segunda-feira, 12 de setembro de 2016

A volta ao lar: O retorno ao próprio Self




Existe o tempo dos homens e o tempo selvagem.
Quando eu era criança nas florestas do norte, antes de aprender as quatro estações do ano, eu imaginava que havia dezenas de estações: o tempo das tempestades nocturnas, o tempo de relâmpagos silenciosos no horizonte, o tempo de fogueiras nos bosques, o tempo de sangue na neve; o tempo das árvores de gelo, o das árvores encurvadas, o das árvores chorando, o das árvores cintilantes, o das árvores empanadas, o das árvores ondulando apenas as folhas mais altas e o das árvores deixando cair seus frutos. Eu adorava as estações da neve de diamantes, da neve fumegante, da neve que chia e até mesmo da neve suja e da neve endurecida, pois estas últimas indicavam que estava chegando o tempo dos botões em flor no rio.
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A psique e a alma das mulheres também têm seus próprios ciclos e estações de actividade e de solidão, de correr e de ficar, de se envolver e de se manter distante, de procura e de descanso, de criar e de incubar, de participar do mundo e de voltar ao canto da alma. Enquanto somos crianças e meninas, a natureza instintiva percebe todas essas fases e ciclos. Ela Paira bem perto de nós, e nós estamos conscientes e activas em Períodos diversos, segundo a nossa decisão.

As crianças são a natureza selvagem e, sem que recebam ordens para isso, elas se preparam para a chegada dessas estações, saudando-as, vivendo com elas e guardando desses tempos recuerdos, lembranças: a folha cor-de-carmim dentro do dicionário; as penas de pássaros; as bolas de neve no congelador; aquela vagem, varinha, osso ou pedra especial; a concha diferente; a fita do enterro do passarinho; um diário de perfumes da época; o coração tranquilo; o sangue que se excita; e todas as imagens nas suas mentes.
Houve um tempo em que vivíamos em harmonia com esses ciclos e estações ano após ano, e eles viviam em nós.
Eles nos acalmavam, faziam com que dançássemos, nos sacudiam, nos tranquilizavam, faziam com que aprendêssemos instintivamente. Eles faziam parte da pele da nossa alma — um pêlo que envolve a nós e ao mundo natural e selvagem — pelo menos até o momento em que nos diziam que na verdade havia apenas quatro estações no ano, e que as próprias mulheres tinham apenas três estações — a infância, a idade adulta e a velhice. E supostamente isso era tudo.

No entanto, não podemos nos permitir perambular como sonâmbulas envoltas por essa invenção frágil e desatenta, pois ela faz com que as mulheres se desviem dos seus ciclos naturais e profundos e, portanto, sofram de aridez, exaustão e nostalgia.
É muito melhor que voltemos aos nossos próprios ciclos exclusivos e profundos, a todos eles, a qualquer um deles. 

O conto que se segue trata dos ciclos mais importantes da mulher, a volta ao lar, ao lar selvagem, ao lar da alma:

Versões desta história são contadas entre os celtas, os escoceses, as tribos do noroeste da América do Norte, os povos da Sibéria e da Islândia.
A história geralmente se intitula "A Mulher-foca" ou "Selkie-o, Pamrauk, a pequena foca"; "Eyalirtaq, a carne de foca".
Chamo a minha versão analítica e para representação de "Pele de foca, pele da alma".
A história nos fala de onde realmente viemos, do que somos feitas e de como todas nós precisamos, com regularidade, usar nossos instintos e descobrir o caminho de volta ao lar.1

(conto na pág. 194)

