sexta-feira, 2 de junho de 2017
A Imortalidade
Simone de Beauvoir:
Com que contava para sobreviver - na medida em que pensava sobreviver: com a literatura ou com a filosofia?
Como sentia a sua relação com a literatura e a filosofia?
Prefere que as pessoas gostem da sua filosofia ou da sua literatura, ou quer que gostem das duas?
Jean-Paul Sartre:
Claro que responderei: que gostem das duas.
Mas há uma hierarquia, e a hierarquia é a filosofia em segundo e a literatura em primeiro.
Desejo obter a imortalidade pela literatura, a filosofia é um meio de aceder a ela.
Mas aos meus olhos ela não tem em si um valor absoluto, porque as circunstâncias mudarão e trarão mudanças filosóficas. Uma filosofia não é válida por enquanto, não é uma coisa que se escreve para os contemporâneos; ela especula sobre realidades intemporais; será forçosamente ultrapassada por outros porque fala da eternidade; fala de coisas que ultrapassam de longe o nosso ponto de vista individual de hoje; a literatura, pelo contrário, inventaria o mundo presente, o mundo que se descobre através das leituras, das conversas, das paixões, das viagens; a filosofia vai mais longe; ela considera que as paixões de hoje, por exemplo, são paixões novas que não existiam na Antiguidade; o amor...
Simone de Beauvoir:
Quer dizer que para si a literatura tem um carácter mais absoluto, a filosofia depende muito mais do curso da história; está mais submetida a revisões?
Jean-Paul Sartre:
Ela chama necessariamente revisões porque ultrapassa sempre o período actual.
Simone de Beauvoir:
De acordo; mas não há um absoluto no facto de ser Descartes ou de ser Kant mesmo se eles têm de ser ultrapassados de certa maneira?
Eles são ultrapassados mas a partir do que me trouxeram; há uma referência a eles que é um absoluto.
Jean-Paul Sartre:
Não o nego. Mas isso não existe em literatura.
As pessoas que gostam de Rabelais de todo o coração, lêem-no como se ele tivesse escrito ontem.
Simone de Beauvoir:
E de uma maneira absolutamente directa.
Jean-Paul Sartre:
Cervantes, Shakespeare, lemo-los como se eles estivessem presentes; Romeu e Julieta ou Hamlet, são obras que parecem ter sido escritas ontem.
Simone de Beauvoir:
Dá pois a primazia da sua obra à literatura?
No entanto, no conjunto das suas leituras e da sua formação, a filosofia desempenhou um enorme papel.
Jean-Paul Sartre:
Sim, porque a considerei como o melhor meio de escrever; era ela que me dava as dimensões necessárias para criar uma história.
Simone de Beauvoir:
Não se pode ainda assim dizer que a filosofia era apenas um meio em si.
Jean-Paul Sartre:
De início, foi.
Simone de Beauvoir:
Ao princípio, sim; mas depois quando se vê o tempo que passou a escrever L'Être et le Néant, a escrever a Critique de la Raison Dialétique, não se pode dizer que isso era simplesmente o meio de fazer obras literárias; foi também porque, em si, isso o apaixonava.
Jean-Paul Sartre:
Sim, interessava-me, é uma verdade.
Queria dar a minha visão do mundo ao mesmo tempo que a fazia viver por personagens nas minhas obras literárias ou em ensaios. Descrevia essa visão aos meus contemporâneos.
Simone de Beauvoir:
Em suma, se alguém lhe dissesse:
«É um grande escritor, mas, como filósofo, não me convence», preferi-lo-ia a alguém que lhe dissesse:
«A sua filosofia é formidável, mas como escritor pode mudar de ofício?».
Jean-Paul Sartre:
Sim, prefiro a primeira hipótese.
(...)
Jean-Paul Sartre:
De um modo geral, aliás, já não sei muito bem porque se escrevem romances.
Queria falar do que pensei ser a literatura e além disso do que abandonei.
Simone de Beauvoir:
Fale; é muito interessante
Jean-Paul Sartre:
Ao princípio, pensava que a literatura era o romance. Dissemo-lo.
Simone de Beauvoir:
Sim, uma narrativa, e ao mesmo tempo via-se o mundo através. Isto dá qualquer coisa que nenhum ensaio sociológico, nenhuma estatística, pode dar.
Jean-Paul Sartre:
Dá o individual, dá o pessoal, dá o particular. Um romance dará esta sala, por exemplo, a cor dessa parede, desses cortinados, da janela, e só ele o pode dar.
E foi do que eu gostei, os objectos serem nomeados e muito próximos no seu carácter individual.
Eu sabia que todos os sítios descritos existiam ou tinham existido, que por conseguinte era mesmo a verdade.
Simone de Beauvoir:
Embora você não gostasse muito das descrições literárias. Nos seus romances há descrições, de vez em quando, mas sempre muito ligadas à acção, à maneira como as pessoas as vêem.
Jean-Paul Sartre:
E breves.
Simone de Beauvoir:
Sim. Uma pequena metáfora, três palavrinhas para indicar qualquer coisa, não verdadeiramente uma descrição.
Jean-Paul Sartre:
Porque uma descrição não é tempo.
Simone de Beauvoir:
Sim. Pára.
Jean-Paul Sartre:
Pára, não dá o objecto como ele aparece no momento, mas o objecto tal como ele é há cinquenta anos.
É estúpido!
Simone de Beauvoir:
Ao passo que indicar o objecto no movimento da narrativa está bem!
Jean-Paul Sartre:
Está bem, sim.
Diálogos entre Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir
in, "A Cerimónia do Adeus"
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