sexta-feira, 3 de junho de 2016

Ansiedade e Ataques de Pânico




Uma besta que aparece e reaparece. Um silêncio para fora, um grito escuro cá dentro, quando aparece e nos intervalos. Porque sabemos que são apenas isso: intervalos. São a nossa saída precária.

Andamos em frente, de frente para trás, isto é, do exterior para o interior da pele, mas esse percurso é só nosso, porque o exterior, a realidade, os sons, não entram no que somos, é pior: chicoteiam as nossas extremidades, que estamos em esforço a manter intactas, não trémulas, para que ninguém dê pela nossa mentira, isto é, pela nossa monstruosa verdade:

– O Pânico.

A ansiedade é uma cela com grades de geometria variável. A besta, por vezes, permite espaço entre os quadrados para a entrada de algum ar, que sugamos, sabendo que respirar é uma dádiva rara. Por segundos dizemos talvez tenha passado, mas depois as grades fecham-se sem frestas e o mundo é o nosso tórax, e esse tórax afogado está sentado numa mesa social, está no seu posto de trabalho, está numa esplanada, está a falar em directo, está a sorrir para os filhos e está a travar simultaneamente uma luta contra a morte que naquele momento temos por certa. É uma das dores maiores do mundo. Morrer viva.

O desgosto de se ser assim, de fazer parte das e dos ansiosos anónimos, pode ser descrito nestas palavras minhas, perdidas algures num livro que escrevi chamado Ansiedade:

“Pensava que conhecia o inferno, mas estes anos andou pelo purgatório. Sabe o que é um ataque, sabe o que é quase morrer, mas o seu corpo estava sempre encostado a qualquer coisa e nunca cegava. Era atirada sem piedade contra paredes cobertas de espinhos, mas as paredes são condição de espaço, e por isso ela estava ali e via dali.

– Estou péssima: eis o anúncio do início da semana

– É uma fase, isso passa.

Chegam os três dias temidos e entra num não-lugar; tudo é dor e chamamento para morrer imediatamente, antevendo os cerimoniais em todos os seus sons, em todas as cores dos tecidos deles. Não há esquinas, não há paredes, não há onde amparar o corpo para ganhar perspetiva e cega-se. Há, o que é violentíssimo, gravidade, mas não cai num qualquer chão, não choca com nada, quando a dor insuportável a faz circular a alta velocidade e lhe dita morre imediatamente. Não há qualquer apoio, ponto de chegada ou ponto de partida.

(a dor em infinita vertigem).

Esmurrando a cabeça, chora muito alto, imageticamente agarra-se à barriga da mãe e quer muito entrar lá dentro para começar tudo de novo”.

Depois há o cansaço. Cada ataque é a garantia de um esgotamento físico e mental equivalente a uma semana sem dormir e sempre a correr. Às vezes temos mais do que um ataque por dia, precisaríamos de anos, por cada dia, para aquela palavra exausta – recuperar. Não temos como e continuamos. Com medo. E mudamos de nome.

O nosso nome não é Isabel ou Rita ou Pedro. O nosso nome é cansaço. E ficamos nomeados para sempre.

Não sangramos. Somos organismos silenciosos com tarefas de uma exigência intolerável: tomar banho de manhã.

Há uma voz que nos sussurra: nunca verás no espelho uma velha, porque sentimos que cinco anos de luta é uma vida e que a luta vai ser perdida numa morte antecipada (ou não).

Que procurar?

Afecto?

O afecto dói. Tudo dói. Somos o nosso único interlocutor. É por isso que os dias de convívio, os sábados e domingos, são o epicentro da dor: na ausência de barreiras visíveis de combate, estamos seguros num cobertor, não travamos o encolher das costelas, não impedimos os gritos, a raiva ou a oferta a uma indiferença.

Aqui está a nossa terceira sentença:

Solidão absoluta.

É por isso que a cama dói de noite. A dor é sempre uma ausência. Por isso dor e solidão são a mesma coisa. De noite podemos concentrar-nos na mão direita, no antebraço, no pescoço, na testa, nos olhos, e por aí fora, obediente aos exercícios descritos numa folha, vencer a ansiedade, podemos procurar com as mãos uma explosão de prazer, até matar deus de vez, podemos fazer isto ou aquilo, estamos sós e se uma voz, de manhã, avisar da chegada do jornal – basta isso – explodimos a chorar.

É isto. Viver morrendo, amar mentindo, falar não escutando, sorrir tremendo, comer vomitando, presenciar ausente, estar fugindo, não querer morrer e querer morrer, andar maquilhada com hematomas, trabalhar 8 horas por dia que são mil horas por dia, dizer sim dizendo não, manter um olhar banal e ser o olhar da minúcia, ser nova sendo velha, andar arrastando-nos e escrever isto tudo porque as mulheres verbalizam.

Escrever isto tudo porque haverá uma multidão que é este texto, somos vizinhos e vizinhas, isto pode efectivamente passar, mas antes de procurar ajuda é bom escrever palavra a palavra de que besta estamos a falar, porque ela morre, ela mata-se, mas temos de procurar a arma à sua medida.

É difícil ser-se lúcido e empático e não se pagar por isso.

Esta não é uma guerra perdida. Ganha-se.

Pede-se ajuda.

Sem vergonha, porque cada uma e cada um que sabe da ansiedade e do pânico tem de saber que sofrer disso é um dom horroroso.

Em nada vergonhoso.



Isabel Moreira
Deputada do PS



Sem comentários:

Enviar um comentário