que circulam pelas ruas do nosso país.

Deveria ser criminalizado?

Há cerca de duas semanas, desafiaram-me para que escrevesse sobre o assunto. Desde então, tenho estado mais atenta quando ando na rua. E eu ando muito na rua. Todos os dias. Adoro andar de metro e a pé, pelo que tive muitas oportunidades de experienciar o piropo português. Apesar de já ter uma opinião sobre a questão, como penalista – sem quaisquer reticências – como mulher e cidadã, julguei que se justificaria reiniciar uma abordagem a este tema. Não mudei de opinião, como penalista, mas repensei o problema na perspetiva da mulher: será que ainda há aqui espaço para falar de vítimas?

Em primeiro lugar, impõe-se explicar que sou contra a criminalização do piropo – isto é, do mero acto de quem, quando uma pessoa passa, se aproxima ou está próxima, lhe dirige comentários que têm (ou podem ter) conotação sexual. Desde logo, porque não considero que estes comportamentos devam ser qualificados como de “assédio sexual”. A palavra “assédio”, antes de ser apropriada pelos juristas, queria dizer o seguinte: “acção que consiste em cercar militarmente uma posição inimiga, geralmente durante um período prolongado ou que se calcula dever durar muito”. Isto é, um “cerco” ou “sítio”. Foi com este sentido que se generalizou o uso no plano social, associado a comportamentos sexuais invasivos que não chegavam a um contacto sexual tradicionalmente identificado com uma “relação sexual” forçada. Mais tarde, foi ainda com este sentido que se passaram a referir os casos previstos nos arts. 163º, nº 2, e 164º, nº 2, do Código Penal. Contudo, estas incriminações ficam aquém do conceito sociológico-penal de “assédio sexual”. E, neste ponto, a experiência anglo-saxónica é relevante. Em inglês, recorre-se às expressões “harassment” e “sexual harassment”. O termo “harassment”, independentemente da conotação sexual, encontra-se associado a comportamentos repetitivos de forte intimidação, constrangimento ou perseguição. Costuma falar-se em “sexual harassment” quando estes comportamentos – que podem incluir meras declarações verbais – assumem uma conotação sexual objetiva, designadamente, quando, no âmbito de alguma relação de dependência ou de natural constrangimento (locais de trabalho, relações de poder, locais fechados, etc.), uma pessoa assume um comportamento sexual agressivo, de “sedução” não desejada ou correspondida. 
Reconhecendo a insuficiência dos arts. 163º e 164º, o legislador criou, em 2007, o crime de “importunação sexual”, previsto no art. 170º do CP, o qual dispõe o seguinte: “quem importunar outra pessoa praticando perante ela actos de carácter exibicionista ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”. É no âmbito do art. 170.º, portanto, que certos comportamentos de agressividade sexual comportamental – toques forçados, perseguição na rua, cercos ou limitação da liberdade de circulação, quando acompanhados de alguma referência sexual – devem ser enquadrados e já constituem crime.



Vistos estes conceitos básicos, poderemos dizer que o piropo constitui uma forma de assédio sexual? A minha resposta é negativa. A mera verbalização de alguma frase mais ofensiva, com eventual referência a actos sexuais explícitos, não constitui uma forma de assédio sexual. Quanto muito, seria uma espécie de injúria sexual. Porém, como também sou contra a criminalização da injúria – que, aliás, é crime, art. 181º do CP – esta conclusão em nada abala a minha convicção.

Por que é que podemos incriminar o assédio sexual e não o piropo? 
Precisamente, porque o assédio constrange e o piropo não.

