segunda-feira, 24 de julho de 2017

Gatos





Hitler não gostava de gatos, Churchill adorava-os, e eu fui educada a detestá-los.
A minha mãe achava que ter gatos era um sintoma de solidão desesperada e sentia tanto medo deles como das donas. Herdei a histeria.

Quando vivia no campo, a Marta pediu-me para tomar conta de uma cria abandonada e acabei por ceder. Era uma gata vadia e todos os dias se esgueirava pela janela do quarto para se rebolar com os amigos. Resultado: um dia cheguei a casa e tinha oito.
Cresceram em minha casa e, todas as semanas, morria um atropelado.
Vivíamos ao lado de uma estrada perigosa e velha, e é impossível, no campo, manter gatos dentro de casa. Sempre que saíamos de carro, cruzávamo-nos com mais uma tragédia esborrachada no asfalto, incriminando-nos por negligência.
O Bernardo sofria mais do que eu, adorava animais sem distinção: mochos, ginetes, cavalos, galinhas.

Depois desse, as dinastias sucederam-se.
Talvez na terceira, houve um exemplar a que me afeiçoei.
Era meigo e parecia reconhecer-me, além de que era o derradeiro descendente do gato da Marta e também a nossa última oportunidade de redenção. Vacinámo-lo e arranjámos-lhe um berço. À noite, o Bernardo e eu, como quem não quer a coisa, disputávamos-lhe os carinhos. Era auto-suficiente e sobranceiro, como todos, e aquilo irritava-me. Só depois de ter lido testemunhos de alguns escritores sobre a sua relação com gatos percebi o que diziam. Para eles, só existimos na hora da comida.
Lembram-me a Maluda, Deus me perdoe, que viveu uma história tremenda. Depois da químio, quando começaram a vê-la diminuída e dependente, os gatos que toda a vida mimou apoderaram-se da casa e começaram a vandalizá-la, defecando nos cortinados, arranhando as telas e derrubando as colecções de porcelana. Enfim, pode ter sido uma expressão de luto ou orfandade, mas enquanto a Psicologia não chegar aos gatos, reservo-me o direito de julgá-los.
Para mim, foi uma revelação de carácter.

Sem querer, fui gostando desse. 
Continuava a irritar-me o modo silencioso de se moverem, aquela forma de só os descobrirmos, por vezes, quando os pisamos e miam; mas aquele foi-se aguentando dentro de casa mais tempo do que os outros e fugia pouco.
Um dia, quando voltávamos da feira, fomos dar com ele muito quieto, num canto da cozinha. Fora mordido por um cão e tinha um buraco tão fundo no peito que lhe víamos as costelas. O Bernardo já estava atrasado, de modo que corri a uma clínica veterinária de Rio Maior, desconhecendo que não se pode meter um gato sem mais nem menos num carro, pois entram em pânico, e que é para isso que existem cestos ou caixas de fibra para os transportar em viagem. Passados uns quilómetros, distraída, não ceguei por acaso. O gato, que supus moribundo, deu um salto do banco traseiro para aterrar na minha cabeça e fincar as garras na minha testa e nos meus cabelos. Apanhou um susto, mas o meu não foi menor.
Ainda pensei em atirá-lo pela janela, descontrolada, mas acabei por viajar durante doze quilómetros com ele montado na minha cabeça, estrebuchando e arranhando-me - foi talvez o gesto mais nobre da minha vida, sem aplauso nem testemunhas.

O médico disse que precisava de ser cosido imediatamente e também o preço da cirurgia, desproporcionado e exorbitante, de modo que dei comigo sentada numa sala de espera, sozinha e transpirada como um pai estreante, contando as horas para o fim do pesadelo.
Quando a porta se abriu e ouvi «prognóstico reservado», afligi-me e ri-me ao mesmo tempo. O cinismo é uma peste sem escrúpulos e não dá tréguas àquela esquizofrenia tão própria do escritor, agente e observador simultâneos. 
Não se limitavam a convocar-me solidariedade, pediam-me esperança!
Sentei-me outra vez e, da segunda vez que o veterinário abriu a porta, foi para me depositar nas mãos a tábua em que o gato se tornara, depois da anestesia, com um esgar que arrepiava.
No regresso, já não foi preciso trazê-lo num cesto; estava inofensivo como um cadáver.

Era noite quando cheguei a casa e, para minha impaciência, o gato nunca mais acordava.
O Bernardo adormeceu como uma pedra e fui obrigada a vigiar o despertar de um animal com a mesma consternação que usei para com o Salvador, quando, no Hospital, recuperou de um traumatismo craniano. Duas horas depois, nada se alterara.
Eu, a cair de sono, debruçada, e o bicho, sem querer acordar, com a carcaça tão rígida como chegara.

Desesperada, liguei para a minha amiga Carolina, que vivia a 90 Km, a contar-lhe.
Generosa, mãe de quatro filhos e entusiasta de mil causas, apanhei-a estafada e prestes a meter-se na cama, com uma sugestão ensonada que me fez rir de nervos durante mais de uma hora:
- Rita, tens uma pá?

O gato recuperou à custa de um sem-fim de despesas e cuidados para, um mês depois, morrer aos pneus de uma carrinha Nissan.


Rita Ferro
in, Veneza Pode Esperar



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