domingo, 15 de março de 2015

ANA HATHERLY



A mulher afirma-se pela fala, tem uma capacidade de verbalização característica, tanto pela positiva, como pela negativa.
Como o homem sabe disso, manda-a calar.
O falar parece ser, às vezes, uma substituição do pensar, mas não: trata-se da expressão de um pensamento.
Há um pensar que leva a agir, um pensar que leva a falar, um pensar que leva ao silêncio.
Esse é o pensar profundo que se transforma em acto e obra.
A tagarelice é o pensar que não assentou.
A tradição obrigou a mulher a ficar dentro de uma caixa de vidro na qual era visível, mas não audível.
Então ela falou desesperadamente, mas sem qualquer efeito.
Quando partiu essa prisão de vidro, a sua voz transformou-se num acto revolucionário.
A mulher moderna é o efeito dessa explosão, da saída da clausura que é a casa, a família, a beleza obrigatória.
Quando toma a palavra, rompe essa teia que a envolvia numa rede de silêncio e de idealização.
A mulher não é a Eva, representativa da origem do mal da humanidade, nem a figura platónica que o petrarquismo elevou a ídolo.

(...)

“No tempo actual, a voz da mulher junta-se ao coro de vozes discordantes da humanidade, tendo outras raízes - é uma flor gritante que vai dar frutos, mas tem de se aperceber disso e pensar melhor na relação com o Outro.
Já nenhuma parede de vidro a protege.
Agora, o diálogo das vozes é um novo e duro corpo a corpo: uma batalha que se desenha.
E no fundo, ela quer vencer, ser uma nova Amazona, mas não deseja perder um seio. Nem deve.
Não deve perder a feminilidade, a singularidade do seu ser, a origem da sua criatividade específica.
O seu contributo é o espírito.
Mesmo quando se transforma em acto, a sua mão não deve esquecer-se de que existe para colher e acolher.
Essa é a capacidade específica da mulher: produzir, mas não reproduzir apenas.
E o homem não pode ser o seu modelo.

O homem acusa a mulher de não pensar com a mesma estruturação que ele, como se isso fosse um defeito. Essa atitude masculina pressupõe que o sistema criado por ele próprio é o único válido.
A mulher tem a capacidade de compreender no concreto, de relacionar.
Tem aí uma palavra a dizer.
Não sou feminista. Sou antropologicamente lúcida.

ANA HATHERLY
in, DIÁRIO DE NOTÍCIAS
Dn.TEMA - A RAZÃO DAS MULHERES


TISANA DA MULHER.
A mulher tem sido sobretudo o que o homem quis que ela fosse.
De vénus hotentote a manequim de passarelle, ela existiu para se dar.
E ela deu-se: submeteu-se trabalhou sorriu cantou dançou.
Tudo para agradar.
Embalou os filhos vivos.
Chorou os mortos.
E ele disse sempre: sois belle et tais-toi!
Ela pintou o cabelo disfarçou as rugas fez regime.
E calou-se.

Tisan nº 409 
Ana Hatherly


"A mulher é logo em criança educada para a prolongada tarefa de alimentação do homem.
Adulta diz o resto da vida com ternura de ferro: come meu esposo, come meu filho!
(Quando a minha filha era pequena eu dava-lhe de comer à colher.
 Como ela detestava sopa cuspia-a sobre a minha cara. A sopa acabava por escorrer pelo meu vestido.
 Mas um dia passei a dar-lhe de comer de gabardina)."

Ana Hatherly


Às vezes penso: os nossos sentimentos são como uma espécie de esparguete em aço, em que cada segmento está totalmente imiscuído no todo mas ao mesmo tempo é distintamente apercebível. Outras vezes penso: não, os nossos sentimentos são como uma floresta de esparguete de aço em que cada segmento emerge só parcialmente distinto. Na ponta de cada uma dessas varas vibra uma formação algo rendilhada, consequência dos constantes tremores de cada segmento, e assim, quando alguém está sob o império de funda emoção, tudo nele treme e na floresta tudo vibra e essas extremidades rendilhadas formam rapidíssimos desenhos, imiscuindo-se uns nos outros, e o total é uma combinação de vibrações que se sobrepõem e explicam a confusão que se encontra no indivíduo sob o império da emoção.

Ana Hatherly 
in, 'Tisanas'


A amizade é um sentimento de difícil definição.
Na prática porém todos concordam que ela se traduz acima de tudo por serviços prestados.
Tisanas 
Ana Hatherly


Quantas vezes nos sentimos extraordinariamente sós embora sentindo-nos felizes.
O amor é impossível mesmo quando possível.
Tisanas  
Ana Hatherly


Entre o frívolo e o trágico: a amargura do pioneiro.
Depois de ter sofrido tantas humilhações por ser de vanguarda, quando chega à maturidade, o pioneiro vê os que vieram depois usufruir do que ele descobriu, ignorando-o.
A consciência do real é um inútil oxímoro que morde.
Tisanas 
Ana Hatherly


A sabedoria do amor consiste na aprendizagem pelo sofrimento, do prazer nele contido.
Tisanas
Ana Hatherly


A observação do Outro: a diferença é o que nos une e separa.
Quando o eu descobre o outro começa a guerrilha sem fim.
O nó que se faz-desfaz.
A escolha: o gelo da solidão ou a horrível queimadura da vida.
Tisanas
Ana Hatherly


"Obstinadamente os anjos enchem nosso anseio veemente
Sereias do ar são quimeras da mente
Activo sonho de nós independentes da nossa invenção são reféns ardentes e da ambição que a todos seduz desafio extremo vertigem de luz
Sobre os despojos das almas escassas pairam calados com suas bocas lassas"

Rilkeana 
Ana Hatherly

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