O economista Muhammad Yunus é conhecido no mundo todo como
“o banqueiro dos pobres”.
“o banqueiro dos pobres”.
Por meio do Grameen Bank, que ele fundou em 1983 em Bangladesh, Yunus espalhou em escala internacional
o conceito do microcrédito: empréstimos feitos, sem garantias ou papéis, a gente pobre que nunca antes teve acesso ao sistema bancário.
Há dois meses ele esteve no Brasil para promover a Yunus Negócios Sociais, braço brasileiro da Yunus Social Business Global Initiatives, espécie de incubadora de negócios sociais – como são chamadas empresas criadas para resolver problemas sociais, e não exactamente gerar lucro para accionistas. Durante a passagem por São Paulo, ele falou à Trip sobre essa trajectória e a sua crença de que esse tipo de negócio é um modo eficaz de repensar o sistema económico vigente – do qual critica a concentração de renda em níveis absurdos e a própria lógica de que as pessoas precisam passar a vida a procurar emprego.
“O ser humano não nasceu para isso”, diz ele, um defensor pioneiro da ideia, tão em voga hoje, de que é melhor seguir o próprio caminho do que ser um funcionário.
“Lidar com teorias económicas
diante de pessoas a morrer de fome,
para mim era uma piada”
Em Daca, capital e maior cidade de Bangladesh, Yunus mora com a mulher e a filha mais nova (a mais velha, que acaba de lhe dar o primeiro neto, vive em Nova York) no mesmo conjunto de prédios onde está a sede do Grameen Group, com suas mais de 50 empresas. Em boa parte do tempo, viaja pelo mundo com palestras e consultorias que lhe dão uma rotina atribulada, da qual diz não se cansar, mesmo aos 75 anos de idade. “Eu gosto disso. Sem essa rotina eu estaria terrivelmente entediado. Não sei o que fazer comigo mesmo quando não estou ocupado.”
A seguir, oito trechos da conversa que deixam claro que, para Yunus, o que falta ao mundo é olhar mais para o próximo e trabalhar pela prosperidade colectiva.
Uma visão mais amorosa, pode-se dizer.
UM NOVO CAPITALISMO
“Há 85 pessoas no mundo que têm mais da metade de toda a riqueza do planeta.
Já a metade mais pobre da população mundial detém menos de 1% desses recursos.
Que mundo é esse?
A minha luta tem sido contra essa estrutura.
As pessoas não podem fazer nada além de tocar o barco como foi concebido. Luto por uma nova máquina, por alternativas, por um movimento contrário. A estrutura que existe não vai resolver o nosso problema. A disparidade de renda só piora, a riqueza se concentra em pouquíssimas mãos. Conheço uma empresa que ficou cem vezes maior em sete anos, e o número de funcionários só diminui. Inclusive por causa de tecnologia, eficiência. O que vai acontecer com todas essas pessoas sem trabalho? Se a Europa, a parte mais próspera do mundo, vive isso, o que acontece em economias menores? Temos que redesenhar o sistema capitalista. Tudo o que dizem é ‘faça dinheiro, seja feliz’. Mas aí você ganha us$ 1 bilhão e não faz nada pelos outros. Para que serve us$ 1 bilhão? ‘Ah, dei emprego a muita gente.’ Sim, e pegou a riqueza para você. Concentração é tudo o que você produziu.”
EMPREGO: ESQUEÇA ESSA IDEIA
“Uma questão essencial está na ideia de emprego.
Quem disse que nascemos para procurar emprego?
A escola? Os professores? Os livros? Sua religião? Seus pais?
Alguém colocou isso na cabeça das pessoas.
O sistema educacional repete: ‘você tem que trabalhar duro’. Seres humanos não nasceram para isso. O ser humano é cheio de poder criativo, mas o sistema o reduz a mero trabalhador, capaz de fazer trabalhos repetitivos. Isso é vergonhoso, está errado. As pessoas precisam crescer sabendo que é uma opção se tornar empregado, mas que existe a possibilidade de ser empreendedor, seguir o próprio caminho. É arriscado, incerto, há frustrações, mas é bem mais estimulante. Arrumar emprego é o que é seguro, garantido. Mas a sua vida será limitada ao que decidirem por você.
“Não somos robôs fazedores de dinheiro.
A vida não pode ser reduzida
a uma busca egoísta como essa”
TEORIA VERSUS REALIDADE
“Meu pai era um pequeno comerciante. Admirava a educação, mas não pôde ir além do oitavo ano na escola. Minha mãe foi até ao quarto ano. Somos sete irmãos e duas irmãs, e todos decidimos por conta própria o que fazer. Oportunidades surgiram, empregos me foram oferecidos, e eu não aceitei. O único emprego que tive foi o de professor – porque eu queria ensinar. Não me empolgou a possibilidade de carreira, salário, mas o espaço para pensar, criar. E, quando chegou a hora, comecei o negócio do microcrédito. O isolamento da universidade sempre me irritou.
Qual a utilidade do conhecimento se ele não chega às pessoas? Em Bangladesh, tínhamos pessoas a morrer de fome. Faz sentido ensinar teorias tão bonitas, das quais somos tão orgulhosos, e elas não terem o menor significado na vida de quem não pode comer?
Há muitas maneiras de morrer, mas a fome é uma das mais dolorosas.
Lidar com teorias económicas diante de pessoas a morrer assim era uma piada.”
