quinta-feira, 10 de julho de 2014

Clarice Lispector


"Espelho?
Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para dentro sempre em frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe.
E é coisa mágica: quem tem um pedaço quebrado já poderia ir com ele meditar no deserto.
Ver-se a si mesmo é extraordinário.
Como um gato de dorso arrepiado, arrepio-me diante de mim.
Do deserto também voltaria vazia, iluminada e translúcida, e com o mesmo silêncio vibrante de um espelho. "
(...)
Clarice Lispector 
-in, ÁGUA VIVA


"Minha alma tem o peso da luz. Tem o peso da música.
Tem o peso da palavra nunca dita, prestes quem sabe a ser dita.
Tem o peso de uma lembrança. Tem o peso de uma saudade. Tem o peso de um olhar.
Pesa como pesa uma ausência.
E a lágrima que não se chorou.
Tem o imaterial peso da solidão no meio dos outros."

Clarice Lispector



"Quero um manto tecido com fios de ouro solar.
O sol é uma tensão mágica do silêncio.
Na minha viagem aos mistérios ouço a planta carnívora que lamenta tempos imemoriais: e tenho pesadelos obscenos sob ventos doentios.

Estou encantada, seduzida, arrebatada, por vozes furtivas.
As inscrições cuneiformes quase ininteligíveis falam de como conceber e dão fórmulas sobre como se alimentar da força das trevas.
E o eclipse do sol causa terror secreto que no entanto anuncia um esplendor de coração.
Ponho sobre os cabelos o diadema de bronze."

In, Agua Viva 
– Clarice Lispector


"Se tudo existe é porque sou.
Mas por que esse mal estar?
É porque não estou vivendo do único modo que existe para cada um de se viver e nem sei qual é. Desconfortável. Não me sinto bem. Não sei o que é que há.
Mas alguma coisa está errada e dá mal estar.
No entanto estou sendo franca e meu jogo é limpo. Abro o jogo.
Só não conto os fatos de minha vida: sou secreta por natureza.
O que há então?
Só sei que não quero a impostura. Recuso-me.
Eu me aprofundei mas não acredito em mim porque meu pensamento é inventado. "

Clarice Lispector


"Esse esforço que farei agora por deixar subir à tona um sentido, qualquer que seja, esse esforço seria facilitado se eu fingisse escrever para alguém.
Mas receio começar a compor para poder ser entendida pelo alguém imaginário, receio começar a "fazer" um sentido, com a mesma mansa loucura que até ontem era o meu modo sadio de caber no sistema.
Terei de ter a coragem de usar um coração desprotegido e de ir falando para o nada e para o ninguém? - assim como uma criança pensa para o nada - e correr o risco de ser esmagada pelo acaso."

Clarice Lispector


"E respeito muito o que eu me aconteço.
Minha essência é inconsciente de si própria e é por isso que cegamente me obedeço".

Clarice Lispector 
in, Água Viva


"Clarice é cheia de pérolas.
Algo de sublime atravessou aquela densidade humana/terrena e concedeu-lhe a acutilância, sob a forma de sensibilidade, e de a esfregar nos nossos rostos as fragilidades e, esse ser grandioso que é o amor, fazemos dele apenas trapos à medida dos nossos medos.
É aqui que nos deparamos com a vergonha dos nossos limites.
O nosso Amor, parece ser ou depender do reflexo que recebemos de fora, e nem mesmo às vezes o que ele esparrama por dentro é real, e é apenas um truque da mente.
Pois ele foge, tal como a água escorre dos dedos; ou, a areia que é mais densa, e ainda assim não se consegue agarrar."

Prefácio 



"Amanheci em cólera.
Não, não, o mundo não me agrada.
A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo.
E o amor, em vez de dar, exige.
E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. 
Mentir dá remorso. 
E não mentir é um dom que o mundo não merece."

Clarice Lispector


"Nasci dura, heróica, solitária e em pé.
E encontrei meu contraponto na paisagem sem pitoresco e sem beleza.
A feiúra é o meu estandarte de guerra.
Eu amo o feio com um amor de igual para igual.
E desafio a morte.
Eu - eu sou a minha própria morte.
E ninguém vai mais longe.
O que há de bárbaro em mim procura o bárbaro e cruel fora de mim.
Vejo em claros e escuros os rostos das pessoas que vacilam às chamas da fogueira.
Sou uma árvore que arde com duro prazer.
Só uma doçura me possui: a conivência com o mundo.
Eu amo a minha cruz, a que doloridamente carrego.
É o mínimo que posso fazer de minha vida: aceitar comiseravelmente o sacrifício da noite."

Clarice Lispector

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