terça-feira, 9 de setembro de 2014

Etiqueta: entre a virtude e a hipocrisia



"Minha cara, intimidades geram duas coisas: 
filhos e mal-entendidos. 
E eu não pretendo nenhum dos dois com a senhora" 

Jânio Quadros 
(a uma jornalista que o tratou por "você")


Existir é existir com. Para que possamos desfrutar de uma, senão de todo harmoniosa, ao menos perfeitamente suportável, convivência com nossos semelhantes, algumas regras de conduta social são fundamentais. Assim, evita-se a barbárie e o inferno que podem surgir da proximidade. E quanto mais próximos, maior a possibilidade de conflitos pois como dizem, é fácil amar a humanidade, difícil é amar o próximo.

Dentre os modos pelos quais se regulam as relações humanas em sociedade, contamos com o Direito e seus contratos. Zoopolitikon, será nas relações cotidianas que as regras de etiqueta, a cortesia e a polidez terão a função social do respeito pelo outro, por sua diferença, promovendo a concórdia (cordis, coração) entre os indivíduos chamados a viver juntos.

Certos de que as boas maneiras antecedem as boas ações e conduzem a elas, pelo exemplo, pela tradição oral, preocupamo-nos em ensinar aos pequenos algumas regrinhas básicas de boa educação: “por favor”, “obrigada”, “desculpe” etc., além de orientá-los quanto à linguagem, comedimento nos gestos, respeitar os mais velhos, não roubar e não mentir, por exemplo. É assim que, desde cedo, aprendemos a respeitar e a nos fazer respeitar.

A palavra etiqueta, é oriunda de duas fontes, grega e francesa e terão ainda dois significados distintos. O éthos grego refere-se a conduta, comportamento. Também do grego, a palavra stikos significa lugar. Já a “pequena ética”, que reduz a ética (éthos) a uma apresentação aprazível, portanto, estética do bom e do belo, a étiquette francesa é, segundo Renato Janine Ribeiro “originalmente um escrito num saco de processo, que servia nos tribunais para se identificar os documentos, portanto, os nomes das duas partes e do procurador [...]. Em 1580, etiqueta é qualquer pedaço de papel afixado a um objeto para informar sua natureza, conteúdo, características, preço etc. Mas ao migrar da corte jurídica às formas político-sociais, a etiqueta retorna à sua etimologia de rótulo e, com todo seu ritual, mesclando fascínio e intimidação, passa a explicitar a indicação do lugar do indivíduo na hierarquia social”.

A etiqueta almeja civilizar os costumes e esses se alteram ao longo da história. Houve época em que não existiam sequer talheres; independente da classe econômico-social comia-se com as mãos. No século XIII Tannhäuser orienta que “não se deve palitar os dentes com a faca, afrouxar o cinto sentando-se à mesa, assoar-se com a mão durante as refeições, devolver à travessa os restos do que comeu”. Em 1558 o arcebispo Giovanni della Casa, além de propor que o homem reduza o número de cusparadas, orienta: “Tu não deves, depois de te assoares, abrir o lenço e olhar o que este contém, como se pérolas ou rubis te houvessem descido do cérebro pelo nariz”. Em 1672 não é mais admissível que se boceje diante dos outros nem que se cuspa no chão.

As regras de etiqueta, convenções sociais reconhecidamente aceitáveis, além de exprimir um rito prazeroso de reiteração da ordem social permitirão ainda exercer a cortesia que tanto dignifica e honra quem a pratica. E a cortesia está intimamente ligada à honra pois: 
“Se a etiqueta prevê, com exactidão, até mesmo quem deve tomar a iniciativa de estender a mão ou cumprimentar, ela também abre iniciativa à cortesia: a honra não está apenas em ser o primeiro, está muitas vezes em saber ceder este lugar. É honroso honrar, ou (em outras palavras) só quem tem honra pode oferecê-la.”

Vaidosos, desde os primórdios de nossa sociedade guerreira, a questão da honra refere-se à avaliação pública sobre o respeito que os indivíduos julgam merecer. A honra está portanto, intimamente ligada ao orgulho, ao amor-próprio, ao anseio de imortalidade e a distinção que se deseja obter entre os semelhantes. Nada mais nobre.

