segunda-feira, 3 de julho de 2017

(das) transformações...





Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada 
de noites fabulosas. 
Mergulha os polegares até onde a laranja 
pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois 
renasce. Alguém descasca uma pêra, come 
um bago de uva, devota-se 
aos frutos. E eu faço uma canção arguta 
para entender. 
Inclino-me para as mãos ocupadas, as bocas, 
as línguas que devoram pela atenção dentro. 
Eu queria saber como se acrescenta assim 
a fábula das noites. Como o silêncio 
se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo 
uma canção para ser inteligente dos frutos 
na língua, por canais subtis, até 
uma emoção escura.

Porque o amor também recolhe as cascas 
e o mover dos dedos
e a supensão da boca sobre o gosto 
confuso. Também o amor se coloca às portas 
das noites ferozes 
e procura entender como elas imaginam seu
poder estrangeiro. 
Aniquilar os frutos para saber, contra 
a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua 
solidão - é devotar-se, 
esgotar a amada, para ver como o amor 
trabalha na sua loucura.

Uma canção de agora dirá que as noites 
esmagam 
o coração. Dirá que o amor aproxima 
a eternidade, ou que o gosto 
revela os ritmos diuturnos, os segredos 
da escuridão. 
Porque é com nomes que alguém sabe 
onde estar um corpo 
por uma ideia, onde um pensamento 
faz a vez da língua. 
- É com as vozes que o silêncio ganha.



Herberto Helder
in, "Ou o Poema Contínuo – Súmula" 






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