A perda do sentido da alma como iniciação

A foca é um dos mais belos de todos os símbolos da alma selvagem.
À semelhança da natureza instintiva das mulheres, as focas são criaturas singulares que evoluíram e se adaptaram através dos séculos. Como a mulher-foca, as focas verdadeiras só vêm à terra firme para procriar e amamentar. A mãe foca é extremamente devotada ao seu filhote por cerca de dois meses, dando-lhe amor e protecção e alimentando-o exclusivamente com as reservas do seu próprio corpo.
Durante esse período, o filhote de quinze quilos tem seu peso quadruplicado. Depois, a mãe nada para mar aberto e o filhote já crescido e capaz começa uma vida independente.
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O símbolo da foca para a alma é ainda mais irresistível porque há nas focas uma "docilidade", uma facilidade de acesso bem familiar aos que vivem na proximidade delas. As focas têm uma certa qualidade canina: são afectuosas por natureza. Irradia delas uma espécie de pureza. No entanto, elas também podem ser muito rápidas para reagir, recuar ou retaliar quando ameaçadas.
A alma também é assim. Ela paira por perto. Ela alimenta o espírito. Ela não foge quando percebe algo de novo, de incomum ou de difícil.
Pode ocorrer, porém, especialmente quando a foca não está acostumada a seres humanos e fica ali deitada num daqueles estados de beatitude que parecem acometer as focas de quando em quando, que ela não preveja as atitudes do ser humano. Como a mulher-foca da história, e como a alma de mulheres jovens e/ou inexperientes, ela não percebe as intenções dos outros e o perigo em potencial.
E é sempre aí que a pele da foca é roubada.

Ao trabalhar com histórias de "cativeiro" e de "roubos de tesouros" bem como com a minha experiência de análise de muitos homens e mulheres, cheguei à conclusão de que ocorre no processo de individuação de praticamente todo mundo pelo menos um caso de roubo significativo.

  • Algumas pessoas o caracterizam como o roubo da sua "grande oportunidade" na vida. 
  • Os apaixonados o definem como o roubo da alma, uma apropriação do espírito da pessoa, um enfraquecimento do sentido de identidade. 
  • Outros descrevem o facto como uma distracção, uma ruptura, uma interferência ou interrupção de algo que lhes era vital: sua arte, seu amor, seu sonho, sua esperança, sua crença na bondade, seu desenvolvimento, sua honra, seus esforços.


A maior parte do tempo, esse roubo crucial se abate sobre a pessoa vindo de onde ela não espera. Ele cai sobre as mulheres pelos mesmos motivos que ocorrem nessa história do povo inuit: em virtude da ingenuidade, da percepção falha quanto às motivações dos outros, da inexperiência em projectar o que poderia acontecer no futuro, da falta de atenção a todas as pistas do ambiente e em virtude de o destino estar sempre entretecendo lições em sua trama.

As pessoas que se permitem ser roubadas não são más. Tampouco erradas. Não são tolas.
No entanto, elas são sob um certo aspecto inexperientes ou estão imersas numa espécie de cochilo psíquico. Seria um erro atribuir esses estados apenas à juventude. Eles podem ocorrer em qualquer um, independente da idade, da filiação étnica, do grau de instrução ou mesmo das boas intenções. Está claro que o facto de ser roubado evolui definitivamente para uma misteriosa oportunidade de iniciação arquetípica3 para aqueles que se vêem enredados na situação... o que se aplica a quase todo mundo.
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A história da "Pele de foca, pele da alma" é de extrema riqueza, pois fornece instruções claras e precisas para os passos exactos que devemos dar a fim de desenvolver e descobrir nosso próprio modo de cumprir essa tarefa arquetípica.
Uma das questões mais cruciais e de maior potencial destrutivo enfrentadas pelas mulheres consiste no facto de elas começarem vários processos de iniciação psicológica sem iniciadores que tenham eles próprios completado o processo. Elas não conhecem pessoas maduras que saibam como prosseguir. Quando os próprios iniciadores são pessoas cuja iniciação está incompleta, eles omitem aspectos importantes do processo sem perceber, e às vezes causam grandes males ao iniciando por trabalharem com uma ideia fragmentada da iniciação, uma ideia que frequentemente está contaminada de uma forma ou de outra.4

Na outra extremidade do espectro está a mulher que passou pela experiência do roubo e que está a lutar por ter maior conhecimento e domínio da situação, mas que se desnorteou e não sabe que existem outros aspectos a serem praticados para completar o aprendizado, voltando, portanto, ao primeiro estágio, o de ser submetida ao roubo, repetidas vezes.
Não se sabe por meio de que circunstâncias, ela ficou emaranhada nas rédeas. Basicamente, está a faltar-lhe orientação. Em vez de descobrir as necessidades de uma alma saudável e selvagem, ela se torna vítima de uma iniciação incompleta.

