quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

KSHANTI


A palavra sânscrita kṣānti 
frequentemente é traduzida como 
"tolerância" 
ou 
"capacidade de suportar". 


Mas essas duas expressões portuguesas trazem um sabor negativo de "sofrimento resignado", quando, ao contrário, kṣānti é uma atitude positiva - não uma resignação dolorosa. 


Uma tradução melhor seria "acomodação".
A atitude de kṣānti significa que eu, alegremente, calmamente, aceito aquele comportamento e aquelas situações que não posso mudar. Desisto da expectativa ou exigência pela mudança de outra pessoa ou situação, de forma a se moldar ao que penso ser agradável para mim. 
Eu me acomodo às situações e às outras pessoas alegremente.





Todos os relacionamentos requerem acomodação

Esse valor deve ser construído a partir da compreensão da natureza das pessoas e dos relacionamentos entre elas. Nunca encontrei numa pessoa todas as qualidades de que gosto ou todas de que não gosto. Qualquer pessoa será uma mistura de coisas que acho interessante e outras que considero desinteressantes. Similarmente, eu terei o mesmo impacto nos outros. Ninguém vai me achar totalmente agradável. Quando reconheço esses fatos, vejo que todos os relacionamentos requerem alguma acomodação da minha parte. Não estarei disposto, ou talvez não serei capaz de mudar ou satisfazer todas as expectativas que o outro tem de mim; tampouco os outros estarão dispostos ou serão capazes de mudar e satisfazer todos os meus critérios em relação a eles. Nunca encontrarei um relacionamento que não requeira acomodação.

Em especial, os relacionamentos que envolvem coisas que fortemente desgosto em alguém requerem acomodação da minha parte. Se eu for capaz de modificar a pessoa, ou se puder colocar uma distância entre mim e ela, sem faltar ao meu dever, tudo estará bem. Mas se não puder fazer isso, simplesmente devo me acomodar alegremente. Ou seja, devo tomar a pessoa como ela é. Não posso esperar que o mundo ou as pessoas mudem. Simplesmente não é possível compelir as pessoas a mudar para satisfazer minha expectativa de como elas deveriam ser. Algumas vezes alguém pode mudar um pouco por mim ou pode tentar mudar, mas não posso contar com isso. Geralmente, quando quero uma mudança nos outros, eles também desejam uma mudança em mim. Teremos, então, um impasse.






Para kṣānti, diminua as expectativas

Quando examinar meus processos mentais, provavelmente verificarei que, para minha surpresa, eu ofereço kshánti mais prontamente para um tolo insuportável do que para meu melhor amigo. Isso porque não espero algo sábio ou inteligente de um tolo; mas espero que meu amigo viva de acordo com certos padrões que considero adequados. Um tolo incorrigível não consegue me desapontar, mas outros, por uma razão ou outra, em algum momento, conseguem. Não deveria ser assim. Minhas expectativas deveriam colocar todos na mesma categoria do tolo incorrigível. Ninguém deveria ser capaz de me desapontar, mas somente capaz de me surpreender. E minha atitude deve ser a de estar preparado para acomodar todas as surpresas possíveis.

Devo acomodar as pessoas como acomodo objectos inertes, isto é, devo tomá-las como são. Eu não gosto de ser queimado pelo Sol, porém não peço ao Sol que pare de brilhar. Aprecio a benção mista de um Sol quente brilhando e entendo que, sendo uma benção mista ou não, não posso desligá-lo. Não peço às abelhas que não tenham ferrão, tampouco odeio as abelhas se, estando no caminho delas, recebo uma picada. Continuo apreciando a função da abelha e aproveito o mel.

Porém, considero ser muito mais difícil ter para com as pessoas a atitude que tenho com os insetos e objetos inertes. Posso me relacionar adequadamente com um objeto inerte ou uma criatura selvagem porque não espero qualquer mudança deles. Mas espero que as pessoas possam mudar para se tornarem mais agradáveis para mim. Mantenho minha mente agitada com exigências contínuas por mudanças de forma que os outros em minha vida sejam mais de acordo com as minhas preferências. De facto, nem os humanos podem ser capazes de mudança.

Frequentemente não conseguem mudar ou por falta de força de vontade ou por falta de vontade. Quando alguém não consegue mudar ainda que deseje mudar é porque não possui força de vontade. Nada mais há a fazer, a não ser acomodar essa pessoa. Quando uma pessoa não muda porque não deseja tentar a mudança, podemos tentar convencê-la a ter a vontade de se beneficiar de uma mudança. Se não for possível convencê-la, então acomode-a. O que mais se pode fazer?! De qualquer maneira, o mundo é amplo. A variedade torna-o mais interessante. Há espaço suficiente para acomodar a todos.



