sexta-feira, 12 de junho de 2020

A Curva Do Rio

A Curva do Rio, V. S. Naipaul - Quetzal Editores







O livro A Curva Do Rio, do escritor nascido em Trinidad e Tobago, V. S. Naipaul, traz no título o que parece ser uma referência geográfica, ou ao menos uma referência de localização. Entretanto, conforme o novelo da trama vai sendo desfeito, percebe-se que o que antes parecia ser um local (já que a cidade onde a história se passa se encontra na curva de um rio) na verdade é mais do que isso, é um “lugar” histórico, um bastião localizado no espaço e no tempo, não cronológico, mas socialmente construído.

Ao atribuir o prémio nobel a Naipaul, a Academia Sueca justificou a sua escolha dizendo que o prémio fora concedido ao autor “por unir narrativa perspicaz e escrutínio incorruptível em trabalhos que nos levam a ver a presença de histórias suprimidas.” 
Naipaul consagra-se neste livro como um porta-voz de anseios dispersos pela África, ora mais gerais ora mais específicos, que alcançam as próprias tramas tecidas pela História na encruzilhada de caminhos que foi (e continua sendo) todo o continente africano.

A narrativa acontece na primeira pessoa de Salim, um jovem habitante da região leste de África que antevendo difíceis mudanças no lugar onde mora, resolve aceitar a oferta de um amigo da sua família, Nazruddin e parte para a África central, onde compra uma loja numa cidade incrustada no coração da floresta. Ao conhecer a cidade (que se supõe localizar-se no ex-Congo Belga), Salim descobre que se trata mais de um conjunto de ruínas em lenta recuperação do que propriamente de uma cidade da forma como ele estava acostumado. Na beira do rio (também não nomeado), Salim recebe em sua casa um criado da família que insistiu em acompanhá-lo, e o filho de uma amiga sua para tentar manter a loja viva no contexto da economia local, que se encontra extremamente debilitada pelos confrontos tribais e pela acção dos nativos, que descontentes com a invasão e colonização, reagem muitas vezes de forma explosiva.

A localização histórica do livro também é propositadamente escolhida para arrancar todo o dramatismo e as questões do processo histórico circundante, no caso a descolonização da África e os possíveis caminhos a serem trilhados pelos povos do lugar dali em diante. A instabilidade a um tempo promissora e ameaçadora que enfrenta Salim com a sua loja, é emblemática na medida em que está atada a um processo mais amplo, que sintetiza boa parte da situação de África no cenário pós-colonização
As ruínas em que a cidade se encontra são os restos da colonização que sobreviveram à destruição provocada pelos nativos, formando a base precária sobre a qual deve caminhar a África dali em diante.

Naipaul consegue fazer saltar aos olhos uma infinidade de questões, mesmo que às vezes ele mesmo encontre dificuldades em lidar com elas todas de uma vez. Não se trata, contudo, de faltas do autor, mas a expressão da própria situação que ele observava, afinal colocava-se ali um divisor de águas na História do continente (ou de boa parte dele). Os olhos e os esforços voltam-se não para um futuro onde impera o otimismo, mas sim um árduo processo de reorganização sobre a qual pesa o espólio sangrento do passado de colónia e todo o confronto nativo responsável pelas cicatrizes deixadas na cidade na curva do rio.

Ao longo do livro são expostas várias situações bastante expressivas, como quando o amigo de Salim traz uma franquia de fast-food para se instalar na cidade, apresentando outras facetas da colonização modificada, porém insistente e metamorfoseada; ou quando os dois jovens que acompanham o protagonista na lida diária com o comércio se mostram confusos com o porvir e suas próprias identidades, já que o “mundo” em que cresceram passa por solavancos profundos, reordenando (ou trazendo o caos) vários aspectos da realidade.

Uma curva no rio retrata um parto, ou melhor, vários nascimentos. 
A “velha” África está a gemer com as dores de parto para que a África “moderna” venha ao mundo. Dessa sofrida concepção nascem projetos, alguns surgem natimortos, outros se impõem e outros são esmagados, todos na esteira de transformações acompanhadas de mudanças presidenciais, sublevações populares, rusgas tribais, enclaves económicos e assim por diante.

