quarta-feira, 5 de abril de 2017

Manifesto "Ergue-te, Portugal!"




Um diagnóstico de Fernando Pessoa 
datado de 1933 que ainda é, 
infelizmente, 
actual em 2017...


O Portugal dos começos do século XXI está a ser governado por seres estrangeirados, seres criados na cultura da competição cruel e do neo-liberalismo. Seres que ficaram impregnados por um vírus poderoso chamado quantofrenia: o governo das pessoas e das culturas baseado nos indicadores numéricos. 

Portugal necessita urgentemente de auto-estima e de deixar de ter vergonha de ser o que é. Necessita de perder o respeito doentio pelo que é estrangeiro, de abandonar a parte de ser estrangeirado que lhe faz mal. A parte doentia de si. Inspirar-se num outro "evangelho" baseados em três princípios: uma imaginação controlada; actos emocionais políticos com um fundo ético não moralista; e capacidade de improvisar organizadamente. 
Assim, talvez seja possível que Portugal, como espaço mítico e de memória, se cumpra como utopia planetária.


A desorientação em que temos vivido nos últimos tempos, a decadência em que temos vegetado, deriva da acumulação de dois vírus, que em épocas diferentes intervieram na vida nacional e cuja influência infeliz permaneceu até ao século XXI. 

O primeiro vírus é a decadência propriamente dita. Fundamentalmente assume a forma de um negativismo doentio, de um medo de existir. 
O segundo vírus deriva directamente do primeiro. Não acreditando em nós mesmos, temos de adoptar uma máscara que nos console como entidade viva. 
Exprime-se num desprezo não assumido do que somos que nos leva à procura do "estrangeiro". 

O nosso desenraizamento e a recusa das nossas origens e das nossas potencialidades, surgiram com a adopção, em tempos imemoriais, do modelo romano de vida e a forma religiosa associada que assim se tornou predominante. 
Foi mais tarde consolidada através do liberalismo que, implantado primeiro em 1820, através de uma guerra civil constante, latente ou patente, até à sua fixação em 1851, e a corrupção definitiva dos nossos costumes políticos e administrativos. 
O processo de estrangeiramento surgiu igualmente no lado dos chamados "republicanos". Desenvolveu-se plenamente em 1910, com a implantação da República. 
A desnacionalização tornou-se, nessa altura, degenerescência. Nem a degenerescência se limitava aos partidos que a República trouxe (não há estado social mórbido que seja pertença exclusiva de um partido), mas abrangeu também os velhos partidos monárquicos cuja obra, a República, anarquizando mais, apenas continuou. 
Mais tarde, assumiu a forma de demissão de muitos portugueses perante a vinda de um "salvador". Durante a grande parte do século XX, Portugal praticamente não existiu no mundo fechado sobre si mesmo num autismo doentio. O choque do 25 de Abril de 1974 não conseguiu melhorar o doente. Antes pelo contrário, Portugal tornou-se num doente que facilmente poderia ser invadido por outros vírus tendo em conta o seu grau de fraqueza e de decadência. 
A governação, após os anos de 1974-75, foi um desfilar de políticas "centristas" que nada tinham a tinham a ver com as nossas raízes. 
Assumiu, em finais do século XX, a forma "encantatória" da adesão ao modelo europeu. Todo este acumular de erros culminou na actual situação.




Para caracterizar este Portugal estranho de começos do século XXI, podemos distinguir três formas que a doença adopta entre os portugueses. 
Por outras palavras, há três espécies de Portugal, dentro do mesmo Portugal; ou, se se preferir, há três espécies de português:

1. Os obreiros, camponeses e parte da classe média com uma origem operária ou rural.
Começou com a nacionalidade: é o português típico, que forma o fundo da nação e o da sua expansão numérica, trabalhando obscura e modestamente em Portugal e por toda a parte de todas as partes do Mundo. Que sempre foram explorados e que têm, apesar de serem uma enorme maioria, horizontes limitados pelo seu silêncio e raiva improdutiva.
Este português encontra-se, desde 1578, divorciado de todos os governos e abandonado por todos. Existe porque existe, e é por isso que a nação existe também.
Os que, sem o saberem conscientemente, se submetem diariamente a doses infernais de intoxicação voluntária de TV e outras "drogas" legais (Portugal é o país campeão, na Europa, no consumo do anti-depressivo Prozac). A apatia e o respeito, um pouco ressentido, e a amabilidade postiça são, em grande parte, a sua marca. 
Encontram-se arredados dos governos votando sob a influência das paixões ou de impulsos não racionalizados que os media e o marketing controlam. "Ser de" ou "votar num" partido assemelha-se um pouco à fé que suporta a adesão clubística no futebol.
Não admira, por isso, que, do ponto de vista da ciência política, sejamos o país mais previsível do mundo. De algum modo, somos sempre governados pelos mesmos, por um centrismo cada vez mais tecnocrata e acéfalo.

Na justa descrição do filósofo José Gil, os portugueses deste tipo, com medo da inveja assumida que caracteriza as sociedades patriarcais mediterrânicas, têm medo de existir.


2. Os dirigentes e intelectuais estrangeirados que reproduzem, no modo como vivem e pensam, as modas estrangeiras de forma acrítica e sem as adaptarem efectivamente à nossa idiossincrasia.
Este é um português que o não é. 
Começou com a invasão mental estrangeira, que data, com verdade possível, do tempo do Marquês de Pombal.
Este português é o português obreiro mas com água; a imaginação continuará a predominar sobre a inteligência, mas não existe; a emoção continua a predominar sobre a paixão, mas não tem força para predominar sobre coisa nenhuma; a adaptabilidade mantém-se, mas é puramente superficial — de assimilador, o português, neste caso, torna-se simplesmente mimético.
Portugal parece sofrer de um mal: a esquizofrenia social.
 "No estamos conscientes de nuestra inconciencia. No hay cognición colectiva de la dimensión del problema, no hay una propuesta de solución holística y radical, no hay una visión de nación grande. Nuestra crisis identitaria nos mantiene rotos, perdidos en el individualismo ramplón y egocéntrico" 
(Agustín Basave, Mexicanidad y Esquizofrenia, los dos rostros del mexicano) 
Este português habita grande parte das classes médias superiores, certa parte do povo, e quase toda a classe dirigente. É o que actualmente governa o país. Está completamente divorciado do país que governa. É, por sua vontade, norte-americano ou parisiense e moderno. Contra a sua vontade, é estúpido. São, usando como mote a figura do político que marcou o final do século XX, Cavaco Silva, rapazinhos bem comportados e exemplares procurando sempre a aprovação do "pai" "Europa".

Exemplos: desde o Marquês de Pombal com o seu absolutismo radical, passando pelos liberais e românticos do século XIX, aos republicanos da maçonaria de 1910 que ainda dominam muito dos políticos do centro, aos comunistas ortodoxos inspirados numa utopia que se transformou num pesadelo e, por fim, aos tecnocratas do neo-liberalismo.
Socialmente este tipo constitui a base de recrutamento para deputado, ministro e líder de partidos políticos maioritários.

Contudo, o problema não está em ser estrangeirado, em si mesmo.
Está na forma de estrangeirado que se adopta.
O vírus está na nossa falta de auto-estima, no nosso negativismo provinciano. Um ser que, quando fala com um inglês, francês ou alemão, parece ter vergonha de dizer que é português.


3.  Os sonhadores que, embora sendo críticos do provincianismo congénito de muitos portugueses, vêem os ditos "defeitos" como potencialidades, como diferenças que se podem, se bem administradas, potenciar: a nossa preguiça, o nosso sentido de comunidade, a nossa capacidade de aventura e de improvisação, etc. 
Consiste em sublinhar que aquilo que parece um veneno, num contexto de crise, pode ser o remédio, o "phármakon" de que falavam os gregos antigos. Esse português sonhador e rebelde, começou a existir quando Portugal, por alturas de El-Rei D. Dinis, começou, de Nação, a esboçar-se Império, fez as Descobertas, criou a civilização transoceânica moderna, e depois foi-se embora. Foi-se embora em Alcácer Quibir, mas deixou alguns parentes, que têm estado sempre, e continuam estando, à espera dele.