Mas se a honra, originalmente, vinha do berço, com o tempo, passa a ser virtude do mérito, o valor pessoal também enobrece: “A virtude é o primeiro título de nobreza”, afirma Molière. “Quem comprovou a própria excelência, nas armas ou no saber, merece o reconhecimento dos concidadãos: deve ser honrado”. Em contraposição ao nobre de nascença com o nobre por mérito próprio, ao se encontrarem exclama o virtuoso: “A tua nobreza começa em ti”; ao que o primeiro replica: “E a tua termina em ti”. Renato Janine aponta que “nesta renovação da nobreza pelo mérito pessoal, os nobres novos podem alegar que devem sua elevação menos ao favor alheio que ao valor próprio”. Eis novamente o orgulho!

Conferindo propriedades distintivas, que são insígnias de classe, as regras de etiqueta podem vir a ser também um discriminatório meio de clivagem social. O não saber como se comportar e expressar intimida os humildes, que temem um constrangimento público diante de “Vossa Excelência”; o próprio Rei Luiz XIV entrega: “os povos sobre os quais reinamos, não podendo penetrar o fundo das coisas, costumam regular o seu juízo pelas aparências que vêem, e o mais das vezes medem seu respeito e obediência segundo as precedências e as posições”.

Em excesso, a polidez serve também ao papel de afastar, de se manter distância dos indesejáveis. Não nos enganemos pois as normas, as regras sociais revelarão duas faces da mesma moeda: virtude ou hipocrisia. Se a virtude é uma glória, aparência de virtude é, literalmente, vanglória. Os grosseiros bem “envernizados” evidenciam a prepotência, transformam as regras de etiqueta em instrumento de dominação. Um cínico polido não falta com a polidez, tampouco com a maldade. É fácil identificá-lo: “polidez excessiva, sorrisos rasgados, para agradar a um superior; em compensação, um desprezo evidente pelos mais pobres. É no trato com o igual e o inferior que se denuncia o arrivista: temendo confundir-se com eles, manifesta uma frieza ostentada, artificial, procurando criar pelo excesso de índices uma superioridade que não existe”.

Narcísicos e descompromissados com a virtude da honra, com o desejo de ser rememorado como herói, de tornar-se paradigma de ethos, de ser ou fazer fidalgos (filhos d'algo), ocupam-se com a pose, com a obtenção de bens que ostentem sucesso exterior. “A cortesia como mero simulacro, arremedo e artifício, mascara impunemente a pequenez, pois o novo-rico ou novo-nobre é avesso à antiga e genuína discreta polidez que consistia em honrar-se honrando”. Como alerta Renato Janine “O teatro das boas maneiras e da fineza que se pretende aristocrática pode facilmente descambar para o oco, o ridículo”.

Uma alma genuinamente nobre, respeita seu semelhante, não permite jamais que este fique em má situação. Isso está acima de qualquer regra de etiqueta: “No começo do século XX, um príncipe de Gales ofereceu um jantar a um marajá das Índias. Quando serviram aves, o hindu pôs-se a comer com as mãos e a jogar os ossos no chão, por cima do ombro. Os presentes começaram a rir – até que o príncipe de Gales também passou a comer com as mãos e a jogar os restos no chão”.

Um bruto, um tosco de bom coração sempre valerá mais que um egoísta muitíssimo bem-educado. Os bons modos, destituídos de generosidade, não passam de “aparência” de virtude. A verdadeira nobreza, virtude tipicamente aristocrática, de poucos (aristóis = os melhores, os excelentes), consiste num algo mais além que o mero cumprimento de códigos mundanos.
Exige que se elimine as diferenças entre os homens, que se dirija ao pobre do mesmo modo que ao rico; que se reconheça a todos como semelhantes. Regras de etiqueta em si, não são boas nem más. Trata-se apenas de mais uma forma de revelar nossa humanidade ou de ocultar a desumanidade presente entre nós.


Luciene Félix
Professora de Filosofia e Mitologia Greco-Romana da ESDC

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