A curva no rio mostra assim outros de seus significados. 
Se falando fisicamente a curva do rio é o local onde se acumulam detritos e fragmentos de toda a extensão do leito, ao transpormos isso para o terreno ficcional de Naipaul, vê-se situação semelhante, pois trata-se de um lugar onde fragmentos de colonização, raízes tribais, disputas político-partidárias, conflitos étnicos e avanços capitalistas se colidem, sobrepondo-se, anulando-se, combinando-se e sintetizando-se de formas peculiares, escrevendo muitas vezes com sangue a História tão conturbada do continente. Trata-se de um país pós-colonial, com enormes atrasos e sem sociedades desenvolvidas no sentido europeu, onde o conflito é uma realidade permanente.
A cada linha vemos as relações de dependência entre as pessoas, a escravatura, a pobreza, corrupção. Ao lado disto, temos um poder político omnipresente, primeiramente como esperança, depois como a única realidade dominante. 
Fez-me lembrar Orwell no seu assustador 1984.

Naipaul revela os fantasmas de uma África dilacerada, e traça um perfil sobre o domínio árabe no continente.

A determinado momento do livro o domínio árabe na África Central é descrito como a "luz de uma estrela, que ainda viaja depois da extinção da estrela".
O protagonista do romance, Salim, não é árabe, e sim descendente de indianos muçulmanos, mas mais de uma vez compara-se ao grupo de primeiros colonizadores de África, que franquearam a chegada de seus antepassados ao continente.
Os árabes, assim como a família de Salim, tinham o costume de manter escravos. Tratava-se, segundo ele, de hábito arraigado, que não era visto como um mal nem pelos senhores nem por seus servos. Mas era um costume bárbaro, na óptica dos segundos invasores de África, os europeus, e foi duramente combatido.
Quando o romance se inicia, no início da década de 60, o continente passa por uma onda de independência, e os "homens brancos", assim como muitos árabes, indianos, persas, além de milhares de africanos, são mortos em carnificinas selvagens. Ódios tribais acirram os conflitos até que uma nova ordem pós-colonial é finalmente instaurada.

O romance é dividido em quatro partes, que descrevem, num movimento de ascensão e queda, o rápido florescimento económico posterior à independência e o caos a que retorna o país, após a guinada nacionalista do novo presidente, alcunhado de Grande Homem.

A curva do rio a que alude o título refere-se "ao ponto mais avançado a que os árabes tinham chegado no século anterior". A cidade que se instala às suas margens é um centro de trocas. É ali que afluem as tribos das florestas e os "estrangeiros" provenientes do litoral leste. É ali que o Grande Homem manda construir um monumental centro universitário, onde os descendentes tribais confrontam sua cultura com as ideias externas, sobretudo o marxismo.

Nesse contexto conturbado, Salim associa-se à luz de uma estrela morta. Suas origens não podem ser recuperadas. A certa altura, um amigo dele, também descendente de indianos, vai à embaixada da Índia, à procura de um cargo diplomático. Abaixo dos retratos de Gandhi e Nehru, o embaixador o destrata: "Como poderíamos aceitar alguém com a lealdade dividida?".
Tal como o amigo, Salim é um "homem sem vínculos". A sua existência é uma constante busca de identidade. Quem ele é? Africano? Estrangeiro? Representante de antigos colonizadores? Adepto relutante da nova ordem? 

"Uma Curva..." trata de existências fantasmagóricas numa África dilacerada entre a barbárie recordativa de "O Coração das Trevas" e um impulso febril de modernização.
Já para o fim do romance, Salim passa uma breve temporada em Londres. Lá ele vê uma milionária árabe, antecedida por um rapaz que lhe carrega os sacos das compras. Sua familiaridade com os costumes islâmicos o faz adivinhar: é um escravo. A passagem sem dúvida ajuda a alimentar as críticas dos detratores de Naipaul, que o acusam de macular a imagem dos povos coloniais.

Mas a verdade é que Naipaul não faz concessões. Os africanos são desesperados, instáveis e violentos. Os europeus são ardilosos, neuróticos e desinformados. E os muçulmanos apegam-se a tradições que lhes outorga o direito de oprimir as suas mulheres e conservar os seus escravos.
 
