A atitude do desapego consiste em olhar para objectos, pessoas e relacionamentos,
reconhecendo objectivamente os seus valores,
reconhecendo objectivamente os seus valores,
e evitando projectar neles algo que não lhes seja intrínseco.
Desapegar-se não é fugir de pessoas ou coisas,
mas relacionar correctamente com elas,
reconhecendo a mim mesmo como plenitude,
e deixando de olhar para elas como a solução para minhas carências.
Também é ser livre do sofrimento associado às vontades, caprichos ou aversões do ego.
Em sânscrito, desapego se diz vairāgya.
Pedro Kupfer
Há muitos anos já vivo fascinado por uma lista de valores que Kṛṣṇa ensina para Arjuna naquele diálogo essencial sobre Yoga que é a Bhagavadgītā.
Essa parte da instrução sobre como aplicar o Yoga na vida através das atitudes ocupa as estrofes oito a 12 do capítulo XIII desse importante texto.
Cultivar valores no quotidiano é essencial para se ter uma vida tranquila e feliz, embora essa não seja a finalidade última deste código de conduta.
Quando ouvimos a palavra valor, vêm a nossa mente algo relevante ou fundamental. Cada um de nós tem uma escala de valores, aos quais nos mantemos fiéis. Porém, para além dos valores subjectivos que cada um possa ter, e para além daqueles que nascem e morrem, há uma série de valores que não mudam nunca, que é atemporal.
Aqueles valores pessoais, que vão mudando de acordo com o tempo, o lugar ou a circunstância, podem ser chamados de moral.
Os que não mudam, chamaremos aqui de ética. Em sânscrito, dharma.
Os valores que Kṛṣṇa ensina para o príncipe guerreiro à beira do campo de batalha, que aliás, serve de pano de fundo para o ensinamento da Bhagavadgītā, são desse último tipo: perenes, no sentido que não envelhecem nem saem de moda (o não deveriam sair), e universais, no sentido de que valem para todas as pessoas e em todas as circunstâncias. Esses valores, não obstante, não existem como fins em si mesmos, mas como condições através das quais podemos nos qualificar para o autoconhecimento, que conduz a mokṣa, a liberdade.
Penso que podemos chamá-los de código de Kṛṣṇa.
A palavra valor se diz jñāna em sânscrito. O amigo leitor certamente já conhece a outra acepção desta palavra: jñāna também significa conhecimento.
Swāmi Dayānanda escreveu um livro notável, chamado O Valor dos Valores, que explica detalhadamente, estes vinte valores fundamentais cultivados pelo sábio. Deixo aqui um breve resumo desses valores, desde já pedindo desculpas pela brevidade das explanações, já que o assunto é profundo e extenso. Ainda, fica aqui a recomendação da leitura dessa obra que é, na minha modesta opinião, um dos textos fundamentais do Yoga contemporâneo.
O Código de Kṛṣṇa
1. Amanitvam, ausência de vaidade, arrogância ou necessidade de elogio.
2. Adambhitvam, ausência de pretensão.
3. Ahiṁsā, não-violência.
4. Kṣānti, pacífica adaptabilidade.
5. Arjavam, retidão.
6. Achāryopāsanam, dedicação ao professor.
7. Śauchan, purificação.
8. Sthairyam, firmeza de propósito.
9. Ātma-vinigraha, comando sobre o pensamento.
10. Indriyartheśu vairāgyam, desapego em relação aos objetos dos sentidos.
11. Anahaṅkāra, ausência de identificação com as coisas do ego.
12. Janma-mṛtyu-jara-vyādhi-duḥkha-dośa-anudarśanam, reflexão sobre as limitações do nascimento, a morte, a velhice, a doença e a dor.
