quinta-feira, 16 de março de 2017

A Vida Oblíqua





Só agora pressenti o oblíquo da vida. Antes só via através de cortes retos e paralelos. Não percebia o sonso traço enviesado. Agora adivinho que a vida é outra. Que viver não é só desenrolar sentimentos grossos — é algo mais sortilégico e mais grácil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre essa vida insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim com que a existência feneça no que tem de oblíquo e fortuito e no entanto ao mesmo tempo subtilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e não existe nisso contradição.

A vida oblíqua é muito íntima. Não digo mais sobre essa intimidade para não ferir o pensar-sentir com palavras secas. Para deixar esse oblíquo na sua independência desenvolta.
E conheço também um modo de vida que é suave orgulho, graça de movimentos, frustração leve e contínua, de uma habilidade de esquivança que vem de longo caminho antigo. Como sinal de revolta apenas uma ironia sem peso e excêntrica. Tem um lado da vida que é como no inverno tomar café em um terraço dentro da friagem e aconchegada na lã. Conheço um modo de vida que é sombra leve desfraldada ao vento e balançando leve no chão: vida que é sombra flutuante, levitação e sonhos no dia aberto: vivo a riqueza da terra.

Sim. A vida é muito oriental. Só algumas pessoas escolhidas pela fatalidade do acaso provaram da liberdade esquiva e delicada da vida. É como saber arrumar flores em um jarro: uma sabedoria quase inútil. Essa liberdade fugitiva da vida não deve ser jamais esquecida: deve estar presente como um eflúvio.
Viver esta vida é mais lembrar-se indirecto dela do que viver directo. Parece uma convalescença macia de algo que no entanto poderia ter sido absolutamente terrível. Convalescença de um prazer frígido. Só para os iniciados a vida então se torna fragilmente verdadeira. E está-se no instante-já: come-se a fruta na sua vigência. Será que não sei mais do que estou falando e que tudo me escapou sem eu sentir? Sei sim — mas com muito cuidado porque senão por um triz não sei mais. Alimento-me delicadamente do quotidiano trivial e tomo café no terraço no limiar deste crepúsculo que parece doentio apenas porque é doce e sensível.

A vida oblíqua? Bem sei que há um desencontro leve entre as coisas, elas quase se chocam, há desencontro entre os seres que se perdem uns aos outros entre palavras que quase não dizem mais nada. Mas quase nos entendemos nesse leve desencontro, nesse quase que é a única forma de suportar a vida em cheio, pois um encontro brusco face a face com ela nos assustaria, espaventaria os seus delicados fios de teia de aranha. Nós somos de soslaio para não comprometer o que pressentimos de infinitamente outro nessa vida de que te falo.
E eu vivo de lado — lugar onde a luz central não me cresta. E falo bem baixo para que os ouvidos sejam obrigados a ficar atentos e a me ouvir.

Mas conheço também outra vida ainda. Conheço e quero-a e devoro-a truculentamente. É uma vida de violência mágica. E misteriosa e enfeitiçante. Nela as cobras se enlaçam enquanto as estrelas tremem. Gotas de água pingam na obscuridade fosforescente da gruta. Nesse escuro as flores se entrelaçam em jardim feérico e húmido. E eu sou a feiticeira dessa bacanal muda. Sinto-me derrotada pela minha própria corruptibilidade. E vejo que sou intrinsecamente má. É apenas por pura bondade que sou boa. Derrotada por mim mesma. Que me levo aos caminhos da salamandra, génio que governa o fogo e nele vive. E dou-me como oferenda aos mortos. Faço encarnações no solstício, espectro de dragão exorcizado.

Mas não sei como captar o que acontece já senão vivendo cada coisa que agora e já me ocorra e não importa o quê. Deixo o cavalo livre correr fogoso de pura alegria nobre. Eu, que corro nervosa e só a realidade me delimita. E quando o dia chega ao fim ouço os grilos e torno-me toda cheia e ininteligível. Depois a madrugada vem com seu bojo pleno de milhares de passarinhos barulhando. E cada coisa que me ocorra eu a vivo aqui anotando-a.
Pois quero sentir nas minhas mãos perquiridoras o nervo vivo e fremente do hoje.


Clarice Lispector
in, Água Viva




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