Numa entrevista dada mais ou menos na mesma época em que ocorre a acção do romance, o pensador Roland Barthes afirmou que não acredita haver uma real literatura de esquerda. Por sua própria estrutura, a ficção só estimularia as respostas, mas não poderia fornecê-las.
Pode-se dizer que o mesmo acontece nos romances de Naipaul. 
O choque cultural, expressão hoje em dia tão criticada, mas fundamental se quisermos entender os livros do escritor, instaura uma análise da alma humana, dos motores que a tornam tão misteriosa, por vezes cruel, por vezes mesquinha, por vezes comovente. Não há respostas, mas dezenas de interrogações.
Salim não tem grandes relações sociais. Num país africano, ele é indiano e as suas relações mais próximas são com indianos. De entre essas relações destacam-se um casal também comerciante que foi para a cidade, mas que vive de medo. Um casal de aparência social com o qual almoça uma vez por semana. Além deste casal há Metty, um escravo da sua família que pede para ir viver com ele nessa cidade do interior. É muito interessante ver a relação entre ambos ou, indo mais além, seguir a ligação existente entre esses escravos e os seus senhorios. Em muitas situações é o escravo que acaba por ser o senhor. A relação entre Salim e Metty oscila entre a quase cumplicidade e o parasitismo puro.
Há ainda um amigo de juventude, Indar,  que graças aos estudos consegue ser próximo do presidente. É colocado na Cidade Nova, reencontra Salim, e a partir daqui seguem-se várias peripécias romanescas e as soirées  com pessoas relevantes socialmente. Raymond escreve discursos do Grande Chefe, é seu conselheiro privilegiado. Mas num país em ebulição, rapidamente cai em desgraça.

Em termos gerais, a história decorre num país pós-colonial, inicialmente cheio de esperança no progresso e no futuro. Mas rapidamente há um desmoronamento social, e é dramático ver o que acontece a todas as personagens. Da esperança passam ao descrédito. A violência, a corrupção, as guerras, rapidamente transformam em tragédia qualquer sonho, por mais básico que seja. 
A esperança depositada num novo poder político, com traços de iluminismo, rapidamente dá lugar a mais um regime totalitário. O deflagrar de um amanhã de violência, tragédia, cegueira social. Tudo sempre com a melhor das intenções.

Aquilo que associamos normalmente a África aparece nesta obra em todo o seu esplendor. 
A Curva do Rio é um retrato dramático deste continente mergulhado numa permanente instabilidade e sem perspectivas de uma vida normal. 
Pelo tipo de personagens e pelos países que vão sendo citados, percebemos que este país sem nome fica próximo do Corno de África, algures entre a Tanzânia e a Somália.
E nessa pequena cidade de África, um comerciante indiano testemunha as transformações pós-coloniais. A chegada ao poder de um líder populista dissipa traços de influência britânica e dá lugar ao nacionalismo e à corrupção. 

O muçulmano Salim é um imigrante indiano que se estabelece num país africano recém-desocupado pelos colonizadores britânicos. Protagonista e narrador de Uma curva no rio, ele assiste à lenta degradação dessa sociedade depois que o Grande Homem, um líder populista e corrupto, assume o poder.
Atrás do balcão de seu armazém, num lugarejo imaginário localizado na curva de um rio, na Costa Leste da África, Salim testemunha o destino dos vários personagens que habitam a região: 
A "bruxa" Zabeth e o seu filho Ferdinando, o padre católico, o intelectual branco da cidade e a sua sofisticada mulher.

O livro examina com muita ironia o impacto da herança colonial e do fervor nacionalista no interior profundo do continente africano. O autor explora as contradições do contexto social e político da África pós-colonial por meio de um microcosmo que ilustra a dificuldade dos povos africanos em criar uma identidade coesa e forte.

Neste livro Naipaul conduz-nos numa grande viagem através de África desde a sua costa oriental na orla do Índico até aos meandros de um grande rio no interior. Mas esta é também a viagem de um homem jovem ao encontro de si mesmo. 

Salim rejeita a postura tradicional da comunidade onde nasceu pois pressente que o modo de vida desta, imutável e regido por normas rígidas, está fatalmente ameaçado pelo novo governo do país recém- independente. Decide assim viajar, para um outro país, no interior do continente, até uma cidade localizada na curva de um grande rio onde se estabelecerá como comerciante e tentará fazer fortuna. 
Este é o ponto de partida para o retrato de uma época (final da década de 70 do século XX), caracterizada, naquela região do planeta,  por grandes e constantes mudanças que obrigam as populações a um esforço permanente de adaptação para conseguirem sobreviver a um  quotidiano de insegurança e medo. Todos os grupos étnicos estão representados numa história concebida como uma tapeçaria complexa, rica e muito viva, capaz de nos transportar quase literalmente até àquele tempo e àqueles lugares bem como aos acontecimentos verdadeiramente dramáticos que não deixaram ninguém incólume. 