Responda à pessoa, não à acção

Para descobrir dentro de mim um valor pela acomodação, eu deveria olhar para a pessoa por trás da acção. Geralmente, é quando estou respondendo ao comportamento da pessoa, à sua acção, que acho difícil ser acomodativo. Quando tento entender a causa por detrás da acção, me coloco numa posição de responder à pessoa e não à acção, e então minha resposta para essa pessoa pode ser uma resposta acomodativa. Tento ver o que existe por detrás do súbito ataque de raiva ou da explosão de ciúmes ou da conduta dominadora e respondo à pessoa, e não às acções.

Se não consigo ver o que há por detrás das acções, ainda assim, tenho em mente o facto de que muitas razões desconhecidas por mim armam o palco para qualquer acção por parte da outra pessoa. Com essa disposição de espírito achei natural ser acomodativo. Numa situação onde minha interacção é para com a pessoa em vez de para com a conduta, conseguirei me manter calmo. De facto, a dissolução de qualquer discussão entre pessoas é quase sempre o resultado de uma apreciação mútua feita pelas pessoas em vez de uma nova atitude quanto à conduta irreflectida.

Reacções mecânicas impedem a acomodação. Para ser livre ao interagir com uma pessoa, devo ser livre de reacções mecânicas. Tenho que escolher minhas atitudes e fazer as acções deliberadamente. Uma reacção é um tipo de conduta mecânica e não-deliberada. É uma resposta condicionada extraída de experiências anteriores, sem autorização prévia da minha vontade. Na verdade, é uma resposta que não foi avaliada conforme a estrutura de valores que estou tentando assimilar, mas que somente ocorreu. Algumas vezes a minha reacção pode ser uma acção ou atitude que, mais tarde, após reflexão, eu aprovaria.

Outras vezes minhas reacções podem ser completamente contrárias às atitudes e acções que eu gostaria de manter ou fazer. Reacções podem ir contra toda a minha sabedoria, estudo e experiência anterior. Esses factores são relegados e a reacção ocorre. O que aprendi anteriormente torna-se sem valor para mim.

Posso ter lido todas as escrituras do mundo, posso ser um óptimo estudante de sistemas éticos, posso ser um profissional diplomado em dar conselhos aos outros, mas quando acontece a reacção, essa será exactamente tão mecânica como a de qualquer outro.

Sabedoria, aprendizado e experiência não me servirão de nada. 

Portanto, até que meus valores éticos se tornem completamente assimilados, estabelecendo uma base a partir da qual atitudes e acções corretas surjam espontaneamente, devo, através da atenção, evitar reacções e, ao invés disso, deliberadamente e refletidamente escolher minhas acções e atitudes. Quando evito reacções, estou livre para escolher minhas acções e atitudes, posso ser acomodativo em meus pensamentos, palavras e acções.



Kṣānti e ahimsā: qualidades de um santo

Acomodação é uma qualidade bela e santificada. Dentre todas as qualidades, ahimsā e kṣānti constituem as qualidades de um santo. As qualificações mínimas para um santo são essas duas qualidades. Não é preciso ter sabedoria nem é necessário o aprendizado das escrituras para ser um santo, mas a pessoa deve ter esses dois valores. Um santo é uma pessoa que nunca fere conscientemente outra pessoa pela palavra, acção ou pensamento, e que aceita as pessoas - boas ou ruins - exactamente como elas são; que tem uma infinita capacidade de acomodar, perdoar e ser compassivo.

Essas qualidades (acomodação, perdão, compaixão...) estão incluídas na qualidade chamada kṣānti. Um santo sempre é dotado de kshánti - uma capacidade infinita para a compaixão.
Ele responde à pessoa, não à acção. Ele vê a acção errada como um erro originário de um conflito interno e é compassivo para com a pessoa que o comete.
Uma atitude de kṣānti, acomodação, expande o coração.
Esse se torna tão amplo que aceita todas as pessoas e circunstâncias exactamente como elas são, sem desejos ou cobranças de que sejam diferentes. 
Isso é kṣānti.