Como canais de iniciação matrilineares - os das mulheres mais velhas que ensinam as mais jovens certos factos e procedimento psíquicos do feminino selvagem - foram fragmentados e interrompidos por tantas mulheres e durante tantos anos, que é uma bênção poder dispor da arqueologia dos contos de fada para ter essa aprendizagem. Podemos imaginar de novo tudo o que precisamos saber a partir desses modelos profundos, ou podemos comparar as nossas ideias a respeito dos processos psicológicos essenciais das mulheres com aquelas encontradas nas histórias. Nesse sentido, os contos de fadas e os mitos são os nossos iniciadores/as. Eles e elas são os sábios/as que ensinam aos que vieram depois deles/as.

Portanto, é para as mulheres semi-iniciadas ou iniciadas de modo incompleto que a dinâmica apresentada em "A pele da foca, pele da alma" é mais ilustrativa. Quando se aprendem todos os passos que devem ser dados para completar a volta cíclica a casa, mesmo uma iniciação atamancada pode ser desbloqueada, refeita e concluída correctamente.



Notas da Autora:

1 O tema dessa história, a descoberta do amor e do lar e o encontro com a natureza da morte, é uma dentre muitas variantes encontradas em todo o mundo. (Além disso, o recurso de narração de ter
de quebrar as palavras congeladas dos lábios do narrador, descongelando-as diante do fogo para ver o
que foi dito, é conhecido em todos os países frios do mundo.)
2 Diz-se também entre os mesmos observadores que a alma não encarna no corpo, ou dá à luz o espírito, até que ela se certifique de que o corpo que irá habitar está realmente progredindo. É por isso que muitas vezes não se dá o nome à criança antes que se tenham passado sete dias do nascimento, duas fases da lua ou mesmo mais tempo, comprovando-se, portanto, que a carne está suficientemente forte para receber a alma, que por sua vez dá à luz o espírito. Além disso, as mesmas pessoas defendem a ideia sensata de que, por isso, não se deve jamais bater numa criança, pois a violência espanta o espírito do seu corpo, e é muito longo e árduo o processo para recuperá-lo e devolvê-lo ao seu lar de direito.
3 O processo iniciático — a palavra iniciação provém do latim initiare, que significa começar,
apresentar, instituir. Uma iniciando é aquela que está começando um novo caminho, que se dispôs a
ser apresentada e instruída. Uma iniciadora é aquela que se dedica ao profundo trabalho de transmitir o que sabe acerca do caminho, que mostra o modo de agir e orienta a inicianda para que ela supere os desafios e com isso aumente seu poder.
4 Em iniciações malfeitas, às vezes a iniciadora procura apenas os pontos fracos da inicianda e
ignora os outros 70% da iniciação, ou se esquece deles: o fortalecimento do talento e dons da mulher.
Com frequência, a iniciadora cria dificuldades sem fornecer apoio, inventa perigos e depois descansa.
Essa é uma transferência de um estilo fragmentado de iniciação masculina; um estilo que acredita que a vergonha e a humilhação fortaleçam a pessoa. Ela apresenta a dificuldade, mas não o apoio. Ou dá grande atenção a questões de procedimento, mas as necessidades críticas da vida dos sentimentos e da alma são tratadas num plano secundário. Dos pontos de vista da alma e do espírito, uma iniciação cruel ou desumana jamais reforça a fraternidade ou o sentido de vínculo. Isso foge à compreensão.
Na falta de iniciadoras competentes, ou com iniciadoras que sugerem e apoiam procedimentos abusivos, a mulher procura a auto-iniciação. Trata-se de uma iniciativa admirável e uma realização deslumbrante se ela chegar a atingir três-quartos do proposto. É extremamente elogiável já que ela deve prestar grande atenção à psique selvagem para saber o que vem em seguida, e depois, e depois, e acompanhá-la sem a certeza advinda de saber que foi assim que se fez, tendo produzido o efeito desejado milhares de vezes antes.



Clarissa Pinkola Estes 
in, Mulheres que Correm com os Lobos
Cap. 9 - A volta ao lar: O retorno ao próprio Self


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