quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

O Autoengano





As Mentiras Que Nos Sustentam



Você já parou para pensar no autoengano?
Todos nós estamos familiarizados, de uma forma ou de outra, com as mentiras.
Alguns são mais corajosos e admitem que são capazes de mentir, outros não admitem essa fraqueza.

Quem nunca contou uma mentira a si mesmo?
Talvez nem tenha percebido que está mentindo…
Vamos refletir sobre isso?


“A mentira mais comum é aquela com a qual 
um homem engana a si mesmo. 
Enganar os outros 
é um defeito relativamente saudável”.
-Nietzsche-



A mentira como companheira de vida
Os enganos e as mentiras são inerentes à vida em todos os seus aspectos.
Mesmo a natureza os usa como recurso. Os vírus, por exemplo, são capazes de enganar o nosso sistema imunológico para entrar em nosso corpo, para conseguir seu objetivo que é a sobrevivência.

Mas, o que dizer de nós?
Além das mentiras revestidas de alguma intenção para conseguirmos algo concreto, existem as mentiras que nos sustentam durante um certo tempo ou até mesmo pela vida toda. Inventamos essas mentiras para fugirmos da realidade, e preferimos a inconsciência.

Dostoievski escreveu em “Memórias do subsolo”:
“Todo ser humano tem algumas memórias que contaria somente aos seus melhores amigos. Da mesma forma, podemos dizer que todo ser humano tem preocupações que não contaria nem aos seus melhores amigos, mas apenas a si mesmo e, mesmo assim, no maior segredo. Mas existem coisas que as pessoas não se atrevem a contar nem para si mesmas. Mesmo os homens mais honestos têm uma grande quantidade desses pensamentos guardados em algum lugar da sua mente”.


Ninguém está livre do autoengano
Além da consciência, a linguagem é muito importante no autoengano.
Embora a realidade não deixe de ser o que é, cada um constrói a sua. É através da linguagem que transmitimos e descrevemos a nossa realidade. Para nós, a realidade é um reflexo de como a interpretamos.
As pessoas têm uma grande capacidade de criar crenças tendenciosas e histórias em todos os aspectos da vida. Quem consegue se livrar das suposições e confabulações?
Somos vítimas das nossas próprias armadilhas para sobreviver em nosso dia a dia.


Mentiras para fugir da realidade
Existe uma rede de mentiras que nos sustentam e que muitas vezes são as algemas que nos prendem a determinadas situações sem que percebamos. Por isso, temos a sensação de que não importa o que façamos, não conseguimos seguir em frente.


“A verdade tem a estrutura da ficção”.
-Jacques Lacan-


Quando a força dos fatos se torna ameaçadora, por vezes, o medo do sofrimento nos faz tentar fugir da realidade, bloqueando a nossa atenção e nos enganando. Por isso, preenchemos os espaços vazios com explicações imaginárias ou fantasiosas, de maneira automática.

Diz o ditado popular: “o que os olhos não veem, o coração não sente”.
Dessa forma, se eu não vejo, se não percebo o que está acontecendo, o perigo e a ansiedade diminuem e eu consigo seguir em frente.
Os fatos foram ignorados e modificaram o significado da experiência. A mentira está presente, sem que percebamos, oculta atrás dos silêncios, das justificativas, das negações e dos castelos de areia.

A mentira se mantém pelo poder da nossa atenção seletiva para esconder e modificar as verdades dolorosas, criando uma realidade mais aceitável para nós.
Um disfarce que nos recorda o “falso self” de Winnicott, onde a mentira é considerada parte do desenvolvimento natural da identidade do ser humano, desde a primeira infância.
Isto atenua a angústia e o sofrimento gerados pelas expectativas que os pais colocam nos filhos; eles renegam a si mesmos e constroem um personagem de acordo com o ideal que os seus pais criaram.


O autoengano no dia a dia
O autoengano pode ser gerado para satisfazer as nossas próprias expectativas ou as dos outros; ou como uma forma de justificarmos que não queremos ver a realidade como ela é.
Isso pode acontecer nos relacionamentos de casal quando, por exemplo, não nos damos conta de que a situação está insustentável e de que os nossos sentimentos mudaram.
Pode acontecer também, nos casos de dependência química, quando a pessoa acredita que pode controlar o seu consumo; nas relações sociais e políticas…

O autoengano é uma importante defesa contra as ameaças de perigo, que se destaca como uma armadura que nos protege das experiências difíceis de assimilar, uma couraça do caráter como dizia Willhelm Reich.
Um escudo atrás do qual o “eu” se esconde, utilizado para proteger-se da ansiedade de viver em um mundo considerado hostil.

Então, quanto melhor enganarmos a nós mesmos, melhor enganaremos os outros.
A melhor maneira de esconder uma decepção profunda é não estar ciente dela.


