quarta-feira, 15 de junho de 2016

EU, TORNADO




O que nos faz dizer “eu sou eu”? 
O que significa auto-identidade? 


A neurociência tem uma resposta interessante. Francisco Varela, um dos pioneiros do diálogo entre a neurociência e a espiritualidade, comparou esse princípio de auto-identidade que chamamos eu com um tornado:
“Tente dizer o que é um tornado: algumas partículas de pó, por um fenómeno da física entram em coerência transitória. Não posso atribuir ao tornado uma existência substancial, no sentido clássico, mas tampouco posso dizer que não exista, pois é evidente que deixa uma tremenda destruição por onde passa”.

Similarmente, quando nos olhamos no espelho, aquilo que chamamos de Eu parece fugir à nossa percepção. Não podemos ver o Eu com os olhos, nem tocá-lo com as mãos, nem senti-lo com o tacto ou a audição. E o que isso significaria? Varela continua:
“Que os tornados e os humanos temos uma muito curiosa forma de existir. Entramos numa categoria que os cientistas chamamos hoje, de emergência ou auto-organização. Sei que esse não é um termo muito conhecido, mas sempre tento expo-lo, pois é uma dessas ideias fundamentais do século XX: descobrimos uma peculiar maneira de ser na natureza – que consiste numa curiosa combinação de ser e não-ser – da qual os seres humanos somos um exemplo”.

Os tornados são fáceis de se localizar, pelo rastro de destruição que deixam. Em relação ao Eu, onde ele pode ser visto? Onde está? Certamente, o Eu acontece no corpomente, mas evidentemente, não está limitado aos contornos do físico ou do psíquico. O tornado não é as partículas de pó, mas ele está em cada uma delas. Similarmente, nós não somos as experiências ou diferentes partes do corpo, ou pensamento ou as emoções, mas estamos em todas e cada uma delas. Se isso é facto, então, encontrar o Eu dentro de uma forma limitada, restrita ao espaço do corpo físico ou do psiquismo, é um pressuposto equivocado: se Eu não tenho um limite definido, então, lutar pelo “meu” é uma equivocação.

É exactamente isso o que o Vedanta nos propõe, já que ensina que o Eu, chamado atma, é ilimitado e, portanto, não está restrito às questões do corpomente. Ao mesmo tempo em que é ilimitado, está presente em todas as manifestações da natureza, em todas as emoções, em todos os pensamentos. Nesse sentido, ensina a Katha Upanishad: 
“Aqueles que percebem a si próprios, não como corpo ou mente, mas como o Ser ilimitado, o divino princípio da existência, encontram a fonte de toda felicidade e residem nela”.

No entanto, a não-aceitação dessa intangibilidade do Eu pode nos levar a buscar a auto-identidade em objetos e experiências. Nesse ponto começa a confusão. Quando não aceito o facto de que sou como sou, surge a necessidade de me defender de um mundo aparentemente hostil e começo, então, a delimitar o que sou através de uma lista de gostos e aversões, bem como a construir uma muralha que me isole do mundo e dos demais. Assim, vou me enroscando numa rede de acções e resultados que se emendam uns com outros e que, quase invariavelmente, acabam em sofrimento. Isso é o que chamamos Samsara.



O samsara e o tornado

A vida de samsara é como andar em círculos, exactamente como fazem os tornados. 
Samsara é um termo sânscrito que se usa para definir a sucessão de eventos e experiências, o ciclo incessante de mortes e renascimentos. Literalmente significa justamente “dar voltas”. Embora muita gente tenha uma percepção negativa desta palavra, a ideia de samsara em si mesma não é necessariamente ruim, no sentido em que, nas palavras do sábio Patañjali no Yoga Sutra, “o sofrimento que ainda não veio pode ser evitado”.