Sonhadores que inspiram, de algum modo, os novos líderes surgidos dos movimentos sociais no começo do século XXI. São os seres, muitos ainda jovens (e não apenas na idade cronológica), que continuam maioritariamente navegando animados pelo sonho dos nossos primeiros investigadores que criaram, segundo o filósofo do séc. XVII Francis Bacon e todos os historiadores da ciência, as bases da ciência como utopia de conhecimento e interculturalidade. Que estão na base de utopias como as concretizadas na América Latina por alguns dos nossos intelectuais.

Destaca-se, entre muitos outros, o caso notável do nosso Padre António Vieira, defensor dos indígenas e um ecologista avant la lettre. 
"No estado do Maranhão, os jesuítas lutaram pela liberdade dos índios defendida pelo Pe. Antonio Vieira instalando aldeamentos longe de povoações e fazendas, ameaçando a reprodução do sistema colonial". 

Embora fossem humanistas e defensores de uma lógica de diálogo e argumentação próxima das ciências sociais e da literatura, eram também homens de acção que transformaram a utopia em real. Que assumiram que tudo é virtual, mesmo a realidade mais objectiva, tudo é sonho que se activa pela acção séria e comunitária. "Deus", no sentido galáctico e panteísta, "quer, o homem sonha e a obra nasce".

Este português absorve a inteligência com a imaginação — a imaginação é tão forte que, por assim dizer, integra a inteligência em si, formando uma espécie de nova qualidade mental. Daí os Descobrimentos, que são um emprego intelectual, até prático, da imaginação. 
Daí a falta de grande literatura nesse tempo (pois Camões, conquanto grande, não está, nas letras, à altura em que estão nos feitos o Infante D. Henrique e Afonso de Albuquerque, criadores respectivamente do mundo moderno e do mundo global moderno).
E esta nova espécie de mentalidade influi nas outras duas qualidades mentais do português: por influência dela a adaptabilidade torna-se activa, em vez de passiva, e o que era habilidade para fazer tudo torna-se habilidade para ser tudo. 

O sonhador do século XXI será também, em grande medida, uma mistura de um navegador de sonhos, Agostinho da Silva, utópico e imaginativo com um jovem animador político hacker pragmático ligado à internet.

Na verdade, a crise da educação e o desemprego estão a deitar cá para fora milhares de potenciais sonhadores realistas que, com lucidez, devem evitar cair nos erros dos seus pais. Podem, de certa forma, como dizia Pessoa, fazer cumprir o sonho dos nossos antepassados valentes e sábios que deram novos mundos ao mundo, uma nova cosmovisão.

Em suma, estes três tipos do português têm uma mentalidade comum, pois são todos portugueses mas o uso que fazem dessa mentalidade diferencia-os entre si.
Portugal necessita urgentemente de uma "troika" inspirada na imaginação, na emoção com compaixão e na capacidade de improvisação.


O português, no seu fundo psíquico, define-se, com razoável aproximação, por três características:

1 - o predomínio da imaginação sobre a inteligência;
2 - o predomínio da emoção sobre a paixão;
3 - a adaptabilidade instintiva.

Pela primeira característica distingue-se, por contraste, do ego antigo, com quem se parece muito na rapidez da adaptação e na consequente inconstância e mobilidade. 
Pela segunda característica distingue-se, por contraste, do espanhol médio, com quem se parece na intensidade e tipo do sentimento. 
Pela terceira distingue-se do alemão médio; parece-se com ele na adaptabilidade, mas a do alemão é racional e firme, a do português instintiva e instável.


A "troika", a servir de guia a um governo de sonhadores pragmáticos, seria inspirada nestas três características arque-típicas: 

  • imaginação controlada, 
  • actos emocionais políticos compassivos  
  • capacidade de improvisar organizadamente.


