Estranhamente, nunca tive minha rotina diária interrompida por um carro cheio de estranhos fotografando, apontando e atirando comida em mim.
Infelizmente, o mesmo não pode ser dito pelos membros da tribo Jarawa das Ilhas Andamão no Golfo de Bengala.
Considerados descendentes das primeiras pessoas a migrar da África, os Jarawa — juntamente com um punhado de outras tribos — eram as únicas pessoas a morar nas ilhas, até que os britânicos apareceram por ali em fragatas cheias de alcoolismo, doenças europeias e destruição desenfreada.
Desde então, colonos indianos povoaram as ilhas, e a construção da Grande Estrada Madeireira de Andamão nos anos 1990, que atravessa as terras Jarawa, começou a ameaçar ainda mais a sobrevivência da tribo, derrubando o número deles para 250 membros.
Essa mesma estrada trouxe uma onda de turistas — encorajados pelas operadoras locais em conluio com a polícia — a se embasbacar com os Jarawa.
Esse tipo de passeio se tornou conhecido como “safári humano”, e os Jarawa tiveram que começar a apresentar canções e danças para as câmeras de estranhos, o tipo de coisa que você não inflige às pessoas a não ser que seja um puta explorador canalha.
Depois de uma campanha incansável da organização de direitos humanos Survival International, uma ordem provisória da Suprema Corte proibiu o uso da estrada por turistas — por enquanto.
Mas com uma estimativa de 180 mil turistas, a maioria indianos do continente, passando pelas terras Jarawa todo ano, existem muitos interesses velados nessa história e a batalha ainda não acabou. Os passeios para ver os Jarawa, que aparecem na beira da Estrada Madeireira, são disfarçados como viagens para ver cavernas e vulcões de lama, que, são basicamente poças que ocasionalmente borbulham. Já vi coisa mais interessante num inventário de loja de ferragens.
Quando perguntei porque essas pessoas querem ver os Jarawa, Sophie Grig, da Survival International, me contou que a resposta mais comum é: “Porque eles não são civilizados”.
Um amigo me colocou em contato com Sunil, um visitante britânico das Ilhas Andamão, e ele me disse por telefone que achava que fazer um safári humano “não tinha nada de mais”.
Ele até me disse que achava que os Jarawa se beneficiavam com isso.
A Survival International fez questão de salientar que sua oposição em relação a esse tipo de turismo não é um “argumento entre isolação e integração. Não estamos pedindo que os Jarawa sejam isolados, apenas que eles possam tomar suas próprias decisões sobre suas terras e que tipo de vida querem levar”. Isso também se aplica à caça ilegal e à invasão de suas terras.
“A história tem mostrado que forçar tribos a se integrar na população convencional rouba a autossuficiência e o orgulho delas, deixando seus membros numa situação perigosa e à margem da sociedade”, diz Sophie.
Para saber um pouco mais, conversei com Denis Giles, editor do maior meio de comunicação e fonte de notícias das Ilhas Andamão, o Andaman Chronicle.
Agora é contra a lei que qualquer pessoa fora oficiais do governo entre nas terras da tribo, então Denis compartilhou com a gente uma entrevista realizada por ele com Enmay, membro da tribo Jarawa, antes que a lei começasse a ser aplicada.
Abaixo você lê uma versão resumida dessa conversa:
VICE: Oi, Denis. Fale um pouco mais sobre esses safáris.
Denis Giles: Bom, motoristas de táxi convencem os turistas a passar pelas terras Jarawa, onde se pode ver um pequeno grupo de homens, mulheres e crianças da tribo seguindo sua rotina e realizando atividades cotidianas como caça e coleta. Os taxistas atraem os membros da tribo oferecendo Paan (tabaco de mascar), biscoitos e alimentos cozidos. Eles incentivam os turistas a saírem do táxi para tirar fotos, assim essas pessoas podem ir para casa e se gabar de ter interagido com uma tribo de pessoas não civilizadas da Idade da Pedra.
A maioria dos turistas acha que esses safáris são inofensivos?
E como eles tratam os Jarawa?
Sim, eles não têm consciência dos perigos que estão impondo à tribo. Essa tribo não foi exposta a estrangeiros por milhares de anos e não possui imunidade contra doenças modernas. Infelizmente, essa informação não é compartilhada com os turistas, que acham que estão fazendo algo inocente. E eles tratam os Jarawa como animais — jogando biscoitos, tabaco e alimentos para eles enquanto passam.