A diferença entre o piropo e o assédio sexual reside numa diferença substancial – que não depende da rudeza das expressões utilizadas – do grau de ofensividade e de intensidade de invasão da esfera de autonomia alheia.
O autor do piropo limita-se a fazer um comentário – que pode ser tão suave que ainda seja visto como um elogio simpático, ou tão ofensivo que apenas se pode qualificar como uma “ordinarice” indescritível – à distância, ao passar ou ao aproximar-se de uma pessoa.
O autor de assédio sexual acompanha as expressões verbais – que podem nem existir – de um comportamento invasivo e sexualmente agressivo: aproxima-se da vítima; segue a vítima, de perto, ao longo do caminho; procura o toque físico, ainda que de surpresa ou em partes do corpo que não têm uma conotação sexual objectiva; é insistente e exige uma resposta, podendo tornar-se agressivo na ausência de reacção. Quando se trata de mais do que um agressor, é mesmo habitual ocorrer um cerco da vítima ou a criação de barreiras à sua passagem; etc.
O assédio pode também ficar-se pelo mero uso de certas expressões verbais, insinuações ou sugestões sexuais, quando exista alguma relação de dependência ou de pré-constrangimento. 
Por exemplo, quando a vítima não possa retirar-se da relação sem um prejuízo relevante (como nas relações laborais), ou não possa de todo retirar-se fisicamente (caso esteja num elevador ou num outro espaço fechado do qual não possa sair imediatamente). Todas estas condutas que descrevi como assédio merecem ser crime. E são já crime. O piropo não.

Dito isto, será que podemos dizer que o piropo é inofensivo?

Não. É nesta parte que se torna relevante a minha experiência de 20 anos a andar na rua como jovem e mulher. E tenho tido vários tipos muitos distintos de experiência. Desde o elogio simpático, relativamente inofensivo, à velha e tradicional ordinarice. Principalmente quando passo por grupos de homens, é também usual que se tornem mais afoitos, passem já para convites ou cheguem mesmo a tentar uma aproximação ou invasão do meu espaço. O que tornou estas duas últimas semanas diferentes foi a minha reacção interior aos piropos que me foram sendo dirigidos. Desta vez parei para refletir: qual o grau de ofensividade? Como é que isto me faz sentir? Fico assustada? E sim, em geral, confirmam-se as queixas das mulheres.
Os piropos são desagradáveis e às vezes ofensivos, mas o mais grave é que reflectem uma cultura masculina de agressividade sexual e – ainda mais grave – de sujeição da mulher à vontade do homem.
Quero com isto dizer que existe uma certa cultura masculina, mais tradicional, que ainda parte do pressuposto implícito da passividade da mulher e da pró-actividade do homem. Ou seja, à mulher cabe-lhe aguardar, expectante, pelos avanços do homem; ao homem cabe-lhe avançar, mesmo quando não recebe sinais claros de reciprocidade. Há igualmente uma certa convicção masculina de que a mulher é devedora de uma reacção, de uma resposta.
Quando ainda namorava – antes de me casar – era comum ter de me justificar, às vezes longamente, quando recusava algum convite ou proposta. E por vezes tive de lidar com rapazes que ficavam “ofendidos” com a minha recusa e exigiam explicações. Mais, os piropos, quando vêm acompanhados de algum encurtamento da distância física, geram medo. Podia dizer temor, mas o que se sente, não raramente, é mesmo medo. Medo desse bicho papão que é a violação.



Porquê bicho papão? Porque a esmagadora maioria das violações em Portugal – mesmo contra adultos – são praticadas por conhecidos. Ex-namorados, namorados, vizinhos, amigos da família, familiares, cônjuges, etc.

Aquela ideia cinematográfica, do estranho que nos apanha de surpresa na rua e viola é (quase) só isso. Existem casos, claro; mas são raros (de acordo com a estatísticas, 75% dos crimes de violação são praticados por conhecidos). Por outro lado, os homens que se dedicam aos piropos não correspondem ao perfil do agressor sexual que viola. O violador desconhecido não é homem de piropos. Aliás, o piropo constitui, na maioria das vezes, a própria admissão de uma derrota, de uma resignação: é porque o homem sabe que nunca terá qualquer relação (consentida ou forçada) com aquela mulher que recorre a um meio desesperado de falsa proximidade ou de retaliação moral. Por isso, de certa forma, o medo que os piropos geram nas mulheres – medo este que também sinto, claro – é um medo simbólico, irracional, corresponde mais a uma lembrança do que nos pode faltar, a qualquer momento: a esfera de segurança e de conforto que julgamos que os homens disfrutam (o que nem sempre é o caso, aliás, por outras razões). Apresenta-se como uma lembrança desagradável e inconveniente da nossa condição de mulheres, da nossa fragilidade, da nossa impotência, caso algum homem decida efetivamente atacar-nos, ali mesmo, no meio da rua. E até pode ser que os piropos encerrem em si, deliberadamente, tais propósitos. Mas isso não é motivo bastante para incriminar.