1 -  É necessária e urgente uma imaginação controlada que não recusa, de forma infantil, no seu todo, a economia de mercado. Mas que, ao mesmo tempo, não assume os seus dogmas e a sua crueldade. Muitos dos livros recentes na área da economia exprimem um sintoma desta transformação que mostra os limites do modelo "neo-liberal" de desenvolvimento. Alternativas emergem por todos os lados em micro-experiências de trabalho e de cooperação que poderão, pouco a pouco, ser alargadas a outras áreas da actividade humana. Uma nova distribuição da riqueza que permita um rendimento básico sustentável para todos os participantes na obra comum.

2 - Actos políticos em que a emoção, a compaixão, no seu sentido nobre, servem de guia sem se deixarem dominar por paixões, fanatismos e moralismos perigosos com conotação de "esquerda" ou "direita". Assumir que não há decisões apenas racionais e que a emoção deve assumir uma forma essencialmente ética mas nunca moral.
Compaixão autêntica pelos desempregados reais, pelos idosos que vivem com pensões no limite da vida, casais jovens com esgotamentos psicológicos e crianças subnutridas.
Ter uma consciência real das agressões ao ambiente, e à nossa psique, provocadas pelo modelo mercantil de vida.
Respeitar a natureza tendo uma consciência cada vez mais ecosófica e planetária como era o caso de alguns dos nossos primeiros navegadores.
Esta consciência deve constituir o fundo obrigatório das decisões políticas mais importantes obrigando os políticos a justificar-se em público.
É claro que esta utopia realista necessita de novos media não subjugados e jamais acéfalos. Imitar um pouco a sensibilidade de políticos políticos não "redondos" como diz justamente o escritor uruguaio Eduardo Galeano.

E, finalmente,

3 -  Usar a nossa conhecida capacidade de improvisação, muitas vezes denegrida de forma masoquista pelos estrangeirados de esquerda e direita, para a potenciar sem nos deixarmos levar pelo facilitismo. Improvisação organizada ou o que algumas teorias organizacionais definem, de forma negativa, como uma "anarquia organizada". Uma anarquia negociada mas com pontos fortes de decisão de forma a evitar a negociação instável. 
Desburocratizar ainda mais a sociedade, valorizando as lógicas de rizoma, descentradas como as redes na net, na inovação social.
Agilizando ainda mais as relações da sociedade civil com a função pública e o Estado. Mas não caindo na lógica brutal do "menos estado" a todo o custo.
Tentar consensos mas de forma assertiva e incisiva negociando duramente com os interesses da banca e das organizações empresariais.
E, acima de tudo, potenciar os recursos de saber das Universidades e instituições emergentes em que a formação e a investigação se assumem de forma activa e participada.
Recusar a loucura da tecnocracia cega inspirada nas obras da construção civil e na euforia informática.
Ter em conta que, por exemplo, Portugal está na vanguarda nas inovações comunitárias auto-sustentáveis induzidas em grande parte por jovens europeus imigrantes descontentes com o modelo de vida neo-liberal da Europa Central. 



  • É a hora de retirar o governo desta comunidade territorial chamada Portugal aos "estrangeirados" que sempre se venderam às modas europeias ou norte-americanas baseadas na crença no racional e na quantidade, ou seja, o paradigma da economia clássica.



  • É necessário e urgente, para conseguirmos sobreviver como entidade independente e saudável, dar lugar aos sonhadores pragmáticos. São autênticos inovadores sociais.



  • É a hora de Portugal, como espaço mítico e de memória, se erguer e se cumprir como utopia planetária.



in, Crowd-Manifest
Inspirado em:
Fernando Pessoa 
em 1933
(com adaptações)
Para compreender este Portugal do século XXI, adapta-se, com várias modificações, um texto do escritor e poeta Fernando Pessoa, escrito no século XX:
"Há três espécies de Portugal, dentro do mesmo Portugal"
in, http://arquivopessoa.net/textos/3477.
Fernando Pessoa, Sobre Portugal. Introdução ao problema nacional, Lisboa, Ática, 1979.





“Onde quer que, entre sombras e dizeres,
Jazas, remoto, sente-te sonhado,
E ergue-te do fundo de não-seres
Para teu novo fado!”


Fernando Pessoa 
in, A Mensagem
18 de Janeiro de 1934 



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