Assumindo essa condição transitória da existência samsárica abre-se para nós a possibilidade da real transformação, já que nos desligamos daquela corrida maluca pela afirmação da auto-identidade a partir de uma coleção de desejos ou aversões. É por isso que a Maitri Upanishad (VI:34) declara:
“O samsara é o próprio pensamento. Com esforço, é preciso purificá-lo. Aquilo que o homem pensa é aquilo que ele se torna. Este é o eterno mistério”.

Aqui, a Maitri Upanishad, basicamente, nos diz que céu e inferno são estados de espírito que todos levamos dentro. “Tornar-se” aquilo que se pensa é justamente viver identificado com desejos e aversões. É considerar que não há nada além do próprio conteúdo mental. Essa é a grande fonte do sofrimento humano. Porém, podemos nos vacinar contra esse sofrimento compreendendo como somos, já que o conhecimento neutraliza a ignorância.

O Vedanta propõe então uma mudança de visão.
Todos temos uma perspectiva sobre as coisas, sobre nós mesmos e sobre a vida.
Cada um tem um olhar diferente. Numa praia, por exemplo, olhe para as pessoas. Cada uma, com sua atenção selectiva, está atenta a uma parte diferente da paisagem e dos acontecimentos: os surfistas olham para as ondas, apreciam os ventos e as correntes, mas não dão a mínima para os peixes, que atraem toda a atenção dos pescadores. As mães não olham para as ondas nem para os peixes, mas para seus filhos brincando na beira do mar. As crianças, por sua vez, estão totalmente absorvidas em seus castelos de areia.

Se quisermos que a nossa vida seja digna de ser vivida com plenitude e felicidade real, é fundamental, seguindo o conselho da Upanishad acima citada, cultivar uma atitude de aceitação de cada pessoa do jeito que ela é, cada uma preocupada na sua satisfação pessoal, em prover suas necessidades básicas. Nessa ordem de coisas, é desejável aceitarmos com gratidão aquilo que a vida nos oferece agora, sem nos preocupar com como deveriam ser as coisas, e aceitando tudo e todos como presentes que a vida nos entrega para o benefício de todos.



O Eu e as necessidades do corpomente

A natureza é prodiga: quando chove, é impossível contar as gotas de água, assim como é impossível contar os grãos de areia de uma praia. As águas dos oceanos são infindáveis. O tamanho do céu é incomensurável. Os animais simplesmente confiam na vida. Não ficam estocando comida inutilmente. Em seu estado natural, eles não têm obesidade, como acontece com alguns mascotes. Na primavera, as abelhas fabricam mel apenas para a próxima temporada. Elas não se preocupam em acumular mel até a próxima década ou o próximo século: precisa durar apenas até a próxima primavera.

Os seres humanos, por nossa parte, temos certa tendência a acumular objetos de maneira tola e desnecessária, como se fossemos viver para sempre. Tem gente que estoca comida como se o mundo fosse acabar amanhã, ou como se não houvesse comida suficiente para todos. Por trás dessas atitudes, ensina Swami Dayananda, há “a crença de que essas pessoas não acreditam em si mesmas, não confiam no futuro nem na capacidade de prover dos seus próprios filhos”.

É saudável separar o que é necessidade do que seja ambição. 
As necessidades materiais devem ser consideradas usando o bom-senso, mantendo os pés na terra e sem esquecer o propósito fundamental da existência, que é a liberdade, moksha.
De costas para essa questão da liberdade, e sem termos reconhecido a inutilidade da corrida cega para satisfazer as ambições materiais, não será possível superar a crise existencial que hoje atravessa a nossa sociedade, que se faz evidente nos relacionamentos de todos os tipos.

Então, se estas palavras fizerem sentido para você, aceite a natureza do seu próprio Eu, “intangível” como o tornado. E use sua capacidade de transformação para dirigir a força desse tornado que você é para algo construtivo, útil para si mesmo e para os demais.


Pedro Kupfer


Sem comentários:

Enviar um comentário