sábado, 30 de maio de 2015

A fuga



Eu não aparecerei quando tu chamas,
Pois estou já contigo ao teu chamar.
Quando em ti penso, estás dentro de mim,
E tudo é já teu próprio pensar.
Tua presença de ausência se veste
Em teu corpo, onde a alma escondida.
É em minha mente que inteira estás
E é em mim que tu és possuída.
Fora de ti, dado ao espaço e ao tempo
Teu corpo, mero tu, de mim ausente,
Partilha a mudança, o tempo e o lugar,
Pertence a outra lei, de ti diferente.
No meu sonho de ti nada te altera
Em outra, que contigo se compara.
Tua presença corpórea é só a parte
De ti, que a ti de ti separa.
Por isso chama, mas sem me esperares.
Tua voz, ao meu sonho acrescentada,
Juntará mais beleza ao meu pensar
Teu corpo, vivo na mente habitada.
A tua voz ouvida da distância
Mais aproxima tua sonhada presença.
Mais nítida e clara que parecia,
Na minha fantasia fica imensa.
Não chames mais. Tua voz duas vezes
Repetida no espaço verdadeiro,
Quase seria como a realidade.
O segundo som, o eco do primeiro.
Chama uma só vez. E que eu imagine
No segundo apelo, de olhos cerrados, 
A visão do teu corpo a cintilar
Na memória visível dos teus brados.
O resto será teu prolongamento,
Olhos fechados p’ra não sentir,
No apelo premente de meu sonho.
Fica longe, calada, mas sem vir,
Pois virias perto de mais à vista
E de meu pensamento irias para ti
Vestindo em mim teu corpo sonhado
(O sonho do teu corpo é infinito)
Com teu limite, o visualizado.


Fernando Pessoa 
In, Poesia Inglesa II

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