Esta não é uma narrativa maniqueísta, um mundo de “bons” e de “maus” mas sim de personagens muito humanos, com forças e fraquezas, todos africanos, apesar de oriundos de vários povos e culturas. Negros de várias tribos, muçulmanos de origem indiana e brancos originários de diversos países europeus são subitamente confrontados com o recrudescer dos ódios tribais, com a guerra e com as directrizes arbitrárias e os caprichos de um Grande Chefe que detém um poder de vida e de morte sobre todos.

Muito bem escrito e primorosamente construído, “A curva do rio” é um testemunho do sofrimento de grande parte de um continente, vítima sistemática da ganância do ser humano devido às suas inúmeras riquezas e recursos naturais,  cujo potencial de desenvolvimento pleno está ainda muito longe de ser atingido.

Trata-se de uma das mais lúcidas leituras do processo de descolonização africana. 
Algures num país da África Central, emerge um regime ditatorial, na sequência do caos provocado pela descolonização. Um líder apodado de “Grande Chefe”, que defende ideias pseudo-marxistas, assume-se como o garante da felicidade africana mas mais não consegue do que colocar o país em estado de guerra permanente, conduzindo à desgraça e à pobreza extrema. O Grande Chefe, sem nome, faz lembrar o senhor do Castelo de Kafka – a distância garante o respeito e o medo. 
Os retratos do Chefe, espalhados por todo o lado, realçam o mito. 

Salim, um indiano, procurava a fortuna em África. Mas é aprisionado na teia dos conflitos que emergem. A vida dos emigrantes asiáticos é esmagada pelo conflito. Emerge um choque cultural tripartido: africano, europeu e asiático. 

A cultura e os costumes europeus, mau grado a descolonização, permanecem como modelos que, consciente ou inconscientemente conduzem os africanos. 
“A África, retornando aos seus velhos hábitos com meios modernos, seria um continente difícil durante algum tempo”. Ao mesmo tempo, a pobreza e a ignorância são campos férteis para a emergência de um regime autocrático e violento. Surge a guerra civil. No meio de tudo isto, o ser individual perde-se. 

A vida de Salim é um processo constante e desesperado de procura da identidade perdida. 
O ser individual devastado em nome de “ideais”. 
Só no interior de si encontra algo de concreto: quando se apaixona por Yvette, Salim vê o seu mundo reduzir-se; “e quanto mais reduzido se tornava o seu mundo, mais obsessivamente eu vivia nele”.

“Quando se deu a independência, o povo da nossa região enlouqueceu de raiva e de medo – toda a raiva acumulada durante o período colonial, todos os medos tribais que entretanto tinham estado adormecidos. A gente da nossa região tinha sido muito maltratada, e não apenas pelos europeus e árabes, mas também por outros africanos; e quando veio a independência, recusaram-se a obedecer ao novo Governo instalado na capital. (…) Mas o povo odiava a cidade por causa dos intrusos que tinham governado nela e a partir dela; e tinha preferido destruí-la a apossar-se dela. Depois de destruírem a cidade, choraram amargamente a sua perda. Queriam que voltasse a ser um local vivo. A vida voltara de facto à cidade, mas com ela voltara também o medo. “

“Quanta raiva! Igual a um fogo na floresta, a um fogo que consome as entranhas da terra e reduz a cinza, sem que ninguém o veja, as raízes das árvores que já destruiu e que depois irrompe na terra ressequida, onde pouco alimento encontra, e daí que, no meio da destruição e da miséria, o desejo de mais destruição se reacendesse.” 
 
“Falar de sarilhos era pretender que havia leis e normas reconhecidas por todos. Mas aqui não havia nada. Houvera ordem noutros tempos, mas essa ordem tinha as suas próprias desonestidades e crueldades – e por isso a cidade fora destruída. Nós vivíamos nos escombros. Em vez de normas, havia polícias que nos considerariam culpados até ao momento em que tirássemos a carteira do bolso.”

“Não lhe fizeram nada na prisão. Não lhe fizeram nada porque não se lembraram. Eles ainda acham que você não é esse tipo de homem, o tipo de homem a quem normalmente batem e torturam. Você é estrangeiro; eles só batem na gente das aldeias. Até que um dia lhe batem a si também e descobrem que você é igual aos outros, e então é que lhe podem acontecer coisas terríveis. Você tem de se ir embora. Esqueça tudo e vá.”
 