13. Aśakti, ausência de apego à ideia de posse.
14. Anabiśvaṅgaḥ putra-dara-gṛha-adiśu, equanimidade afetiva.
15. Nityam samachittatvam iśtaniṣṭopapattiṣu, equanimidade constante.
16. Mayi cha ananya-yogena bhaktiḥ avyabicharini, devoção inabalável.
17. Vivikta-deśa sevitvam, apreço por um lugar tranquilo.
18. Aratiḥ janasamsadi, apreço pela solitude.
19. Tattva-jñāna-artha-darśanam, foco e clareza na verdade.
20. Adhyātma-jñāna nityatvaṁ, disposição contínua para o autoconhecimento.
1. Amanitvam, ausência de vaidade, arrogância ou necessidade de elogio.
Amanitvam significa ausência de vaidade ou ausência da necessidade de ser elogiado. Muitas vezes, amanitvam é traduzido como humildade, mas é muito mais do que cultivar essa virtude. Poderíamos definir amanitvam como ausência de necessidade de reconhecimento por parte dos demais.
Muitas vezes, identificados com os frutos das acções que fizemos ou fazemos, exigimos um grau de respeito e reconhecimento que nem sempre coincide com o tratamento que recebemos por parte dos demais. Quem conhece o valor e o mérito das suas próprias capacidades, não tem necessidade de ser elogiado pelos demais.
2. Adambhitvam, ausência de pretensão.
Adambhitvam é um estado de equilíbro emocional e mental no qual a pessoa se aceita como ela é e não busca mostrar algo que não é. Enquanto manitvam é uma expectativa baseada em conquistas ou habilidades reais, dambhitvam se apoia em méritos falsos ou imaginários.
Quando faço de conta que sei coisas que ignoro, quando alego ter tido experiências que não tive, incho meu currículo com mentiras ou tento mostrar capacidades que não são minhas, faço isso pois acho que assim, irei impressionar os demais. O problema é que isso cria uma tensão insuportável dentro de mim. Deixar de posar ou fingir é uma virtude, no sentido que me livro dessa tensão e fico naturalmente mais tranquilo.
3. Ahiṁsā, não-violência.
A paz é o antídoto contra a violência e uma condição essencial para a vida feliz. Lutamos continuamente para conquistar objectivos mas esquecemos que se não tivermos paz para desfrutarmos daquilo que realizamos, não haverá felicidade possível. A violência é um dos mecanismos que nos mantém afastados de nossa natureza, que é plenitude.
Ahiṁsā consiste em cultivar a não-violência em palavras, pensamentos e atitudes.
Esta prática é uma condição fundamental para que de facto possamos viver a vida de Yoga. Sem uma prática sólida de não-violência não há crescimento emocional. Existem duas dimensões na prática da não-violência: a pessoal e a social. A primeira tem a ver com a maneira em que cada um se relaciona consigo próprio. A segunda tem a ver com a maneira em que vivemos a vida em sociedade, com a nossa família, nossos amigos, vizinhos ou colegas de trabalho. Essa segunda dimensão depende directamente da primeira.
4. Kṣānti, pacífica adaptabilidade.
A palavra kṣānti designa uma atitude positiva que fica bem distante da resignação sôfrega. Uma boa maneira de traduzir este termo seria “capacidade de se adaptar”. A esse respeito, diz Swāmi Dāyananda: “A atitude de kṣānti significa que eu, alegremente, calmamente, aceito aquele comportamento e aquelas situações que não posso mudar. Desisto da expectativa ou exigência pela mudança de outra pessoa ou situação, de forma a se moldar ao que penso ser agradável para mim. Eu me acomodo às situações e às outras pessoas alegremente”.
5. Arjavam, rectidão.
A palavra arjavam deriva da raíz rju, que significa flecha. Rjubhava é o sentimento de rectidão, no qual existe alinhamento entre o pensamento e a palavra, ou entre a palavra e a acção. Rectidão é uma das formas de satya, a veracidade. Consiste em fazer coincidir intenções, palavras e acções, bem como em ser fiel aos próprios valores.
Quando essa rectidão está ausente, penso uma coisa, digo outra e acabo fazendo outra diferente. Assim, a minha vida fica fragmentada, sem rumo nem prumo. Evitar este tipo de desconexão me torna uma pessoa tranquila e digna da confiança dos demais.
