sexta-feira, 7 de julho de 2017

O adultério é a face oculta do casamento







Na verdade, o adultério é a face oculta do casamento. É o lado negro da lua. Existiu desde que existe o casamento. E, socialmente, desde Roma Antiga, desde leis augustas, a Lei Júlia, passou a ser um crime público. Portanto, é uma realidade privada, escondida e secreta, mas é uma realidade pública desde Roma Antiga, e embora hoje em dia já não se penalize o adultério, é condenada socialmente. Mas a par desse lado, e sobretudo da condenação moral e social quando acontece com figuras públicas, há a dimensão privada, que é fascinante para mim, e que diz muito sobre os instintos, sobre o balanço entre os instintos e as convenções nas relações amorosas.


A primeira entrada é sobre a importância absolutamente crucial para as três religiões abraâmicas um caso de adultério, ou de barriga de aluguer, se se quiser. Que é o caso da relação de Abraão, Sara e Agar, e que dá origem a tudo. Depois na mitologia grega, tens Zeus, que é o maior adúltero de sempre. 


O judaísmo e, particularmente, a sociedade israelita, repudia os bastardos, impedindo-os e à sua descendência de casarem com judeus. Ou seja, impede que sejam cidadãos de Israel. Impedem o fruto do adultério, e isso prende-se com a raiz do judaísmo, que é fundado numa transmissão de sangue, numa linhagem. Portanto, o adultério é tido como uma corrupção da essência.


Se nas sociedades ocidentais e de matriz judaico-cristã a carga punitiva do adultério se perdeu, no mundo islâmico é um dos aspectos que revela maior violência sobre as mulheres, enfrentando estas o apedrejamento, ao passo que aos homens o adultério é perdoado.
Não tens em nenhum caso uma regra.
A poligamia é perfeitamente aceite nas culturas islâmicas. Depende, portanto, de sociedade para sociedade. Se a lei civil acompanha ou não as orientações religiosas… Mas não existe uma regra universal, nem uma regra específica para cada uma das religiões.
Podes encontrar em África duas tribos que distam 20 quilómetros uma da outra, e uma é polígama e outra pratica a monogamia. Não há uma regra e por isso é que acho muito interessante este tema, porque remete as questões do adultério para aquilo que me interessava mais: reflectir quanto da pulsão para a infidelidade é biológica e quanto é que é societal. 
A conclusão a que chego na investigação que fui fazendo para este livro é de que, de facto, a fidelidade é uma pura construção humana. São pouquíssimas as espécies animais que são monogâmicas. Mesmo as monogâmicas dão umas voltas por fora, experimentam outros parceiros… Portanto, a monogamia enquanto fidelidade absoluta é quase um mito. E é tanto nos animais como nos humanos.
O que está na origem deste mito?
A monogamia e a fidelidade são uma construção, antes de mais para a preservação da espécie, para vingar o mais forte, para não haver perda de esperma… Eu conto no livro como, em algumas espécies, os machos, no acto do acasalamento, vedam os orifícios das fêmeas para que não sejam fecundadas num determinado período, para que vingue o seu gene.


