sábado, 31 de janeiro de 2015

O escritor e o seu daimon



Nas entrevistas, António Lobo Antunes apresenta-se como um escritor que, vive dentro de si a experiência da co-naturalidade com o acto criador, recuperando ideias que hoje já não subsistem, nem sequer nos nossos mitos: as ideias de inspiração, de génio, de entusiasmo (no sentido grego de possessão pelo divino).

A entrevista que lhe fez Isabel Lucas, publicada numa edição do Ípsilon, fornece matéria abundante para a análise desta mitologia.

O discurso de António Lobo Antunes obriga-nos a uma metódica suspeita:
lido em primeiro grau, em que o pressuposto é o de que ele acredita nas suas próprias palavras e se situa num registo de verdade, teríamos o mais ingénuo dos escritores;
lido em segundo grau, em que o pressuposto é o da distância em relação às suas próprias palavras, teríamos o mais teatral e parodiante dos escritores, quando sobe ao palco das entrevistas.
A segunda hipótese é muito mais interessante do que a primeira, e a mais verosímil.

Seria um insulto ao escritor e à sua obra acreditar que ele acredita que “é o livro que se escreve a si mesmo” e que isso decorre de um mistério que ele formula desta maneira, ao responder a uma pergunta sobre o nascimento do livro agora publicado:
“Não sei o que me passou pela cabeça.”
Esse mistério, facilmente reconhecível por quem está familiarizado com os mitos românticos, é o do génio como potência criadora ex-nihilo, irredutível a todas as regras e impossível de analisar racionalmente.

O génio romântico é considerado ou considera-se a si mesmo como fonte criadora, como um deus.
É esta concepção teológica da criação literária — em que o escritor, possuído por um daimon, é um intermediário entre os homens e os deuses — que António Lobo Antunes reclama desde há muito tempo nas entrevistas.
E reclama-o não apenas para si, mas para os escritores em geral, essas criaturas que “parece que têm contacto com outra instância qualquer”.

Seríamos grosseiros, ou pelo menos ingénuos, se levássemos as suas palavras a sério e não as lêssemos como uma enorme paródia, retomada em cada entrevista, dissimulada na gravidade e no pathos que o autor coloca na sua representação do papel do escritor possuído pela genialidade, levado por uma escrita demoníaca, ditada por uma lei interior que alude ao que Hegel chamava “reino animal do espírito”.

Daí este desejo:
“Só gostava de viver mais uns tempos porque tenho mais uns livros dentro de mim.”
Os livros estão “dentro de mim” como pura potência que só se transforma em acto por mediação dessa divindade tutelar a que os latinos chamavam o genius e que presidia ao nascimento do indivíduo.

O genius é ao mesmo tempo uma figura de invocação, como são as musas, e uma aptidão superior do espírito (portanto, interior).
E é precisamente porque os livros, “dentro de mim”, precisam de um grande intercessor, uma entidade que está fora e num plano superior, que um grande medo cresce:
“Tenho um medo permanente de isto ter acabado.”
“Isto” é o mistério da criação literária, o sem-nome da literatura quando ela é vista em chave teológica, como é o caso nesta paródia em muitos actos do génio e da criação que António Lobo Antunes encenou com suficiente verosimilhança para exaltar e confortar os que lêem as suas entrevistas segundo a hipótese do escritor ingénuo.

Os outros, os que lhe descobrem as manhas teatrais para o resgatar generosamente da ingenuidade e da mistificação, teriam vontade de lhe recitar a lei pessoana do fingimento do poeta:
“O poeta é um fingidor/ finge tao completamente…”.

 ANTÓNIO GUERREIRO

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