6. Achāryopāsanam, dedicação ao professor.
No contexto cultural em que estes valores são transmitidos, o professor representa o próprio autoconhecimento. Na antiga cultura védica, o professor é chamado achrāya ou guru. Achāryopāsanam significa literalmente “meditação sobre o professor”.
Através dessa prática contemplativa, que se estende a uma atitude reflexiva e atenta às coisas do mundo, o estudante se identifica com as virtudes daquele que lhe ensina. Enquanto professor de autoconhecimento, o achārya transcende os limites da sua individualidade, no sentido que, enquanto ensina, ele representa a própria tradição. Assim, servir o achārya se colocar a serviço do próprio conhecimento.
7. Śauchan, purificação.
Para a purificação também existem dois aspectos: o externo e o interno. O primeiro consiste em cultivar hábitos de higiene que vão bastante além da ideia de mente sã em corpo são daquele ditado de Juvenal, o poeta latino. No Yoga, cultivamos a purificação do corpo físico observando não apenas os aspectos exteriores da higiene, mas igualmente a limpeza do interior do corpo, que é feita através do shatkarma.
O ṣaṭkarma é parte integrante do Hatha Yoga e inclui lavagens periódicas dos tratos digestivo e intestinal, bem como a massagem das gengivas, a purificacao da garganta e as vias respiratórias, e outros. Esse processo se denomina bahyaśauchan, ou limpeza exterior. No aspecto interno, referente ao psiquismo, śauchan consiste em cultivar, da mesma maneira, atitudes e pensamentos elevados, evitando que a mente derive para o derrotismo o que se centre excessivamente em pensamentos negativos. Isso é chamado antaraśauchan, limpeza interior.
8. Sthairyam, firmeza de propósito.
Sthairyam é um termo que significa estabilidade, firmeza. Se refere a ser capaz de manter o foco no momento presente e no estado de tranquilidade. A calma firmeza no objectivo que me proponho a realizar chama-se sthairyam. No contexto em que este valor é passado para Arjuna, Kṛṣṇa usa este termo para se referir à capacidade de manter o foco no objectivo do Yoga, que é mokṣa, a liberdade e no processo que nos conduz a ela, o autoconhecimento. Dessa maneira, evitamos a dispersão e nossa vida ganha em significado e tranquilidade.
9. Ātma-vinigraha, comando sobre o pensamento.
A palavra Ātma se refere à autorreferência, ao lugar onde colocamos o foco. Neste contexto, ela indica a mente. Vinigraha, por sua vez, significa comando. Concretamente, ātmavinigraha designa a possibilidade de manter um comando sobre o pensamento, de maneira a evitar que a mente vagueie, se distraia e tire o foco daquilo que estamos fazendo.
É mais uma capacidade de se manter concentrado a cada momento, do que uma atitude repressiva ou uma obsessão em controlar aquilo que se pensa. Dessa maneira, ao adquirirmos a capacidade de escolher conscientemente aquilo que pensamos, nosso agir torna-se naturalmente consciente.
10. Indriyartheśu vairāgyam, desapego em relação aos objectos dos sentidos.
A palavra indriyartheśu se refere àquilo que está vinculado aos órgãos sensoriais, (indriyas). Vairāgya significa desapego. A atitude do desapego consiste em olhar para objectos, pessoas e relacionamentos, reconhecendo objectivamente os seus valores e evitando projectar neles algo que não lhes seja intrínseco.
Desapegar-se não é fugir de pessoas ou objectos mas relacionar correctamente com eles, reconhecendo a mim mesmo como plenitude e deixando de olhar para eles como a solução para minhas carências. Indriyartheśu vairāgyam também é ser livre do sofrimento associado às vontades, caprichos ou aversões do ego.
11. Anahaṅkāra, ausência de identificação com as coisas do ego.
Ahaṅkāra significa “eu-fazedor” em sânscrito, e é a palavra usada no Yoga para se referir ao ego. O ego é uma espécie de interface que nos ajuda a viver estabelecendo referências entre as coisas exteriores e a nossa individualidade. Basicamente, ele é uma lista de gostos e aversões através da qual nos relacionamos com os demais e com o mundo que nos rodeia.