CONTRA OS BANCOS
“Fico furioso com agiotagem.
Como um ser humano pode ser tão cruel com outro?
Vi situações dramáticas de pessoas que deviam dinheiro. Então comecei a emprestar, para que parassem de procurar exploradores. Eram quantias mínimas – o primeiro empréstimo foi de us$ 27. O problema é que o meu dinheiro foi acabando. Fui a uma agência bancária no próprio campus da universidade onde eu leccionava e pedi ajuda ao gerente. A resposta: ‘Isso é problema seu’.
Começou aí o meu confronto com bancos. Ouvi explicações absurdas sobre por que não dar crédito a gente pobre. Até que entendi: eu deveria ter um banco. Um banco que fizesse um bom trabalho pelas pessoas. Foi o que inventei em 1983: o Grameen Bank.
Diziam que era um fenómeno local, que só funcionaria em Bangladesh.
Fomos à Malásia, a convite de pessoas de lá, e deu certo. Disseram: ‘é um fenómeno de países muçulmanos’.
Fomos às Filipinas, país católico. Passaram a dizer: ‘é um fenómeno asiático’.
Explicações e mais explicações vieram, sempre para proteger a ideia de que o sistema continua certo – e você apenas inventou algo que não vale para o mundo.
Em 2006 vem o prémio Nobel. Nem assim o sistema muda.”
DESENVOLVIMENTO?
“Na crise de 2008, eu estava em Nova York. Ao ver as notícias sobre o colapso, os escândalos, lembrei-me daquele gerente que procurei e pensei: quem merece crédito, afinal?
Quem está a dar calote?
Os pobres a quem empresto dinheiro devolvem-me cada centavo.
Temos oito agências em Nova York, com 30 mil clientes, e nenhuma inadimplência. Então, por que continuar teimando? Por que ensinar na universidade o que é sistema bancário sem se perguntar por que mais da metade da população do planeta não tem nada a ver com bancos?
Construir rodovias é medida de desenvolvimento?
Para mim, não existe desenvolvimento se pessoas têm uma única muda de roupa. Ou se só fazem uma refeição ao dia.”
RESOLVER PROBLEMAS
“Em determinada época, percebi que crianças de muitas famílias não conseguiam ver à noite. Vi isso em diferentes lugares: crianças que não vêem nada depois que o sol se põe. Médicos disseram: ‘Isso é uma doença chamada cegueira nocturna, causada por falta de vitamina A. Se tomarem comprimidos ou tiverem uma alimentação rica em vegetais, voltam a ver’.
Voltei a algumas famílias e expliquei a importância de comer vegetais. ‘Ah, não é simples encontrar vegetais’, diziam. Tive a ideia de vender pequenos pacotes de sementes, a 1 centavo. Gradualmente, foram comprando e plantando. O Grameen Group passou a ter um negócio de sementes. Em sete anos, nos tornamos no maior vendedor de sementes do país.
E a cegueira nocturna foi erradicada.
É essa a ideia do negócio social.”
ISSO É NEGÓCIO, SIM
“Muita gente diz que isso não é um negócio de verdade.
Se não tem lucro, não é negócio.
De onde vem essa definição? É negócio, sim.
É decisão minha não ter lucro.
Se a teoria não se encaixa no que eu criei, não sou eu quem está errado; é a teoria.
O capitalismo é uma ideia maravilhosa, porque dá opções. O problema está na ideia de que é preciso maximizar lucros e que só isso é aceitável como negócio. Não somos robôs fazedores de dinheiro. A vida não pode ser reduzida a uma busca egoísta como essa.
Outra lógica é possível e há empresas interessadas. O chairman da Danone procurou-me a dizer que queria resgatar os ideais de seu pai – e não apenas tocar uma corporação mais preocupada com o valor das acções. Nasceu aí um negócio social: um iogurte muito barato, com os nutrientes de que uma criança precisa diariamente, vendido de porta em porta, por gente que não tinha trabalho em Bangladesh. A Danone não terá lucro com isso: apenas recupera o que foi investido e nada mais. Você pode não morrer de amores por esse modelo – e eu quero discussão, quero ouvir críticas.
Mas não pode simplesmente dizer ‘não funciona’ ou ‘não é real’.”
NOVAS GERAÇÕES
“Tenho falado muito, em diferentes países, a convite de empresários, banqueiros. Então creio que estejam a prestar atenção ao que eu digo.
Se me odiassem, me manteriam longe.
Não odeio os banqueiros, as pessoas, apenas digo:
‘Não é possível continuar agindo assim’. E estão entendendo. Talvez ainda haja uma diferença entre a imagem pública e o que pensam. Muitos chegam a casa e são criticados pelos filhos. Porque as novas gerações estão a espalhar estas mensagens. Viajo muito, é uma rotina corrida, mas a energia das pessoas, particularmente as mais jovens, me renova.
Quando vejo essa gente a responder ao que digo, inspirando-se, querendo fazer alguma coisa, tudo faz sentido. Quando estou longe de casa, no Brasil, na Colômbia, no Chile ou na China, e vejo que as pessoas conhecem o que eu disse, o que eu fiz, esqueço as horas de sono perdidas, o jetlag.
São sementes sendo espalhadas, que um dia vão germinar.
Algumas podem tornar-se árvores gigantes.
Quem sabe?”
Micheline Alves
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