domingo, 15 de dezembro de 2013

CONSELHOS ÀS MAL-CASADAS


CONSELHOS ÀS MAL-CASADAS (193?)

(as mal-casadas são todas as mulheres casadas e algumas solteiras)

"Livrai-nos sobretudo de cultivar os sentimentos humanitários.
O humanitarismo é uma grosseria.
Escrevo a frio, raciocinadamente, pensando em vosso bem-estar, pobres mal-casadas.
A arte toda, toda a libertação, está em submeter o espírito o menos possível, deixando ao corpo, que se submeta à vontade.
Ser imoral não vale a pena, porque diminui, aos olhos dos outros, a vossa personalidade e a banaliza.
Ser imoral dentro de si, cercada do máximo respeito alheio. Ser esposa e mãe corporeamente virginal e dedicada, e ter, porém contactos […] inexplicáveis com todos os homens da vizinhança, desde os merceeiros até (…) — eis o que maior sabor tem a quem realmente quer gozar e alargar a sua individualidade, sem descer ao método da criada de servir, que, por ser também delas é baixo, nem cair na honestidade rigorosa da mulher profundamente estúpida, que é decerto filha do interesse.
Segundo a vossa superioridade, almas femininas que me ledes, sabereis compreender o que escrevo. Todo o prazer é do cérebro, todos os crimes que se dão é só em sonhos que se cometem. (...)
Dou-vos estes conselhos desinteressadamente aplicando o meu método a um caso que me não interessa.
Pessoalmente os meus sonhos são de império e glória; não são sensuais de modo algum.
Mas quero ser-vos útil, ainda que mais não seja só para me arreliar porque detesto o útil.
Sou altruísta a meu modo."

FERNANDO PESSOA
Livro do Desassossego


Gosto muito de Pessoa nalgumas coisas, mas detesto-o noutras!
Mas a sua sinceridade, a sua introspecção...ninguém foi tão longe quanto ele em português...o drama é sempre a mulher...esse mistério que eles nunca alcançam sem a AMAR...



"Não encontro dificuldade em definir-me: sou um temperamento feminino com uma inteligência masculina.
A minha sensibilidade e os movimentos que dela procedem, e é nisso que consistem o temperamento e a sua expressão, são de mulher.
As minhas faculdades de relação — a inteligência, e a vontade, que é a inteligência do impulso — são de homem.
Quanto à sensibilidade, quando digo que sempre gostei de ser amado, e nunca de amar, tenho dito tudo.
Magoava-me sempre o ser obrigado, por um dever de vulgar reciprocidade — uma lealdade do espírito — a corresponder.
Agradava-me a passividade.
De actividade, só me aprazia o bastante para estimular, para não deixar esquecer-me, a actividade em amar daquele que me amava.
Reconheço sem ilusão a natureza do fenómeno.
É uma inversão sexual fruste.
Pára no espírito.
Sempre, porém, nos momentos de meditação sobre mim, me inquietou, não tive nunca a certeza, nem a tenho ainda, de que essa disposição do temperamento não pudesse um dia descer-me ao corpo.
Não digo que praticasse então a sexualidade correspondente a esse impulso; mas bastava o desejo para me humilhar.
Somos vários desta espécie, pela história abaixo — pela história artística sobretudo. Shakespeare e Rousseau são dos exemplos, ou exemplares, mais ilustres.
E o meu receio da descida ao corpo dessa inversão do espírito — radica-mo a contemplação de como nesses dois desceu—completamente no primeiro, e em pederastia; incertamente no segundo, num vago masoquismo."

Fernando Pessoa

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