sexta-feira, 24 de abril de 2015

O Segundo Sexo



Em todas as civilizações, e até aos nossos dias, ela inspira horror ao homem: é o horror da sua própria contingência carnal que ele projecta nela. A jovem ainda impúbere não encerra nenhuma ameaça, não é objecto de nenhum tabu, e não possui nenhum carácter sagrado. Em muitas sociedades primitivas seu sexo é considerado inocente. Os jogos eróticos são permitidos desde a infância entre meninos e meninas. É a partir do dia que se torna susceptível de conceber que a mulher fica impura.

Descreveram-se, muitas vezes, os severos tabus que nas sociedades primitivas cercam a jovem, quando acontece a sua primeira menstruação; mesmo no Egipto, onde era tratada com deferências especiais, a mulher permanecia isolada durante o período das regras. Muitas vezes expunham-na no telhado de uma casa, relegavam-na numa cabana fora da aldeia, não se devia vê-la nem tocá-la: mas ainda, ela própria não devia se tocar com as mãos. Entre os povos que praticam habitualmente o espiolhamento dão-lhe um pauzinho para se coçar. Ela não deve tocar os alimentos com os dedos. Por vezes, é-lhe radicalmente proibido comer; em outros casos a mãe e a irmã são autorizadas a alimentá-la por intermédio de um instrumento. Mas todos os objectos que entram em contacto com ela durante esse período devem ser queimados. Depois dessa primeira provação,  os tabus menstruais tornam-se menos severos, mas permanecem rigorosos.
Lê-se em particular no Levítico: “A mulher que tiver um fluxo de sangue em sua carne permanecerá sete dias na sua impureza. Quem a tocar será impuro até a noite. Todo leito que dormir… todo objecto  sobre o que se sentar será impuro. Quem a tocar em seu leito deverá lavar as roupas e a si próprio com água e será impuro até a noite.”
Este trecho é exactamente simétrico ao que trata da impureza produzida no homem pela gonorreia. E o sacrifício purificador é idêntico em ambos os casos. Uma vez purificada, deve-se contar sete dias e trazer duas pombas ou dois pombos de leite ao sacrificador que os oferecerá ao Criador. É de observar que nas sociedades matriarcais, as atitudes atribuídas à menstruação são ambivalentes. Por um lado, ela paralisa as actividades sociais,  destrói a força vital, faz murcharem as flores, caírem os frutos; mas tem também efeitos benéficos: o sangue menstrual é utilizado nos filtros de amor, nos remédios, em particular para cortes e equimoses.
Ainda hoje, certos índios quando partem para lutar com monstros quiméricos que frequentam os seus rios, colocam à frente do barco um tampão de fibras impregnado de sangue menstrual,  cujas emanações são nefastas aos inimigos sobrenaturais.
As jovens de certas cidades gregas ofereciam em homenagem no templo de Astarté, um trapo manchado com o seu primeiro sangue. Mas desde o advento do patriarcado só se atribuíram poderes nefastos ao estranho licor que escorre do sexo feminino.
(A Simone aqui apresenta vários exemplos de como o sangue menstrual continua a ser mal visto, tanto na literatura quanto no dia a dia. Ela cita exemplos de situações onde a mulher era proibida de passar por perto de certos lugares/ trabalhar em fábricas/ fazer comidas, porque supostamente o sangue menstrual faria apodrecer certas coisas)

(…)

Seria muito insuficiente assimilar tais repugnâncias às que suscita o sangue em qualquer circunstância. Sem dúvida, o sangue é em si um elemento sagrado, penetrado mais do que qualquer outro pelo mana misterioso que é ao mesmo tempo vida e morte.
Mas os poderes maléficos do sangue menstrual são mais singulares.
Ele encarna a essência da feminilidade.
É por isso que põe em perigo a própria mulher cujo mana assim se materializa.
Durante a inicialização dos Chago, exortam-se as mulheres a dissimularem cuidadosamente seu sangue menstrual. “Não o mostres à tua mãe, ela morreria. Não o mostres às tuas companheiras pode haver uma maldosa que se aposse do pano com que te enxugaste e teu casamento seria estéril. Não o mostre a uma mulher má que pegará o pano e o porá em cima da sua cabana… e não poderá mais ter filhos. Não atirem o pano no atalho nem no mato. Uma pessoa ruim pode fazer coisas feias com ele. Enterra-o no chão. Dissimula o sangue aos olhos de teu pai, de teus irmãos e de tuas irmãs.  Deixá-lo ver é um pecado.” (C.f . Lévi- Strauss, Les Structures élémentaire de la Parenté).
Entre os Aleutas, se o pai vê a filha quando das primeiras regras, ela pode ficar cega ou muda. Pensa-se que, durante esse período,  a mulher é possuída por um espírito e carregada de forças perigosas. Certos primitivos acreditam que o fluxo é provocado pela picada de uma cobra, pois a mulher tem com a serpente e o lagarto suspeitas afinidades: o fluxo participaria do veneno do animal rastejante.
O Levítico compara o fluxo menstrual à gonorreia, o sexo feminino sangrento não é apenas uma ferida, é uma chaga suspeita.
E Vigny associa as noções de mácula e de doença quando escreve:
“A mulher, criança doente é doze vezes impura.”
Fruto de perturbadoras alquimias interiores a hemorragia periódica da mulher acerta-se estranhamente ao ciclo da lua: a lua tem também caprichos perigosos. A mulher faz parte da temível engrenagem que comanda os movimentos do planeta e do sol, é presa das forças cósmicas que regulam o destino das estrelas, das marés e cujas irradiações inquietantes o homem tem de suportar. 
Mas é principalmente impressionante que a acção do sangue esteja ligado a ideias de creme que azeda, de maionese que não se faz consistente, de fermentação,  de decomposição; diz-se também que é capaz de provocar a quebra de objectos frágeis, de rebentar as cordas dos violinos e das harpas; mas tem sobretudo influência nas substâncias orgânicas a meio caminho entre a matéria e a vida; e isso menos por ser sangue do que por emanar dos órgãos genitais.
Sem lhe conhecer sequer a função exacta, sabe-se que está ligada à germinação da vida.
Ignorando a existência do ovário, os Antigos viam mesmo nas menstruações o complemento do esperma. Em verdade,  não é esse sangue que faz da mulher uma impura; antes, ele manifesta a impureza. Aparece no momento em que a mulher pode ser fecundada e quanto desaparece, ela se torna em geral estéril; jorra do ventre em que se elabora o feto. Através dele exprime-se o horror que o homem sente ante a fecundidade feminina.

Simone de Beauvoir
in, O Segundo Sexo 
pág 186 a 190

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