Os efeitos do autoengano
O autoengano pode ter muitos aspectos e, por vezes, um custo muito elevado. Nestes casos, o mundo da pessoa está fragmentado e a informação ignorada está no seu inconsciente, escondida pela mentira da consciência.
Assim, como Daniel Goleman afirma em seu livro “O ponto cego”, o primeiro passo para despertar do autoengano é perceber de que forma estamos “dormindo”.
Ou seja, em primeiro lugar, considerar a possibilidade de que estamos nos enganando em algum aspecto da nossa vida e, em seguida, entrarmos nessa teia de aranha que nós mesmos construímos para fugir da realidade.
Muitas vezes não percebemos o que nos desagrada e também não percebemos que não percebemos nada…

A maioria de nós fez um pacto, sem saber, com este velho provérbio árabe:
“Não desperte o escravo porque talvez ele esteja sonhando que é livre”. Mas, o sábio dirá: “Desperte o escravo! Especialmente se sonha com a liberdade. Se despertar e perceber que ainda é um escravo, talvez possa se libertar”.



Decisões tomadas com a mente ou com o coração, mesmo que sejam mentiras ou verdades. 
Essa é uma dualidade eterna que invade a nossa vida e o nosso pensamento, que tem sua origem na filosofia grega e em algumas das suas grandes figuras, como Aristóteles. A contribuição deste filósofo para o pensamento grego fez dele merecedor do título de “O filósofo”.
No entanto, ele também poderia ser igualmente conhecido por “O cientista”, pois Aristóteles estabeleceu uma das primeiras bases sólidas para a ciência: chegar à verdade através da observação e da experimentação, e não na base do raciocínio abstrato.
Aristóteles considerou o coração o órgão mais importante do ser humano, ficando assim à frente do cérebro. Para o filósofo grego é o coração, e não o cérebro, o encarregado pelas sensações e pelos movimentos, é nele que converge a informação que recebemos do nosso ambiente e onde nasce a resposta a esse universo que se encontra do outro lado da nossa pele.


“Considero mais valente aquele que vence seus desejos 
do que aquele que vence seus inimigos; 
pois a vitória mais difícil 
é a vitória sobre si mesmo.”
-Aristóteles-


As razões de Aristóteles para considerar o coração o centro diretor da nossa conduta são diversas e adequadas ao conhecimento da época. Tendo por base as suas teorias, podemos citar as seguintes razões: o coração ocupa uma posição central no corpo e é sensível às emoções.
Por outro lado, Aristóteles afirmava que o coração bate mais rápido perante uma sensação e o cérebro não faz nada. Ele entendia que se abrirmos o crânio e deixarmos o cérebro exposto, podemos ir cortando partes do mesmo sem que o ser vivo mostre sinais de sofrimento, enquanto que o coração se altera completamente numa intervenção similar.


Aqueles que enganam a si mesmos são bons em enganar os outros
O autoengano é uma característica comum entre os seres humanos. O nosso cérebro sabe o que está acontecendo, mas inicia uma série de mecanismos que criam uma realidade paralela repleta de mentiras, na qual acabamos acreditando de tanto repetir e lidar com ela.
Em um estudo publicado pela revista Plos One, chegou-se à conclusão de que as pessoas que enganam a si mesmas são as que melhor enganam os outros. Este estudo foi realizado por diversas universidades britânicas (Universidade de Newcastle, Queen Mary Londres, Exeter e University College London). Os investigadores analisaram um grupo de estudantes que entraram pela primeira vez na universidade e que não se conheciam.


“O corpo não é mais que uma mera proteção da mente, 
e a mente não é mais que um pobre reflexo 
do coração radiante.”
-Ramana Maharshi-


Os pesquisadores reuniram o grupo de estudantes e pediram que eles avaliassem os outros e a si próprios com uma nota. Os pesquisadores viram que as pessoas que deram a si próprias notas mais altas eram avaliadas com uma nota melhor pelos outros, independentemente do rendimento real. Seis semanas depois a experiência foi repetida e foram obtidos os mesmos resultados.


As mentiras que contamos a nós mesmos podem ser benéficas?
Segundo Robert Kurzban, psicólogo evolucionista da Universidade da Pensilvânia e autor do livro “Por que todos os outros são hipócritas”, viver enganados pode não ser tão mau como parece, particularmente para uma espécie social como a humana. Talvez as mentiras que contamos a nós mesmos cumpram a sua função em determinados momentos…
Robert Kurzban parte de duas ideias básicas.
Por um lado, tendo em conta que a mente é constituída por partes distintas ou módulos diferentes, é fácil entender que podemos acreditar em muitas coisas contraditórias, desde o plano da percepção até o da moralidade; por outro lado, existe um mundo lá fora, mas o nosso cérebro se dedica a interpretar a nossa experiência, não temos acesso à realidade, mas sim ao que o nosso cérebro interpreta dessa realidade.
Segundo Kurzban, os humanos são seres evoluídos e a evolução é um processo competitivo, evoluímos para competir com o que nos rodeia e aprendemos a enganar e a construir mentiras. Essa competitividade, em certa parte, baseia-se em tentar convencer os outros de coisas que não são verdade.

Há diferentes formas através das quais uma pessoa pode enganar a si mesma contando mentiras, mas a pergunta que devemos fazer é: 
“Sou eu que engano a mim mesmo?” ou “Sou apenas eu que me engano de um modo estanho?”.
Albergar crenças falsas pode ser útil para convencer os outros de algo que nos interessa e tirar proveito disso.


“Não há nada mais fácil que o autoengano, 
já que cada homem é o primeiro 
a acreditar naquilo que quer”.
-Demóstenes-




Gema Coelho




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