“Não pense que as coisas só estão más para si. Isto está mau para toda a gente. Isso é que é terrível: Está mau para o Prosper, para o homem a quem deram a sua loja, está mau para toda a gente. Ninguém vai a lado nenhum assim, ou melhor, vamos todos para o inferno, e não há ninguém que não pressinta isso. Estamos todos a ser mortos. Nada faz sentido. É por isso que toda a gente anda doida. Toda a gente quer fazer dinheiro e fugir. Mas para onde? É isso que deixa as pessoas loucas. Sentem que já não podem fugir para sítio nenhum. “


A narração, através de um “eu narrativo”, adopta uma postura analítica sobre o desenvolvimento do personagem/narrador, da sua relação com o meio que o envolve, e da sociedade em constante convulsão. Salim, o nosso narrador, tem uma visão tanto intrínseca como extrínseca sobre os acontecimentos que interferem, de forma directa e indirecta, na sua realidade. Ele é um inadaptado. E é a partir dessa condição que nos vai contando a sua experiência perante o “desconhecido próximo”:
 
“ A África era a minha terra, fora a terra da minha família durante séculos. Mas nós éramos da costa leste, e isso fazia a diferença. A costa não era verdadeiramente africana, ela era simultaneamente árabe, indiana, persa e portuguesa, e nós que vivíamos na costa, éramos na realidade gente do Oceano Índico. (..) Mas já não podíamos dizer que éramos árabes, indianos ou persas; quando nos comparávamos com esses povos, sentíamos que éramos gente de África” 
 
Salim comporta-se como colonizado, apesar de ser africano e de se ter transferido, de modo voluntário, com o objectivo de prosperar numa nova geografia. Ele adapta-se às relações sociais já existentes e, de uma forma mais ou menos passiva, é nelas que tenta encontrar sentido e identificação. O ambiente tem mais efeito sobre ele do que ele consegue ter sobre o que o rodeia. Ao longo da narrativa, acompanhamos a imposição intrínseca e extrínseca da inadaptação psicológica, social e cultural. A sua personalidade sofre alterações devido a pressões exteriores. As constantes convulsões sociais, a violência, a corrupção, fazem emergir características psicológicas que, até ali, haviam permanecido longe da superfície. Assim, o nosso narrador debate-se com factos imprevistos que o levam a agir contrariamente ao que acredita. 

Uma nova realidade física obriga a uma nova realidade emocional. 
E a adaptação a ambas nunca chega a concluir-se. 
Salim depara-se com dilemas morais numa sociedade em demanda da sua própria psicologia colectiva.
Toda a complexidade inerente à interactividade social implica transformações de perspectiva e obriga a adaptações constantes com o objectivo de assegurar a mera sobrevivência.

A força colonizadora da Europa manifesta-se nas ruínas de pedestais sem estátuas e em edifícios decadentes. Apesar de não terem passado muitos anos sobre o fim da colonização, a deterioração da memória sobre presença europeia é muito rápida. 
E sem memória, sem história, os problemas repetem-se.
“ As pessoas viviam como sempre tinham vivido; não havia qualquer ruptura entre passado e presente. Tudo o que acontecera no passado se eclipsara; só o presente existia; sempre o presente” 

 A África de “A Curva do Rio” adopta a superficialidade dos costumes europeus e quer eliminar as ideias europeias enquanto tenta a aceitação do mundo ocidental. É nesta intensa e contraditória relação que acontecem guerras e revoltas.

“Ninguém usava os novos nomes [das ruas] porque ninguém se preocupava especialmente com eles. Aquele povo quisera apenas libertar-se dos nomes antigos, varrer para sempre a memória do intruso. Fazia medo, a violência daquela raiva africana, o desejo de destruir, sem levar em conta as consequências” 

A proposta de Fanon está presente na narrativa de Naipaul.
Fanon propõe-nos 3 fases na complexa relação entre as implicações culturais provenientes do colonialismo e os comprometimentos da luta anticolonialista:

-A fase da assimilação acontece quando o nativo assimila (hipoteticamente) a cultura do poder colonizador. A construção de “BigBurguer”, por parte de Mahesh, é um sintoma da absorção da cultura ocidental (neste caso, norte-americana). Enquanto Mahesh importava todas as máquinas, decorações, mesas e cadeiras dos Estados Unidos, lembrando o McDonalds, um turista norte-americano saqueava um conjunto de máscaras características da região.