Anahaṅkāra é a capacidade de perceber o ego como ele é, sem achar que começamos e/ou terminamos nele. Noutras palavras, poderíamos definir anahaṅkāra como “não-egoísmo”. Cultivar esse valor nos permite viver tranquilamente, já que passamos a olhar para nós mesmos, não como uma lista de desejos que precisam ser preenchidos ou coisas que devem ser evitadas, mas como a paz que observa esses desejos e aversões.
12. Janma-mṛtyu-jara-vyādhi-duḥkha-dośa-anudarśanam, reflexão sobre as limitações do nascimento, a morte, a velhice, a doença e a dor.
Esta longuíssima palavra é um composto que denota uma atitude absolutamente objectiva em relação à vida. O primeiro termo deste composto é janma, nascimento. O segundo, mṛtyu, morte. As outras palavras intermediárias definem tudo aquilo com que nos deparamos entre o nascimento e a morte: velhice, doença, sofrimento e limitação (respectivamente, jara, vyādhi, duḥkha e dośa).
A última parte do composto, anudarśanam, significa “ver repetidas vezes”. Portanto, o termo se refere ao facto de que, se não fizermos algo para sair desse circuito, ficaremos ad eternum indo de nascimento a morte, de morte a nascimento, de nascimento a morte...
Se o que há no meio fosse somente prazeroso, poderíamos até achar que não precisaríamos fazer nada para mudar. Porém, sabemos o que nos espera entre o início e o fim de cada vida: doença, sofrimento (físico, emocional e/ou mental), limitação e velhice que, por sua vez, nos levam para mais uma morte. O objectivo de cultivar esse valor não é negativo.
Pelo contrário, ele existe para nos ajudar a ver e aceitar a vida como ela é, com a maior equanimidade. Se fizermos isso, evitaremos a armadilha de achar que a vida é injusta ou cruel connosco, e as indesejáveis companheiras de viagem que vem junto com essa atitude: a lamúria e a autovitimização. Por sua vez, evitar este tipo de arapuca emocional nos permite aproveitar melhor e mais calmamente o tempo de vida que nos é dado.
13. Aśakti, ausência de apego à ideia de posse.
Śakti significa poder, energia, mas igualmente quer dizer “segurar firmemente”. Aśakti é o contrário de segurar: é abrir mão, relaxar. Se o décimo valor, indriyarteśu vairāgyam, estava centrado no desapego aos objectos dos sentidos, este presente valor, aśakti, tem como objectivo cultivar uma “suavização” do senso de posse ou propriedade que possamos ter em relação a algum desses objectos sensoriais.
E, quando dizemos objectos sensoriais nos referimos não apenas a coisas materiais, mas igualmente a pessoas e relacionamentos. Aśakti, então, é nos tornar cientes de que não somos donos de nada nem de ninguém. A própria ideia da possessão não resiste a uma análise objectiva: é bom lembrar que a terra e tudo o que ela sustenta já estava aí antes do nosso nascimento e que, como diz o ditado espanhol, “a mortalha não tem bolsos”. Ou seja, nada levaremos daqui na hora da morte. Portanto, aśakti.
14. Anabiśvaṅgaḥ putra-dara-gṛha-adiśu, equanimidade afectiva.
Abiśvasaṅgaḥ aponta para uma relação de intensa emotividade e apego, como o que podemos nutrir pelos nossos filhos, nosso cônjuge, nossa casa ou as coisas e pessoas muito queridas (respectivamente, em sânscrito: putra, dara, gṛha e adi). Resumindo, um afeição viscosa, de excessivo apego.
A forma negativa dessa expressão é anabiśvasaṅgaḥ. Isto, evidentemente, não significa que não devemos cuidar daqueles que amamos, mas evitar projectar nessas pessoas (ou no lar), nossas carências e inseguranças. Anabiśvasaṅgaḥ assim, aponta para uma atitude de extremo cuidado e compaixão em relação às pessoas e coisas, mas que é ao mesmo tempo desapegada e objectiva.
