terça-feira, 24 de setembro de 2013

O Homem sem Qualidades


Sabem aquele cliché que diz que se detecta um bom escritor logo na primeira frase do seu livro e com apenas alguns capítulos lidos se percebe, imediatamente, se é ou não um bom livro.
O Homem Sem Qualidades de Robert Musil é um desses casos.
Começa-se a ler e logo se aprende mais nos primeiros capítulos do que em muitos livros juntos.

Grande livro, um verdadeiro catatau literário/filosófico do espírito humano.
Todas as contorções, dúvidas e indagações eternas ali estão discorridas em sua forma infinita. Nada se responde, nada se sabe ao certo, tudo rodopia loucamente nesse turbilhão chamado vida, nesse mundo/caos chamado alma, e nesse nosso visceral desassossego chamado Literatura.

São dois volumes, no conjunto mais de mil e trezentas páginas, que demoraram cerca de vinte anos a ser escritas.
Haveria um terceiro volume. 
Musil morreu antes de o terminar.

"O Homem sem Qualidades" trata-se de um romance infindável recheado de diálogos e dissertações filosóficas em torno de um personagem, Ulrich, um homem de 32 anos, que, após fugazes tentativas de se tentar tornar, à vez, um militar, um engenheiro, e um matemático, resolve tirar um ano sabático, vivendo dos elevados rendimentos do pai, em que se dedicará a descobrir o sentido da vida para além dos simples aspectos do dia a dia, numa luta constante entre a razão e a alma, com a moral como epicentro.
Não se sentindo na realidade ligado a nada, define-se como um homem sem qualidades visto que encara todas as possibilidades como viáveis, mas nunca se decidindo na prática a nada de concreto, sendo a passividade analítica a sua atitude natural.

Deixo-vos com alguns excertos que ilustram bem o que vos digo:

"Se quisermos passar sem problemas por portas abertas, é bom não esquecer que elas têm ombreiras sólidas; este princípio, segundo o qual o velho professor sempre tinha vivido, mais não é do que uma exigência do sentido de realidade.
Ora, se existe um sentido de realidade – e ninguém duvidará de que ele tem direitos à existência -, então também tem de haver qualquer coisa a que possamos chamar o sentido de possibilidade.
Aquele que o possui, não diz, por exemplo: isto ou aquilo aconteceu, vai acontecer, tem de acontecer aqui, mas inventará; isto ou aquilo poderia, deveria ter acontecido aqui.
E quando lhe dizem que uma coisa é como é, ele pensa: provavelmente, também poderia ser diferente.
Assim, poderia definir-se o sentido de possibilidade como aquela capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser e de não dar mais importância àquilo que é do que àquilo que não é.
Como se vê, as consequências desta disposição criadora podem ser notáveis; infelizmente, não é raro que façam aparecer como falso aquilo que as pessoas admiram e como lícito aquilo que elas proíbem, ou então as duas coisas como sendo indiferentes.
Esses homens do possível vivem, como se costuma dizer, numa trama mais subtil, numa teia de névoa, fantasia, sonhos e conjuntivos; se uma criança mostra tendências destas, acaba-se firmemente com elas, e diz-se-lhe que tais pessoas são visionários, sonhadores, fracos, gente que tudo julga saber melhor e em tudo põe defeito.
Quando se quer elogiar estes loucos, chama-se-lhes também idealistas, mas é claro que com isso só se alude à sua natureza, débil, incapaz de compreender a realidade, ou que a evita por melancolia, uma natureza na qual a falta do sentido de realidade é um verdadeiro defeito."


"O ser humano não consegue viver sem paixão.
E a paixão é o estado no qual todos os seus sentimentos e ideias se encontram no mesmo espírito. Tu podes pensar, quase ao contrário, que é o estado em que um sentimento se torna todo-poderoso, um único sentimento que atrai a si todos os outros - um arrebatamento!
Não, não querias dizer nada?
Seja como for, é assim.
Também é assim.
Mas a força de uma tal paixão é imparável.
Os sentimentos e as ideias só ganham continuidade quando se apoiam uns nos outros, na sua totalidade, têm de se orientar no mesmo sentido e arrastam-se uns aos outros.
E o ser humano tenta por todos os meios, pela droga, pela ilusão, pela sugestão, pela crença, pela convicção, por vezes apenas recorrendo ao efeito simplificador da estupidez, criar um estado semelhante àquele.
Acredita nas ideias, não por elas às vezes serem verdadeiras, mas porque tem de acreditar em alguma coisa.
Porque tem de manter os afectos em ordem.
Porque tem de tapar com alguma ilusão o buraco entre as paredes da vida, para não deixar que os seus sentimentos se espalhem ao vento.
O caminho certo seria o de, em vez de se entregar a estados ilusórios, procurar pelo menos as condições da autêntica paixão.
Mas, feitas as contas, embora o número de decisões que dependem do sentimento seja infinitamente superior ao daquelas que se podem tomar com a pura razão, e todos os acontecimentos decisivos para a humanidade nasçam da imaginação, só as questões da razão se mostram ordenadas de forma suprapessoal; para o resto, nunca se fez nada que mereça o nome de esforço comum ou que sugira sequer a consciência da sua desesperada necessidade."


O Homem sem qualidades
Robert Musil


Acabei de o ler agora e, sinto-me exausta...
Mas é um livro que tinha de ler e, o melhor é ir lendo, porque como está dividido em capítulos, dá perfeitamente para ir lendo com outros livros...

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