Swami Dayananda Saraswati 
in, O Valor dos Valores







As seis paramitas são ensinamentos do Budismo Mahayana.
Paramita é uma palavra que pode ser traduzida como "perfeição" ou "realização perfeita".
O ideograma chinês para este termo significa "atravessar para a outra margem", que é a margem da coragem, da paz e da libertação.

As perfeições devem ser praticadas na nossa vida diária.
Estamos actualmente na margem do sofrimento, da raiva e da depressão, e queremos atravessar para a margem do bem-estar. Para atravessar, é preciso fazer alguma coisa, e é a isso que chamamos de perfeição. 

Assim, voltamos para nós mesmos, praticamos a respiração consciente e olhamos para o nosso sofrimento, a nossa raiva, a nossa depressão, e sorrimos.
Ao fazer isso, superamos a dor e atravessamos.
Devemos praticar as "perfeições" todos os dias.


  1. Dana paramita - Doação, generosidade, oferta.
  2.  Shila paramita - Os preceitos ou treinamentos da atenção plena.
  3. Kshanti paramita - Tolerância, a capacidade de acolher, suportar e transformar a dor infligida a si por seus inimigos e também pelas pessoas que o amam.
  4. Virya paramita - O esforço, energia, perseverança.
  5. Dhyana paramita - A meditação.
  6. Prajna paramita - A sabedoria, compreensão, insight.


Praticar as seis perfeições ajuda a atingir a outra margem - a margem da liberdade, da harmonia e dos bons relacionamentos.



A tolerância, kshanti paramita.

A tolerância é a capacidade de receber, aceitar e transformar as coisas. 
Kshanti às vezes é traduzida também por paciência ou resignação, mas acho que "tolerância" é uma palavra que denota melhor o ensinamento de Buda.

Quando praticamos a tolerância, não precisamos sofrer nem nos resignarmos, mesmo quando precisamos aceitar o sofrimento ou a injustiça, quando alguém diz ou faz algo que nos deixa com raiva, ou quando talvez algum tipo de injustiça é cometido contra nós. Mas se o coração for grande o bastante, não sofreremos.

O Buda oferece uma linda imagem sobre isso.
Se pegarmos um punhado de sal e colocarmos numa tigela com água, a água ficará salgada demais para beber. Mas a mesma quantidade de sal colocada num grande rio não afectará sua água, e as pessoas ainda poderão bebê-la (lembrem-se de que esse ensinamento foi dado há 2.600 anos, quando ainda era possível beber água dos rios!). Devido à sua imensidão, o rio tem a capacidade de receber e transformar. O rio não sofre por causa de um punhado de sal. Se o seu coração for pequeno, uma palavra ou acção injusta fará você sofrer, mas se o coração for grande, e se tiver compreensão e compaixão, a palavra ou acção injusta não terá o poder de lhe causar sofrimento, porque você terá a capacidade de receber, aceitar e transformar rapidamente. O que conta aqui é a sua capacidade. Para poder transformar o sofrimento, o coração precisa ser grande como um oceano. Outra pessoa talvez sofra, mas se um bodhisattva ouvir as mesmas palavras desagradáveis não sofrerá. Tudo depende da forma de receber, aceitar e transformar. Se você guardar uma dor por muito tempo, é porque ainda não aprendeu a prática da tolerância.

Quando Rahula, o filho de Buda, fez dezoito anos, o Buda fez uma linda palestra sobre o Dharma, em que falava sobre como praticar a tolerância. Shariputra, o tutor de Rahula, estava presente e ouviu atentamente, absorvendo os ensinamentos. Doze anos mais tarde, Shariputra teve a oportunidade de repetir esse ensinamento para uma congregação de monges e monjas. Foi no dia seguinte ao término de um retiro de três meses, durante uma estação chuvosa, quando todos os monges estavam se a preparar-se para ir embora e seguir em diferentes direcções pregando os ensinamentos. Naquele dia, um monge disse ao Buda: "Senhor, esta manhã, quando o Venerável Shariputra ia partir, eu perguntei a ele onde ia, e em vez de responder à minha pergunta, ele me atirou ao chão e nem sequer pediu desculpas."

O Buda perguntou a Ananda: "Shariputra já está muito longe?" e Ananda disse: "Não, Senhor, ele partiu há apenas uma hora." Então Buda pediu a um noviço que alcançasse Shariputra, convidando-o a voltar. Quando o noviço voltou acompanhado de Shariputra, Ananda convocou todos os monges que ainda estavam por lá. A seguir, o Buda entrou e perguntou formalmente: "Shariputra, é verdade que esta manhã quando ia a sair do mosteiro um irmão lhe fez uma pergunta, e você não respondeu? É verdade que em vez de responder você atirou o irmão ao chão e nem sequer pediu desculpas?"
E Shariputra respondeu a Buda diante de todos os monges e monjas da congregação.