Ao olhar para a forma como as religiões e as próprias leis foram lidando com o adultério este parece ser um fenómeno que gera uma espécie de pavor matricial, com o corpo da mulher e a disputa sobre quem sobre ele manda é um dos aspectos nucleares em todas as sociedades políticas. Muitas vezes parece que o grande tema em debate nas sociedades se prende com a forma como se exerce o controlo sobre o corpo da mulher, que é aquele que, dando vida, promete um futuro. E isto vai desde a imagem da mulher até questões que mexem com a sua privacidade e o seu papel na sociedade.
Nas primeiras sociedades, surgiu a par com a questão da posse da terra, a posse do corpo da mulher. A mulher foi empurrada cada vez mais para o interior da casa. Isso é uma forma de controlo, uma forma de poder.
Na civilização judaico-cristã, e particularmente no catolicismo, tens o marianismo, uma concepção muito forte do papel da mulher seguindo o exemplo da Virgem Maria, que concebe o seu filho sem pecado… E o marianismo é também uma forma de controlo ou de orientação quanto à postura da mulher, relativamente ao seu corpo, e que passa pela fidelidade ao marido, fidelidade à religião, e até à Virgem Maria.
A questão do corpo da mulher e da sua posse foi, portanto, central desde sempre. E a emancipação da mulher foi muito lenta. No século XIX, e há um exemplo que dou no livro disto entre nós, de que os maridos podiam facilmente interditar as mulheres e dá-las como loucas, inclusivamente se quisessem trocá-las por outras. Isto vai para além da posse do corpo, e significa uma posse total: da mente, do espírito, da liberdade… O caso a que me refiro no livro é o de Maria Adelaide, que se passa já no início do século XX, e se trata de um caso extraordinário de uma mulher que se apaixonou quando tinha já 48 anos e um filho de 26. Apaixonou-se por um chofer com a idade do filho e foi dada como louca por acção do marido. A perícia foi feita por Júlio de Matos, Egas Moniz e José Sobral Cid, que disseram que ela evidenciava “loucura lúcida”, que era “originariamente tarada”, coisas completamente absurdas se pensarmos sobre elas hoje em dia, mas o que está por trás disto é o pavor quanto à liberdade da mulher poder dispor do seu corpo. Algo que ultrapasse a convenção do casamento, da idade… A condenação do adultério está, desde sempre, ligada à condenação da fruição do corpo por parte da mulher. A história do adultério é uma história do domínio masculino.



A base deste livro é uma investigação, portanto, a primeira perspectiva que se encontra aqui é a da constatação. Ou de confirmação, se havia algumas suspeitas que tinha já relativamente à forma como o adultério foi evoluindo ao longo dos tempos. Fui confirmando essas suspeitas, que tinham a ver com essa noção de que o poder da mulher sobre o seu corpo foi constantemente cerceado. Mas, porque tem um lado privado e secreto, o adultério tem um lado picante, interdito, e só por isso já propicia que, em algumas histórias, uses o humor, a ironia, mais raramente o sarcasmo, esse só em momentos em que há mais uma indignação do que propriamente uma crítica. Mas tal como a imagem da senhora que aparece na capa, que é a [Condessa de] Castiglione, uma cortesã francesa muito conhecida. Gostei muito desta imagem exactamente porque vemos nela uma cortesã a espreitar por uma moldura de uma foto familiar. É a imagem da amante a espreitar pela moldura do convencional da família. 
No fundo, isto é o resumo do livro: mostrar uma realidade que está por detrás das fotografias. Supõe-se que as amantes não figuram nos álbuns de família.
Mas algures estarão na memória.
Há um caso que pus na secção da “Marginália”, um caso que eu conheço, de uma mulher que foi amante de um homem 20 e tal anos e que, quando ele ficou doente, não o pôde visitar no hospital, nem pôde sequer ir depois ao funeral. Isto não obstante ter sido uma pessoa determinante na vida daquele homem durante vinte e tal anos. Há um lado escondido que está sempre à espreita, e há portanto esse outro olhar sobre aquelas vidas.



São casos que conheço, e até as duas histórias que parecem anedotas…
A do voo livre de um caniche num edifício muito alto – e deixamos por isto para não estragar a surpresa –, ou a de uma senhora que se embrulha em papel higiénico e se oferece ao marido no dia a seguir a tê-lo traído pela primeira vez, são histórias reais, tal como a entrevista que fiz a um detective particular… Aquilo que ele diz é real. Muitas dessas histórias parecem ficção, e julgo que isso se prende com esse olhar do que está do outro lado  da fechadura. São as coisas que sabemos que existem mas sobre as quais falamos baixinho, aos segredinhos. O livro tem por isso esse lado picante e, em termos literários, propicia um tipo de escrita muito apetitosa também, que passa por juntar à informação o trabalho para capturar a atenção do leitor, com um fio que une esses pormenores picantes, fait divers, curiosidades. O trabalho do livro foi o de tecer uma espécie de filigrana a partir de um tema que é sério e importante na definição da forma como as sociedades foram evoluindo e como se processam as nossas vidas privadas, e, ao mesmo tempo, permite essa conjugação do que é sério com o que é risível, e o que raia quase o anedótico. De tão escondido que está, mas à mostra. É o chamado gato escondido com o rabo de fora.



