sábado, 13 de janeiro de 2018

O Relógio





1. 
Ao redor da vida do homem 
há certas caixas de vidro, 
dentro das quais, como em jaula, 
se ouve palpitar um bicho. 

Se são jaulas não é certo; 
mais perto estão das gaiolas 
ao menos, pelo tamanho 
e quadradiço de forma. 

Umas vezes, tais gaiolas 
vão penduradas nos muros; 
outras vezes, mais privadas, 
vão num bolso, num dos pulsos. 

Mas onde esteja: a gaiola 
será de pássaro ou pássara: 
é alada a palpitação, 
a saltação que ela guarda; 

e de pássaro cantor, 
não pássaro de plumagem: 
pois delas se emite um canto 
de uma tal continuidade 

que continua cantando 
se deixa de ouvi-lo a gente: 
como a gente às vezes canta 
para sentir-se existente. 


2. 
O que eles cantam, se pássaros, 
é diferente de todos: 
cantam numa linha baixa, 
com voz de pássaro rouco; 

desconhecem as variantes 
e o estilo numeroso 
dos pássaros que sabemos, 
estejam presos ou soltos; 

têm sempre o mesmo compasso 
horizontal e monótono, 
e nunca, em nenhum momento, 
variam de repertório: 

dir-se-ia que não importa 
a nenhum ser escutado. 
Assim, que não são artistas 
nem artesãos, mas operários 

para quem tudo o que cantam 
é simplesmente trabalho, 
trabalho rotina, em série, 
impessoal, não assinado, 

de operário que executa 
seu martelo regular 
proibido (ou sem querer) 
do mínimo variar. 


3. 
A mão daquele martelo 
nunca muda de compasso. 
Mas tão igual sem fadiga, 
mal deve ser de operário; 

ela é por demais precisa 
para não ser mão de máquina, 
a máquina independente 
de operação operária. 

De máquina, mas movida 
por uma força qualquer 
que a move passando nela, 
regular, sem decrescer: 

quem sabe se algum monjolo 
ou antiga roda de água 
que vai rodando, passiva, 
graçar a um fluido que a passa; 

que fluido é ninguém vê: 
da água não mostra os senões: 
além de igual, é contínuo, 
sem marés, sem estações. 

E porque tampouco cabe, 
por isso, pensar que é o vento, 
há de ser um outro fluido 
que a move: quem sabe, o tempo. 


4. 
Quando por algum motivo 
a roda de água se rompe, 
outra máquina se escuta: 
agora, de dentro do homem; 

outra máquina de dentro, 
imediata, a reveza, 
soando nas veias, no fundo 
de poça no corpo, imersa. 

Então se sente que o som 
da máquina, ora interior, 
nada possui de passivo, 
de roda de água: é motor; 

se descobre nele o afogo 
de quem, ao fazer, se esforça, 
e que ele, dentro, afinal, 
revela vontade própria, 

incapaz, agora, dentro, 
de ainda disfarçar que nasce 
daquela bomba motor 
(coração, noutra linguagem) 

que, sem nenhum coração, 
vive a esgotar, gota a gota, 
o que o homem, de reserva, 
possa ter na íntima poça.



João Cabral de Melo Neto
in, “João Cabral de Melo Neto, Obra Completa”







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