"Senhor, eu me lembro do discurso que o senhor fez há doze anos para o monge Rahula, quando ele fez dezoito anos. O senhor ensinou-o a contemplar a natureza da terra, da água, do fogo e do ar, para desenvolver as virtudes do amor, da compaixão, da alegria e da equanimidade. Apesar de seu ensinamento ser dirigido a Rahula, eu também aprendi com ele, e tenho tentado observar e praticar este ensinamento.”

"Senhor, eu tenho tentado praticar como a terra. A terra é grande e aberta, e tem a capacidade de receber, aceitar e transformar. Quando as pessoas atiram sobre a terra substâncias puras e perfumadas, como por exemplo flores, perfumes ou leite fresco, ou mesmo quando atiram nela substâncias repugnantes como excremento, urina, sangue, catarro ou cuspe, a terra recebe tudo da mesma maneira, sem apego nem repulsa. Não importa o que atiramos na terra, ela sempre acolhe, aceita e transforma tudo aquilo que recebe. Eu faço o que posso para ser como a terra, a tudo recebendo sem resistir, sem me queixar, nem sofrer.

"Senhor, eu pratico a atenção plena e a bondade amorosa. Um monge que não pratica a atenção plena ao corpo no corpo e às acções do corpo nas acções do corpo, poderia derrubar outro monge e deixa-lo lá deitado, sem pedir desculpas. Mas eu não costumo ser grosseiro com meus colegas, empurrando-os e indo embora sem pedir desculpas.”

"Senhor, eu aprendi a lição dada a Rahula, ou seja, que praticasse para me tornar como a água. Quando alguém derrama uma substância perfumada ou impura na água, ela recebe as duas coisas da mesma maneira, sem apego, sem aversão. A água é imensa, fluida, e tem a capacidade de receber, conter, transformar e purificar todas as coisas. Eu fiz o melhor que pude para me assemelhar à água. Um monge que não pratica a atenção plena, que não tenta se assemelhar à água, poderia ser grosseiro com seus colegas, empurrando-os e indo embora sem pedir desculpas, mas eu não sou assim.”

"Meu Senhor, eu tenho praticado me assemelhar ao fogo. O fogo queima tudo, tanto o que é puro como o que é impuro, o belo e o repugnante, sem apego nem aversão. Se atirarmos flores ou seda no fogo, elas queimarão. Se atirarmos roupas velhas ou substâncias mal cheirosas, o fogo aceitará tudo da mesma maneira e queimará da mesma forma. Ele não discrimina. Por quê? Porque o fogo é capaz de receber, consumir e queimar todas as coisas que lhe são oferecidas. Eu tenho tentado ser como o fogo. Consigo queimar as coisas negativas para transformá-las. Um monge que não pratica a atenção plena ao olhar, ouvir e contemplar, poderia ser grosseiro com seus colegas, empurrando-os e indo embora sem pedir desculpas, mas eu não sou assim.”

"Senhor, tenho tentado praticar para ser como o ar. O ar carrega todos os cheiros, bons e maus, sem apego nem aversão. O ar tem a capacidade de transformar, purificar e soltar todas as coisas. Senhor Buda, eu contemplei o corpo no corpo, o movimento do corpo no movimento do corpo, as posições do corpo nas posições no corpo, as sensações nas sensações e a mente na mente. Um monge que não pratica a atenção plena poderia jogar seu colega no chão, empurrando-o e ir embora sem pedir desculpas, mas eu não sou assim.”

"Meu Senhor, eu sou como uma criança da casta dos 'intocáveis', que não tem nada para vestir, nenhum título ou medalha para pendurar nos trapos rotos. Tenho tentado praticar a humildade, porque sei que a humildade tem o poder da transformação. Todos os dias eu tento aprender. Um monge que não pratica a atenção plena poderia ser grosseiro com seus colegas, empurrando-os e indo embora sem pedir desculpas, mas eu não sou assim."

