sábado, 29 de julho de 2017
O PASSADO FICA, NÓS PASSAMOS
O passado é sempre um destroço fumegante, uma sombra que nos persegue, uma pele da nossa pele que não aceita compromissos ou rupturas.
Irá connosco até ao fim, como as tatuagens e as cicatrizes, como ferida incurável na voz.
O passado desagua no delta das nossas incertezas, fantasma omnipotente do que deixámos por cumprir.
Lembras-te de mim neste retrato, tapando o rosto com medo do vento e com vergonha de ter medo?
Lembras-te de nós tão longe de casa a passearmos pelas ruas íngremes de uma cidade sem nome mas de perfume intenso?
Lembras-te de ti a morrer aos poucos dentro de mim com a serena indiferença de quem imagina que tudo é imutável só porque o queremos imutável?
É isso o passado: o sentimento por trás da imagem, a recordação colada à fotografia, o aroma de uma despedida que ficou para sempre inconfessada.
Nós passamos, mas o passado fica, teimosamente, a lembrar-nos que ainda temos muito que passar,
sorriso asfixiado contra um vidro fosco onde os pássaros embatem e morrem, arquejantes, vitimados pela armadilha do fulgor do sol.
JOSÉ JORGE LETRIA
in, PRODUTO INTERNO LÍRICO
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