O estrangeiro leva o produto autêntico da região e traz o que é típico da sua cultura. 
Desta forma, cumpre-se o que o padre Huismans tinha afirmado: 
O fim da África africana e o êxito das influências exteriores.
Naipaul menciona muitas vezes a existência de o Jacinto-de-Água no rio que banha a cidade. Esta espécie, oriunda da bacia amazónica, é caracterizada como sendo uma das piores espécies invasoras em todo o mundo. Quando em rios, como acontece neste caso, prejudica o fluxo natural da corrente, traz alterações bioquímicas, e prejudica todo o ecossistema. O rio adjacente à cidade do padre Huismans e do nosso narrador foi invadido por esta espécie aquática. As suas flores são lindíssimas, mas o prejuízo que traz é enorme. A ornamentação prejudica o equilíbrio natural da região.

-A fase da cultura nacionalista materializa-se através da procura da autenticidade nativa e reacção contra o colonizador.

Numa fase de expansão, orientada pelo “Grande Chefe”, presidente daquela parte de África (nunca nomeada), é construída a Cidade Nova, zona de apartamentos para os professores e um politécnico, onde estudava o africano do futuro. Esta cidade equivalia quase a um outro país: 
“Na nossa cidade, «africano» podia ser um termo injurioso ou que denotava desprezo; na Cidade Nova, porém, era uma palavra grandiosa. Aí, um «africano» era um homem novo, um homem a cuja construção todos se dedicavam afanosamente, um homem prestes a nascer (…)”

- Por último, a fase revolucionária e nacionalista. Aqui, o intelectual tenta inflamar o povo e despertá-lo para o que há de “primordial” na sua cultura. É a fase em que a “raiva africana” se transforma em violência. A mescla entre o que se pensa verdadeiramente africano e a imagem do povo colonizador, imposta ao longo dos séculos, é difícil (ou impossível) de ser clarificada. A confusão manifesta-se e o que realmente impera não é a cultura nativa nem a colonizadora, mas a tal raiva, a violência que sempre procura uma forma de se manifestar.
“Determinadas pessoas haviam perdido poder e tinham sido fisicamente destruídas. Isso em África não era novo; aliás, era mesmo a mais velha das leis da terra” 


Paralelamente ao percurso colectivo, o caminho (individual) de Salim tem outras etapas: 
Utopia – Distopia (desencantamento) – Atopia (reencantamento). 
Naipaul, no entanto, oferece uma saída deste círculo vicioso e acrescenta uma nova etapa: Fuga.
A utopia começa quando ele decide fugir a um casamento prometido com a filha de Nazrudin, amigo da família, e tenta concretizar aquilo que adivinhava para si mesmo:
“ O meu anseio não era ser bom, como mandava a tradição, mas ter êxito na vida”. 
Ele compra a loja de Nazrudin, situada numa cidade (destruída) na curva do rio. Depois de um período de encantamento, a burocracia, a corrupção, a violência latente deterioram o seu optimismo e ele vê-se como um prisioneiro, e alguém, como muitos dos que ali moram, que tem a sua vida suspensa, interrompida.
É nesta fase que conhece Ferdinand, filho da feiticeira Zabeth, que fica aos seus cuidados para aprender inglês, a ler e a escrever.
Sem saber como educá-lo, será o seu criado (Metty) a ter influência decisiva na formação emocional e intelectual do rapaz.
O desenvolvimento do filho da feiticeira (oriundo de uma aldeia bem no interior do território) sugere o paralelismo com a nova geração africana e Salim pressente que os tempos vindouros serão muito maus. A atitude de Ferdinand não era compatível com a sua:
“O seu aspecto, naquele instante, era de fato terrível, assustador. Ocorreu-me então esta ideia: «Este há-de ser o seu inimigo a morrer.» E, associada a essa ideia, uma outra: «Esta foi a era que arrasou a cidade» ” 
Ferdinand viria a ter uma acção decisiva no futuro.
A esperança ressurge com o crescimento da Cidade Nova, a poucos quilómetros da cidade onde vivia. Indar, amigo de infância, é destacado para o politécnico para ali leccionar e será o guia do narrador, tanto pela Cidade Nova como por uma forma nova de pensar. 
Quando Indar se vai embora, Salim já não é o mesmo.
A instável paz vai se deteriorando e aquele que fora a figura patriarcal da população é visto, cada vez mais, como um tirano igual a tantos outros. 
E o ciclo completa-se: paz, desencanto, revolta, destruição.
Salim, perante isto, toma uma decisão. 
Vai a Londres para pedir em casamento a filha de Nazrudin.
Decide deixar a curva do rio e ir viver para Londres.




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