Shariputra continuou com seu discurso, o "Rugido do Leão", mas o outro monge, arrependido, descobriu o ombro direito e se ajoelhou, pedindo perdão:
"Senhor, eu violei a Vinaya (regras de disciplina monástica). Por raiva e por ciúmes, eu disse uma mentira para desacreditar meu irmão mais velho no Dharma. Eu imploro à comunidade que me permita praticar o Começar de Novo." Diante do Buda e de toda a Sangha, ele se prostrou três vezes para Shariputra. Quando Shariputra viu o seu irmão prostrado, inclinou-se e disse:
"Eu não tenho sido hábil o bastante, e por isso criei o mal-entendido. Eu sou também responsável por isso, e peço a meu irmão que me perdoe."
A seguir ele também se prostrou três vezes diante do outro monge, e os dois se reconciliaram. Ananda pediu a Shariputra para ficar para uma chávena de chá antes de partir novamente na sua jornada.

Reprimir a nossa dor certamente não é o ensinamento da tolerância.
Temos que recebê-la, aceitá-la e transformá-la. 
A única forma de fazer isso é tornar o nosso coração maior. 

Nós contemplamos em profundidade para compreender e perdoar, caso contrário ficaremos aprisionados pela raiva e pelo ódio, e acharemos que a única forma de nos sentirmos melhor é castigar a outra pessoa. A vingança é um alimento não-saudável. A intenção de ajudar os outros, ao contrário, é extremamente saudável.


Para praticar a kshanti paramita, precisamos das outras perfeições. 

Se a nossa prática da tolerância não abarcar a compreensão, a generosidade e a meditação, estaremos apenas tentando esconder nossa dor, empurrando-a para o fundo da consciência. 
Isto é perigoso. Este tipo de energia irrompe mais tarde, destruindo a nós e os outros. Se praticarmos a contemplação em profundidade, nosso coração crescerá sem limites e nós sofreremos menos.

O primeiro discípulo que ordenei era um monge chamado Thich Nhât Tri.
O irmão Nhât Tri foi comigo e com a irmã Chân Không a diversas missões de salvamento de vítimas de enchentes no Vietname central, e passou muitos meses em pequenos vilarejos, porque isso lhe foi pedido. Estávamos a organizar a Escola de Jovens para o Serviço Social, e precisávamos nos familiarizar com a situação do povo das áreas rurais. Queríamos encontrar formas de utilizar a não-violência e a bondade amorosa para ajudar os pobres a melhorar o seu padrão de vida.
Era um lindo movimento em prol do progresso social.
Eventualmente, chegamos a ter 10.000 pessoas engajadas. Os comunistas diziam que o nosso movimento budista era pró-americano, e a imprensa dizia que nós monges budistas éramos comunistas disfarçados tentando ajudar a vitória comunista. Enquanto isso, apenas tentávamos ser nós mesmos, sem favorecer nenhum dos dois lados da guerra. Em 1967, o Irmão Nhât Tri, juntamente com outros sete assistentes sociais, foram raptados por um grupo de extrema direita, e nunca mais ouvimos falar deles.

Um dia, Nhât Tri estava a andar nas ruas de Saigão, quando um soldado americano, em cima de um camião militar, cuspiu na sua cabeça. O Irmão Nhât Tri voltou para casa a chorar. Sendo jovem, ele era tentado a reagir e lutar, e eu o segurei nos meus braços por meia hora, tentando transformar a sua profunda dor. Eu disse: "Meu filho, você não nasceu para usar armas. Você nasceu para ser monge, e seu poder é o poder da compreensão e do amor. O soldado americano o considerou seu inimigo. Isto foi a percepção errada dele. Nós precisamos de 'soldados' que possam ir para a frente de combate armados apenas com compreensão e amor:' Ele permaneceu na Escola de Jovens para o Serviço Social. Depois foi raptado e provavelmente morto. Thich Nhât Tri é um protector dos monges e monjas de Plum Village. A letra dele se parecia muito com a minha. E ele escreveu lindas canções para serem cantadas pelos pastores de búfalos nas áreas rurais.

Como podemos esquecer esse tipo de injustiça?
Como podemos transformar a injustiça sofrida por nações inteiras?
Cambojanos, bósnios, palestinos, israelitas, tibetanos, todos sofreram injustiça e intolerância.

Em vez de sermos irmãos e irmãs uns dos outros, apontamos armas uns contra os outros. Quando a raiva nos assalta, pensamos que a única resposta é castigar os outros. O fogo da raiva continua a queimar em nós, e continua a queimar também em nossos irmãos e irmãs. Esta é a situação do mundo, e é por isso que a contemplação em profundidade é tão necessária, para nos ajudar a entender que somos todos vítimas.

