sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Intimidade é perder-se na pele do outro sem perder a própria pele.





Eu gosto de me perder na etimologia das palavras, ajuda-me sempre. A palavra “intimidade” tem origem no latim, no adjetivo intimus que significa “no interior, no fundo”. A intimidade envolve o movimento de nos virarmos para o interior, e deixar o outro saber o que vai dentro de nós. Às vezes não é nada fácil! Usamos a palavra em diferentes contextos, por exemplo, dizemos “Foi um concerto intimista”, ou, “Os músicos tocaram numa sala intimista”. O que queremos dizer com isso é que o concerto nos virou para dentro de nós e ativou emoções, que de alguma forma sentimos partilhar com o resto das pessoas ali presentes. Um espaço intimista é uma sala acolhedora, que proporciona proximidade, com pouca luz, que ajuda a sentir.

A intimidade é um conceito complexo que já fez correr muita tinta na Psicologia.
Existem vários modelos teóricos para explicar a intimidade mas, vamos simplificar.
A intimidade é uma condição necessária à sobrevivência humana.
Parece excessivo? Vejamos.
Numerosa investigação tem demonstrado que o contacto íntimo é um poderoso determinante da saúde e do bem-estar do indivíduo e está positivamente relacionada com níveis de amor, confiança e satisfação.

Trata-se de um processo interpessoal - sempre entre duas pessoas – mas as díades íntimas podem ser um par amoroso, pais/filhos, entre amigos, ou até entre desconhecidos. A intimidade implica um processo de comunicação (do latim, communicȃre: pôr em comum) caracterizado pela auto-revelação de aspetos privados, e essa comunicação pode ser verbal ou não-verbal.

Vale a pena distinguir entre interação íntima e intimidade na relação. 
Pode haver uma interação íntima sem ter que existir uma relação, por exemplo, entre duas pessoas que se sentam lado a lado num avião num voo de longa duração, que se revelam uma à outra numa troca empática de conteúdos privados. Talvez esta exposição e auto-revelação súbita sejam mesmo facilitadas pelo facto de saberem que não voltarão a encontrar-se.
A intimidade na relação pressupõe exatamente isso, uma relação, embora haja muitas relações sem intimidade (são relações vazias, áridas, mas que ainda assim se podem manter).

A intimidade nas relações é como o açafrão (o verdadeiro!) num prato oriental, um vintage na garrafeira, ou as melhores cerejas no bolo. E quem não quer provar o verdadeiro açafrão, ter bom vinho na garrafeira e bolos com cerejas? Mas nem sempre se consegue. A intimidade tem uns ingredientes de luxo: expressão, liberdade, confiança, verdade, emoção, alteridade. E isto, nem todos alcançam.
Daí os psicólogos dizerem que é necessário haver uma diferenciação do self, ou seja, a pessoa deve ter o sentido do Eu bem desenvolvido, diferenciado e integrado, para poder partilhá-lo com outras pessoas.

A intimidade implica expressar e partilhar conteúdos pessoais e isto pressupõe sempre um ato de entrega. Uma entrega de algo que é privado, e que habitualmente gera uma ativação emocional. Esse algo podem ser emoções, vulnerabilidades, fracassos, imperfeições, alegrias e prazeres. Esses conteúdos são recebidos pela outra pessoa e de alguma forma são devolvidos na forma de compreensão e validação. E como resultado desta troca, ambos se sentem aceites e validados.
Numa interação íntima, a pessoa revela-se ao outro e expressa a sua verdade. E este ato de se deixar ver, exige uma enorme liberdade. E confiança.

Intimidade é:
  • Ouvir o silêncio com alguém, e gostar
  • Contar ao parceiro como foi o prazer, logo a seguir ao amor
  • Dar um abraço, e ficar no abraço
  • Chorar no colo de alguém sem ter que explicar nada
  • Ler a história ao filho antes de dormir, e trocar comentários sobre o que nos fez sentir
  • Rir com um amigo das próprias misérias
  • Ficar acordado até de madrugada a partilhar memórias conjuntas


A experiência da intimidade implica estar separado e junto ao mesmo tempo. Como diz L’Abate*,
“exige a força para juntar-se ao outro e partilhar as fragilidades, e ao mesmo tempo, estar separado o suficiente para estar disponível para ele, sem exigência de soluções ou perfeições”. 

Esta ideia remete-nos para o título, uma feliz definição de Abraham Passini:

Intimidade é perder-se na pele do outro 
sem perder a própria pele. 

É uma metáfora poderosa que encerra os elementos essenciais do que seria um elevado grau de intimidade numa relação. Um indivíduo, com o seu mundo interno e privado, e com um self diferenciado (“a minha pele”), é capaz de criar a ponte com o outro e compreender a sua verdade, a revelação do seu mundo privado (“a pele do outro”). A intimidade implica participação no outro, tomar parte nos seus conteúdos, partilhar, mas sem se fundir com ele, sem ser absorvido por ele (“sem perder a própria pele”). A intimidade precisa que se mantenha a própria individualidade, implica diferenciação no ato de partilhar. Dar-se ao outro requer uns limites individuais claros, não é um processo de fusão. E muitas vezes é isto que assusta, esta possibilidade de nos perdermos no outro e de perder a própria individualidade. Há pessoas que têm mais dificuldades com a intimidade e resistem a envolver-se numa relação íntima. Pode ser por temerem expor-se ao outro, não quererem revelar-se por sentirem que isso implica uma perda de poder (“se o outro souber tanto de mim, já não vou poder fazer o que eu quero”), ou por falta de confiança. Pode também ser pelo medo do abandono, a preocupação de que se a outra pessoa chegar a conhecer-nos demasiado bem, pode abandonar-nos. Seja por que razão for, o medo da intimidade priva a pessoa de uma experiência vivencial riquíssima e perturba o crescimento afetivo.

A intimidade é um processo vital, onde podemos sentir-nos livres para revelar e partilhar as nossas complexidades e contradições, os nossos prazeres, os nossos medos e esperanças, recebendo em troca a compreensão e aceitação da outra pessoa. E este encontro é magnífico e reparador.


*L’Abate, L. (1999). Increasing intimacy in couples through distance writting and face-to-face approaches. In, J. Carlson & L. Sperry (Eds.), The intimate couple (pp 328-340). Philadelphia: Taylor & Francis.



ANA ALEXANDRA CARVALHEIRA





Sem comentários:

Enviar um comentário