Há aquela conhecida frase da Margaret Atwood que ao passo que os homens têm medo que as mulheres se riam deles, as mulheres têm medo que os homens as matem.
O grande receio dos homens é que os filhos que as mulheres dizem ser deles afinal não sejam.
É infrutífero em termos de espécie, em termos da herança genética. É um engano, uma traição… Essa é a verdadeira traição. Existe traição maior do que essa? É capaz de ser a maior que se pode imaginar. Dizer a alguém: este é o teu filho, não o sendo. Fazerem-te criar um filho que não é o teu.
Foi o que determinou que o adultério fosse condenado sobretudo, ou quase em exclusivo, pelo lado da mulher. O homem pode trair, não tão mal visto socialmente por fazê-lo, ao passo que para a mulher é gravíssimo.
Se a relação amorosa e sexual para os homens parece pôr em causa a sua afirmação pessoal e identitária, para as mulheres muitas vezes parece ser uma questão de vida ou de morte.
Um fenómeno curioso que eu abordo no livro é o efeito de Coolidge, que é transversal à maioria dos mamíferos, e que diz que os machos se cansam rapidamente da fêmea. Depois do acto sexual têm um período refractário, em que descansam, e, quanto mais relações sexuais têm com a mesma fêmea, mais longo é esse período refractário, até chegarem ao limite, quando perdem o interesse pela fêmea. E é muito curioso como, no caso das vacas, os cientistas pintaram a fêmea rejeitada, alterando-lhe as manchas, puseram-lhe ainda outro odor, e mesmo assim o macho rejeitou-a. Portanto, existe qualquer coisa biológica que leva a que os homens procurem ter mais parceiras do que as mulheres. As mulheres querem preservar, desde logo querem ser fecundadas, e depois precisam de protecção para a cria. Assim, procuram o macho que as proteja, portanto, procuram a constância, enquanto os machos procuram fecundar o maior número de fêmeas, para que os seus genes vinguem. Se calhar é estranho para os leitores que eu dê estes dados ou que fale assim, muitas vezes trocando macho por homem, mas é exactamente a mesma coisa. A base é biológica, animal. Como disse no início, a fidelidade é uma absoluta convenção.



Depois da investigação que fiz para este livro estou ainda mais convicta de que nós nos condicionamos para amar para sempre. Isso é uma convenção que depois vai sendo gerida pelos homens e pelas mulheres a partir desta base biológica, sendo que os homens não deixam nunca de ter este instinto predador e um desejo de expansão, a tentativa de implantação do gene, e as mulheres têm um instinto de preservação. Mas é muito difícil falar dos homens e das mulheres… O que acho é que as questões ligadas à fidelidade se calhar têm de ser revistas de todo.
Falo nisto no livro: a ideia de que antes se casava e de que se era feliz para sempre. Agora existe a monogamia serial, ou seja: vamos casar seis vezes durante a vida e cada uma delas será para sempre. Isso é irónico, mas é natural. Embora vivamos ainda com um enorme peso moral sobre aquilo que nos é instintivo.



