quinta-feira, 7 de julho de 2016

Ronda




A alma dele é revestida de um feminino invisível. 
Transparente. Tem quebras, rasgos, impulsos, 
momentos de 
uma grande carência, de uma loucura clandestina. 
Eu o construo diariamente no meu quarto, lhe dou 
coloridos, 
lhe deixo a barba malfeita, o mando pra rua sozinho, 
inseguro, 
com medo dos outros. 
Ele atravessa a avenida São João, se escora nas sombras 
dos 
desconhecidos, nas memórias, toma um café amargo 
e se sente espião dos seus próprios actos, acende um 
cigarro, 
tenta espantar uma ideia de solidão. 
Esbarro nele, mas às vezes chego tão perto, tão dentro,
quase no avesso. Depois ele se mistura, se perde no 
trânsito, 
me despista e eu de repente o localizo enfrentando 
anónimo 
a noite, o centro da cidade, o descubro escrevendo 
palavrões 
na porta de um banheiro. 
Meio desertor da vida, inutilmente refugiado na 
multidão, 
no escuro das esquinas, nas olheiras. 
Delator silencioso de não ter lugar, nem importância, 
percorrendo os túneis da própria marginalidade, 
Insónia. 
Ele anda, pára em balcões de bar, em bancas de jornais, 
olha 
nos olhos dos outros, os outros, todos os possíveis 
outros 
que passam. Tem a alma multipartida, multifacetada. 
Eu o deixo de madrugada na Avenida Ipiranga com um 
pouco 
de frio nas mãos e na cabeça a banda sonora dos 
super-heróis. 


Bruna Lombardi
in, O Perigo do Dragão



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