Você acha que a Suprema Corte vai proibir de fato esse tipo de turismo?
Espero que essa ordem provisória passe pela Suprema Corte e se torne o veredito final durante a próxima audiência no dia 26 de fevereiro. [Nota: Isso realmente aconteceu, ufa!] No momento, isso é uma vitória para o movimento. A Suprema Corte parece estar seguindo na direção certa, então esperamos pelo melhor.
Há muita hostilidade contra os Jarawa nas ilhas?
A população local ri deles ou tem algum ressentimento?
A população local (colonos) tem vivido ao lado da tribo por quase seis décadas. Eles não riem ou zombam dos Jarawa, mas os consideram inferiores. Eles entendem que os Jarawa são humanos, mas o principal risco é a falta de uma compreensão apropriada sobre a tribo. Os colonos se envolvem em invasões da reserva Jarawa e isso interfere na vida da tribo — o que pode ser desastroso. Também há uma porção da população que não aprecia o fato de que os Jarawa ocupem uma área tão grande e acham que a área devia ser confinada. Essas são as pessoas que — em benefício próprio — exigem a integração da tribo.
Abaixo, temos um trecho da entrevista entre Denis e Enmay, que, segundo Denis: “É um garoto Jarawa que fez a ponte entre a tribo e o mundo exterior. Isso aconteceu depois que ele caiu de uma árvore, quebrou a perna e precisou ser ajudado pelas autoridades.
Ele depois conseguiu convencer os outros membros da tribo que os estrangeiros não eram agressivos, acabando com a hostilidade que existia entre eles”.
Denis: Você nasceu na floresta. Como era lá?
Enmay: Era bom. Costumávamos coletar phal [frutas] na floresta. Eu tinha amigos e não tínhamos desavenças. Costumávamos caçar porcos e tinha muitos. Quando cresci um pouco mais, saíamos para caçar e não achávamos nada. Não comemos veados, só comemos porcos. Também gostamos de katchwar [tartaruga].
Os mais velhos da tribo conheciam os brancos?
Não, não conheciam. Não sabíamos que os homens brancos costumavam vir para a floresta, mas agora sabemos.
O que seus amigos, familiares e os mais velhos pensam de estrangeiros como nós?
Ficamos assustados na primeira vez que vimos pessoas brancas. Quando os sahabs [indianos] vinham, eu tinha medo. Éramos muito jovens. Eles costumavam nos assustar com armas, por isso atacávamos. Não porque tínhamos raiva, mas porque tínhamos medo e pensávamos: “Por que essas pessoas estão vindo para cá?”. Eles também matavam veados e preparavam armadilhas.
Muitas árvores foram cortadas quando a estrada foi construída — vocês ficaram incomodados com isso?
Não, não ficamos. Os mais velhos disseram que as pessoas estavam cortando as árvores, mas eles também não sabiam sobre a estrada. Mas acharam mesmo que as pessoas brancas começariam a aparecer.
Vocês acreditam em algum deus?
Deus — não sei. Não temos um deus. Não rezamos.
O que você disse para as pessoas da tribo depois que voltou do hospital quando quebrou a perna?
Contei para todos que as pessoas estrangeiras eram boas. Ninguém me atacou. Contei isso a eles. Fora da floresta é bom e dentro da floresta é bom. As duas coisas são boas.
Vocês lutam na floresta?
Costumávamos usar facas e arcos para machucar os outros, mas agora está tudo melhor. Costumávamos lutar muito quando eu era criança, mas agora tudo está bem.
Como você se sente quando os estrangeiros tiram fotos de você?
Não me sinto bem. Não gosto quando eles tiram fotos de dentro dos veículos. Eu roubo as câmeras e as quebro. Os sahabs nos ensinaram como quebrar as câmeras.
Se deixássemos vocês na floresta e fôssemos embora, como você se sentiria?
Seria bom. Se os estrangeiros ficarem também vai ser bom. Mas normalmente não nos sentimos bem quando vemos caras novas.
Muitos caçadores vêm para a floresta, certo?
Sim, muitos vêm. Eles vêm em grande número e cortam as árvores.
Jovens Jarawa começaram a ir para a estrada e pedir comida — como você se sente com isso?
Isso não é bom. Os policiais usam palavras vulgares e isso é ruim. Por isso não vou para a estrada.
Sem comentários:
Enviar um comentário