segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Inéditos



"Nem choro. Como chorar?
Eu desejaria poder querer (desejar) trabalhar, febrilmente trabalhar para que esta pátria que vós não conheceis fosse grande como o sentimento que eu sinto quando n'ela penso. Nada faço. Nem a mim mesmo ouso dizer: amo a pátria, amo a humanidade. Parece um cinismo supremo.
Para comigo mesmo tenho um pudor em dizê-lo. Só aqui lh'o registo sobre papel, acanhadamente ainda assim, para que n'alguma parte fique escrito. Sim, fique aqui escrito que amo a pátria funda, (...) doloridamente.
Seja dito assim sucinto, para que fique dito. Nada mais.

Não falemos mais. As coisas que se amam, os sentimentos que se afagam guardam-se com a chave d'aquilo a que chamamos «pudor» no cofre do coração. A eloquência profana-os. A arte, revelando-os, torna-os pequenos e vis. O próprio olhar não os deve revelar.
Sabeis decerto que o maior amor não é aquele que a palavra suave puramente exprime. Nem é aquele que o olhar diz, nem aquele que a mão comunica tocando levemente n'outra mão. É aquele que quando dois seres estão juntos, não se olhando nem tocando os envolve como uma nuvem, que lhes (...)
Esse amor não se deve dizer nem revelar. Não se pode falar dele.

(...)

Não faço visitas, nem ando em sociedade alguma - nem de salas, nem de cafés.
Fazê-lo seria sacrificar a minha unidade interior, entregar-me a conversas inúteis, furtar tempo senão aos meus raciocínios e aos meus projectos, pelo menos aos meus sonhos, que sempre são mais belos que a conversa alheia.
Devo-me a humanidade futura.
Quanto me desperdiçar desperdiço do divino património possível dos homens de amanhã; diminuo-lhes a felicidade que lhes posso dar e diminuo-me a mim-próprio, não só aos meus olhos reais, mas aos olhos possíveis de Deus.
Isto pode não ser assim, mas sinto que é meu dever crê-lo. "

Fernando Pessoa
in,"Inéditos"

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