Transparente. Tem quebras, rasgos, impulsos,
momentos de
uma grande carência, de uma loucura clandestina.
Eu o construo diariamente no meu quarto, lhe dou
coloridos,
lhe deixo a barba malfeita, o mando pra rua sozinho,
inseguro,
com medo dos outros.
Ele atravessa a avenida São João, se escora nas sombras
dos
desconhecidos, nas memórias, toma um café amargo
e se sente espião dos seus próprios actos, acende um
cigarro,
tenta espantar uma ideia de solidão.
Esbarro nele, mas às vezes chego tão perto, tão dentro,
quase no avesso. Depois ele se mistura, se perde no
trânsito,
me despista e eu de repente o localizo enfrentando
anónimo
a noite, o centro da cidade, o descubro escrevendo
palavrões
na porta de um banheiro.
Meio desertor da vida, inutilmente refugiado na
multidão,
no escuro das esquinas, nas olheiras.
Delator silencioso de não ter lugar, nem importância,
percorrendo os túneis da própria marginalidade,
Insónia.
Ele anda, pára em balcões de bar, em bancas de jornais,
olha
nos olhos dos outros, os outros, todos os possíveis
outros
que passam. Tem a alma multipartida, multifacetada.
Eu o deixo de madrugada na Avenida Ipiranga com um
pouco
de frio nas mãos e na cabeça a banda sonora dos
super-heróis.
Bruna Lombardi
in, O Perigo do Dragão
Sem comentários:
Enviar um comentário