domingo, 18 de dezembro de 2016

Impossível




Nós podemos viver alegremente, 
Sem que venham com fórmulas legais, 
Unir as nossas mãos, eternamente, 
As mãos sacerdotais. 

Eu posso ver os ombros teus desnudos, 
Palpá-los, contemplar-lhes a brancura, 
E até beijar teus olhos tão ramudos, 
Cor de azeitona escura. 

Eu posso, se quiser, cheio de manha, 
Sondar, quando vestida, pra dar fé, 
A tua camisinha de bretanha, 
Ornada de crochet. 

Posso sentir-te em fogo, escandescida, 
De faces cor-de-rosa e vermelhão, 
Junto a mim, com langor, entredormida, 
Nas noites de verão. 

Eu posso, com valor que nada teme, 
Contigo preparar lautos festins, 
E ajudar-te a fazer o leite-creme, 
E os mélicos pudins. 

Eu tudo posso dar-te, tudo, tudo, 
Dar-te a vida, o calor, dar-te cognac, 
Hinos de amor, vestidos de veludo, 
E botas de duraque 

E até posso com ar de rei, que o sou! 
Dar-te cautelas brancas, minha rola, 
Da grande loteria que passou, 
Da boa, da espanhola, 

Já vês, pois, que podemos viver juntos, 
Nos mesmos aposentos confortáveis, 
Comer dos mesmos bolos e presuntos, 
E rir dos miseráveis. 

Nós podemos, nós dois, por nossa sina, 
Quando o Sol é mais rúbido e escarlate, 
Beber na mesma chávena da China, 
O nosso chocolate. 

E podemos até, noites amadas! 
Dormir juntos dum modo galhofeiro, 
Com as nossas cabeças repousadas, 
No mesmo travesseiro. 

Posso ser teu amigo até à morte, 
Sumamente amigo! Mas por lei, 
Ligar a minha sorte à tua sorte, 
Eu nunca poderei! 

Eu posso amar-te como o Dante amou, 
Seguir-te sempre como a luz ao raio, 
Mas ir, contigo, à igreja, isso não vou, 
Lá essa é que eu não caio! 



Cesário Verde 
in "O Livro de Cesário Verde" 


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