Eu disse ao irmão Nhât Tri:
"Se você tivesse nascido numa família de Nova Jérsia ou da Califórnia, e se lesse o tipo de artigos de jornais e revistas que esses soldados lêem, você também acreditaria que todos os monges budistas são comunistas, e também cuspiria na cabeça dos monges." Eu contei a ele que os GIs americanos eram treinados para considerar inimigos todos os vietnamitas. Eles foram mandados aqui para matar ou morrer. Eles também são vítimas, da mesma forma que os soldados e civis vietnamitas. Aqueles que apontam as armas e atiram em nós, que cospem em nós, não são os autores da guerra. Os autores da guerra estão sentados em escritórios confortáveis em Beijing, Moscovo e Washington. Aquela foi uma política errada, nascida de uma compreensão errada.
Quando eu fui a Washington em 1966, reuni-me com Robert McNamara, e o que disse a ele sobre a natureza da guerra era totalmente verdadeiro. Seis meses mais tarde ele pediu demissão, deixando de ser Secretário de Defesa, e recentemente escreveu um livro no qual confessa que a guerra do Vietname foi um erro terrível. Talvez eu tenha ajudado a plantar algumas sementes de compreensão nele.

Essa percepção errada foi responsável por uma política errada, responsável pela morte de milhares de soldados americanos e vietnamitas, além de milhões de civis vietnamitas. As pessoas das áreas rurais não entendiam por que tinham que morrer dessa forma, por que as bombas caíam sobre elas dia e noite. (...)

Quando alimentamos ódio e raiva, sentimo-nos queimar por dentro.
A única forma de escapar é a compreensão.
Quando compreendemos, sofremos menos e saberemos como atingir a raiz da injustiça.
O Buda disse que se uma flecha nos atingir, sofreremos. Mas se uma segunda flecha nos atingir no mesmo lugar, sofreremos cem vezes mais. Quando somos vítimas de injustiça, se nos permitirmos a raiva, sofreremos cem vezes mais. Quando temos uma dor no nosso corpo, devemos inspirar e expirar, dizendo a nós mesmos: "É apenas uma dor física." Se ficarmos a pensar que é um câncro e que vamos morrer logo, a dor será cem vezes pior. O medo e o ódio, nascidos da ignorância, amplificam a nossa dor.

Quem nos salva é a prajna paramita. 
Se conseguirmos ver as coisas como são, em si mesmas, e não ver nada mais do que isso, sobreviveremos.

Eu amo o povo vietnamita, e fiz o que pude para ajudá-lo durante a guerra. Mas também considerava vítimas os jovens soldados americanos que estavam no Vietname. Eu não tinha rancor contra eles, e assim sofri muito menos. Este é o tipo de sofrimento que muitos de nós tiveram que enfrentar, e o ensinamento surge do sofrimento, e não por causa de estudos académicos. Eu sobrevivi pelo Irmão Nhât Tri e por tantos outros que morreram em nome do perdão, do amor e da compreensão. E agora compartilho isso com todos, para que meus irmãos não tenham morrido em vão.

Por favor, pratiquem a contemplação profunda, e vocês sofrerão muito menos com as doenças, injustiças e pequenas dores que existem dentro de vocês. A contemplação profunda conduz à compreensão, e a compreensão conduz ao amor e à tolerância. Quando seu bebé está doente, você faz o que pode para ajudá-lo, evidentemente. Mas ao mesmo tempo você sabe que um bebé precisa ficar doente um determinado número de vezes para adquirir a imunidade de que necessita. Ao sofrer, você também sabe que irá sobreviver, porque já desenvolveu anticorpos. Não se preocupe. "Saúde perfeita" é apenas uma ideia, nada mais.
Aprenda a viver em paz com os problemas que tiver. Tente transformá-los, mas não sofra demasiado.

Durante a sua vida, Buda também sofreu. Havia intrigas para competir com ele, e até mesmo para eliminá-lo. Uma vez, quando tinha uma ferida na perna e algumas pessoas tentaram ajudar, ele disse que era só uma pequena ferida, e fez o que pôde para minimizar a dor. Em outra ocasião, quinhentos monges seus saíram para montar uma Sangha concorrente, e ele aceitou isso sem reclamar. Finalmente, as dificuldades estavam a ponto de serem vencidas.


in, “A essência dos ensinamentos de Buda” 
Thich Nhat Hanh



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