15. Nityam samachittatvam iśtaniṣṭopapattiṣu, equanimidade constante.
Samachittatvam quer dizer receber com a mesma equanimidade tanto o que se deseja quanto o que não se aprecia. Sama significa equilíbrio, chittatvam designa os estados de espírito. Iśtaniṣṭopapattiṣu é um termo que se usa para designar o conjunto das coisas desejáveis e indesejáveis. Nityam quer dizer sempre.
O estado constante de estabilidade mental e emocional é o segredo do Karma Yoga. Noutra passagem da Bhagavadgītā, Kṛṣṇa vai definir o estado de Yoga como chittatvam, equanimidade. Aqui, nityam samachittatvam iśtaniṣṭopapattiṣu é apresentado como um valor que nos ajuda a compreender e manter nesse estado de equilíbrio, quaisquer que sejam as circunstâncias exteriores.
16. Mayi cha ananya-yogena bhaktiḥ avyabicharini, devoção inabalável.
Mayi cha ananya-yogena bhaktiḥ avyabicharini. Temos aqui uma frase longa para uma ideia simples e breve: ela aponta para a confiança e a devoção inquebrantáveis. Essa confiança e devoção são dirigidas a Īśvara, que é o Ser manifestado ao mesmo tempo com criador e criação, como todas as formas e nomes existentes.
Essa não-separação, ananya-yoga, pode ser interpretada de duas maneiras: primeiramente, compreendo que o Todo, Īśvara, não está separado de mim, indivíduo, e que eu nunca estive nem estou longe de Īśvara. Em segundo lugar, podemos olhar para Īśvara como um refúgio: Īśvara é a minha segurança, minha inspiração, meu abrigo. Dessa confiança nasce a mente preparada para perceber a não-dualidade.
17. Vivikta-deśa sevitvam, apreço por um lugar tranquilo.
Vivikta designa um lugar solitário. Desde sempre, os yogis buscaram lugares tranquilos para viver. Até mesmo quando moramos em grandes cidades, sentimos a necessidade de sair oportunamente para passar um período em algum lugar isolado. Quando fazemos isso, voltamos depois para o meio urbano totalmente renovados.
O valor pelo lugar tranquilo não é um fim em si mesmo, já que podemos perfeitamente ter um ataque de nervos numa ilha paradisíaca ou no lugar mais lindo do planeta. O apreço pelo lugar solitário vale pelo tipo de moldura mental que ele produz: o pensamento tende a ficar mais harmonioso, as emoções mais calmas e a mente mais predisposta para reflectir e compreender a verdade sobre si mesmo.
18. Aratiḥ janasamsadi, apreço pela solitude.
Solitude não é solidão. Solidão é uma palavra que muitas vezes aparece associada ao sofrimento que surge quando alguém busca ardentemente uma companhia, sem encontrá-la. Portanto, a um isolamento imposto pelas circunstâncias ou à incapacidade de estar bem consigo próprio.
A solitude, por outro lado, é um estado de recolhimento voluntário, no qual a pessoa percebe ser boa companhia para si mesma, pois está em paz. Assim, embora não fuja da companhia de outrem, o yogi tampouco busca compulsivamente se relacionar, pois não precisa preencher carências e nenhum tipo. Aratiḥ janasamsadi, literalmente, significa “ausência de grande desejo por companhia”.
Cabe esclarecer ainda que essa disposição para a solitude não aponta para algum tipo de desprezo ou aversão à companhia dos demais. O yogi convive pacificamente com seus pares, mas não busca nesse convívio a razão da sua existência, e muito menos, a própria felicidade.
19. Tattva-jñāna-artha-darśanam, foco e clareza na verdade.
Talvez este e o próximo sejam os dois valores mais importantes do código que Kṛṣṇa ensina para Arjuna. Tattva quer dizer verdade, e designa a Realidade que dá origem às coisas: Brahman, o Ser. Jñāna, é conhecimento. Artha é um propósito ou meta. Darśanam, a visão. Este composto, portanto, pode ser definido como o propósito de manter o foco sobre o conhecimento da verdade.