É mais fácil ouvires um homem numa mesa de café vangloriar-se por trair a mulher do que uma mulher vangloriar-se por trair o marido. Persiste esse lugar-comum de que os homens traem mais do que as mulheres, mas depois há uma objecção lógica a essa ideia: os homens traem as mulheres com outras mulheres, e, estatisticamente, nalguns países, como Inglaterra, sabe-se que maioritariamente traem com outras mulheres também casadas. Portanto, tens aí um primeiro tabu. Existe esta convicção de que as mulheres traem muito menos do que os homens, mas qualquer investigação que comeces a fazer sobre o adultério leva-te a concluir que essa é uma noção completamente errada. As mulheres traem tanto como os homens.
O detective João Santos, que eu entrevistei, diz que elas são é muito mais cautelosas. Exibem menos, mas traem tanto como os homens. De qualquer modo, o adultério nunca foi uma causa. Não é uma bandeira feminista. O adultério é uma prática oculta, que, por ser sexual, diz respeito à vida privada de cada um, e que, no século XXI, se espera que não seja regulamentada, pelo menos no mundo civilizado. Depois a forma como é encarado isso relaciona-se com as convicções de cada um, com o livre arbítrio. Não se pode neste tema falar em causas, e não se espera que surja um grupo de mulheres a reivindicar: “Nós também traímos”. Mas, na verdade, hoje em dia, 2017, não será muito difícil fazer a experiência – se uma mulher comunicar às pessoas à sua volta: “Eu traí o meu marido”, e se ao lado tivermos um homem a confessar: “Eu traí a minha mulher”, o peso de censura social é brutal sobre a mulher e não tanto sobre o homem. É uma das marcas da diferença de estatuto em termos do exercício da liberdade sexual.



Por de trás de todas as histórias de adultério há sempre um lado muito triste, porque há uma perda. Quanto mais não seja porque, num casamento, quando trais a outra pessoa, perdeste a imagem que tinhas de ti próprio quando casaste. Nem é o traíres o outro, tu é que já te sentes diferente daquilo que foste.
Procuro dizer isso no livro: tu não vais à procura de outra pessoa mas daquilo que tu és, da outra pessoa em que te tornaste. O tema do adultério é, por isso, muito complexo, porque tem a ver com as motivações muito profundas das pessoas e que as leva a decidir estar com alguém, sexualmente, ocasionalmente ou partilhando uma vida. É um tema profundissimamente complexo. Passando por muitas outras questões, até pelo lado económico. Não há dados a comprová-lo, mas acredito que uma das razões por que se trai muito mais agora é o facto de não haver condições financeiras para as pessoas se divorciarem. Portanto, o adultério que se pensa ser acima de tudo uma questão moral, tem também muito a ver com circunstâncias práticas. Acompanha a evolução da sociedade. A poligamia, por exemplo, é praticada pelos homens que têm capacidade de sustentar um maior número de mulheres, portanto, é uma questão também financeira.



A revolução tecnológica veio facilitar em muito a busca de parceiros fora do casamento. Há uma série de aplicações, como o Tinder e outros, que parecem ter exponenciado essa predisposição para a traição, providenciando condições de secretismo, meios de contacto…Será?
Eu não acredito que se traia mais porque existe o Tinder, ou porque é mais fácil. Sempre se traiu, sempre se continuará a trair. Acho que mudam as circunstâncias, e sobretudo muda o conhecimento sobre a realidade, isso sim. Não sei se haverá uma revolução sobre a realidade. Acho que não. Há uma entrada no livro em que questiono como se traía no século XIX, uma vez que não havia espaços públicos. Aliás, havia o privado e o público, não havia espaços intermédios. E eu pergunto: onde é que as pessoas traíam. A vida doméstica das mulheres era muitíssimo vigiada, em sociedade também. Era uma vida bastante claustrofóbica em termos de cerceamento das liberdades, sobretudo nas classes mais altas… entre os burgueses havia sempre muitos olhos sobre tudo. Então , pergunto onde é que as pessoas traíam. Onde é que tinham relações? Mas tinham, é evidente. Quando vais ao Tinder, uma das coisas que me faz confusão é o modo como vês a sociedade toda a assumir que está à procura de alguém com quem ter relações… Enfim, não sabemos se sexuais, mas algum tipo de relação. Não me parece mal, até me parece bem, passa por assumir algo que é natural: a dinâmica das relações humanas e sexuais. Portanto, está mais à vista, agora, se isso vai ser uma revolução em termos de prática em si… Não acredito. O que essas tecnologias novas proporcionam é o espreitar-se mais facilmente pela fechadura para o quarto dos outros. É o lado voyeurista. Mas o que se passa no quarto dos outros sempre se passou e sempre se há-de passar. 





Filipa Melo




Sem comentários:

Enviar um comentário