No meu mundo ideal, não haveria piropos? Sim e não.
Claro que preferia andar na rua sem medo, sem receios, sem lembranças simbólicas da condição negativa da mulher. Em suma, sem ter de ouvir ordinarices, a cada esquina que dobro. Mas, no mundo ideal, coexistem muitas perspectivas. Deve haver espaço para a diversidade (e não apenas para aquela diversidade “cool”, que está moda, de ser “vegan” ou de se achar que depilar as axilas corresponde a viver artificialmente), convivendo-se com formas alternativas de interpretar a realidade. O meu receio, como mulher e como cidadã, é que estas novas tendências para definir o que é certo e errado, no trato social, se tornem excessivas e eliminem a diversidade de feitios, de abordagens, de modos de ser. Que eliminem, também, a espontaneidade.

Uma amiga minha já namorou com um rapaz que conheceu por causa de uma abordagem dessas. Estilo piropo sofisticado, no meio da rua. Há conversas engraçadas. Há quem não faça por mal. Um dos senhores que se meteu comigo na rua esta semana ofereceu-se, sinceramente e com boa intenção, para me ajudar a levar os sacos. Se vamos definir uma única forma de relacionamento social como aquela que é válida – porque é a única que não gera desconforto a alguém – sendo que todas as outras não serão apenas socialmente censuradas, mas também criminalizadas, não estaremos a gerar criminosos, em vez de resolver o problema do machismo?

Existe machismo na sociedade portuguesa, sem dúvida. É preciso sensibilizar a sociedade para um tratamento mais igualitário, mais respeitador e mais neutro. Mas o discurso da criminalização do piropo é totalitário na sua perspetiva sobre o relacionamento social e contribui para uma visão do feminismo com a qual não me identifico. Não parto do pressuposto de que todos os homens são uns alarves machistas ou potenciais agressores sexuais. Por isso não vejo toda e qualquer abordagem que me é feita por um homem – mesmo na rua – como agressiva ou ofensiva. Depende dos casos.

O discurso da criminalização do piropo não me representa, nem como mulher, nem como penalista. Prefiro que se reflicta sobre a educação que estamos a dar aos nossos filhos e filhas. Prefiro que se reflicta sobre a representação da mulher na literatura, no cinema, nas artes, na publicidade. Prefiro que se façam campanhas de sensibilização. Não podemos criminalizar tudo o que nos desagrada. Tudo o que seja de mau gosto, feio ou ordinário.  Entre nós, haveremos certamente de encontrar formas mais criativas – e, na minha opinião, eficazes – para erradicar a cultura do machismo lusitano.


Inês Ferreira Leite



O patriarcado é o sistema de dominação masculina ancorado num etos de Guerra 
que legitima a violência, santificada pelos símbolos religiosos, 
no qual os homens dominam as mulheres através do controlo da sexualidade feminina, 
com a intenção de legarem a propriedade aos herdeiros masculinos, e no qual os homens, 
heróis de guerra, são instruídos para matar homens, autorizados a violar mulheres, 
a apoderarem-se da terra e das suas riquezas, a explorarem recursos 
e a apropriarem-se ou dominarem por qualquer meio os povos conquistados.

 Carol P. Christ 



Significado no dicionário de Etos: Modo de ser; temperamento ou disposição interior; aquilo que é característico e predominante nas atitudes e sentimentos dos indivíduos de um povo, grupo ou comunidade, e que marca suas realizações ou manifestações culturais.

Exemplo do uso da palavra Etos: 
"...influência dos migrantes nordestinos na formação do etos paulistano."

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