Tattva-jñāna, o conhecimento dessa Realidade, implica reconhecer que não somos diferentes nem estamos separados dela. Esse reconhecimento é mokṣa, a libertação. Noutras palavras, tattva-jñāna-artha-darśanam é não perder de vista o autoconhecimento como meta prioritária, de maneira que os outros objectivos menores que possamos ter ao longo da caminhada não nos desviem da prioridade essencial.
20. Adhyātma-jñāna nityatvaṁ, disposição contínua para o autoconhecimento.
Infelizmente, a iluminação não chega sozinha se decidirmos sentar em baixo de uma árvore para esperar que ela aconteça. Se assim fosse, seria simples e fácil. Meditar pode ajudar a pessoa a reflectir sobre as misérias do mundo ou sobre seus próprios problemas, no melhor dos casos. Acontece que a iluminação não surge do nada.
Para termos iluminação, é necessário um meio de conhecimento adequado. Esse meio de conhecimento é chamado Brahmavidyā, ou autoconhecimento. Adhyātma-jñāna nityatvaṁ é o valor que nos ajuda a lidar adequadamente com esse meio de conhecimento peculiar que é Brahmavidyā.
Adhyātma indica aquilo que é centrado em Ātma, no Ser. Jñāna é conhecimento. Nityatvaṁ indica um estado de espírito constante, que não oscila. Assim, adhyātma-jñāna nityatvaṁ significa nos manter constantemente atentos e conscientes ao Ser que somos.
Os valores como preparação para a mokṣa.
O meio de conhecimento mencionado acima inclui um processo de três etapas: śravaṇam-mananam-nididhyāsanam. Śravaṇam e ouvir o ensinamento fundamental:
você já é a plenitude que está buscando.
Mananam é questionar, acabar com as dúvidas que naturalmente surgem da dissonância entre esta notícia e a imagem distorcida que geralmente temos de nós mesmos.
Nididhyāsanam quer dizer reflectir sobre aquilo que se aprendeu nas etapas anteriores e é útil para nos ajudar a ficar firmemente estabelecidos no autoconhecimento.
Os valores do Yoga não trazem, por si sós, o autoconhecimento, mas nos ajudam a cultivar uma emocionalidade e uma mente receptivas e adequadas para compreender e fruir adequadamente desse processo. Porém, cabe também lembrar que os valores não podem ser impostos desde fora. Eles precisam ser bem compreendidos, para ser integrados e interiorizados de maneira natural. Do contrário, eles poderão produzir conflito e tensão interna.
O valor dos valores
Uma vez reconhecido “o valor dos valores”, como diz Swāmi Dayānanda, eles se tornam espontâneos e passam a fazer parte da pessoa. Através dessa preparação, poderemos então compreender a Realidade Única, a natureza do Ser, ilimitada, plena e pacífica.
Swāmi Dayānanda explica a importância destes valores da seguinte maneira:
“A expressão da minha vida é apenas a expressão de uma estrutura de valores que foi bem assimilada por mim. Isso é apenas uma expressão daquilo que é valioso para mim. Para que eu possa desfrutar dos confortos, devo estar presente. Quando estou dividido pela culpa, raramente estou em outro lugar que não seja a minha ansiedade, meus remorsos e preocupações.
“Quando vejo claramente este facto, poderei entender o valor de aplicar padrões éticos universais a mim mesmo. Portanto, um valor, seja universal ou situacional, é um valor para mim, apenas quando vejo o valor desse valor como algo valioso para mim”.
Pedro Kupfer
Nota: Equanimidade
1.Ânimo inalterável, sempre igual, tanto na adversidade como na prosperidade.
2. Espírito sereno, equilibrado.
3. Correcção e imparcialidade.
Equanimidade significa serenidade de espírito.
É um estado natural e relaxado, a capacidade de experimentar de maneira estável as diferentes situações do mundo físico, das sensações, da mente e dos fenómenos.
É caracterizada pela profunda tranquilidade, completamente livre de oscilações.
Nada paga o preço de estarmos felizes por nós mesmos. Alcançando esse estágio, até mesmo os relacionamentos ficam mais fáceis de se lidar, de pensar usando a razão ao invés do coração.
Isso traz uma paz incomensurável.
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