domingo, 26 de julho de 2020
As velas ardem até ao fim...excertos
Agora que ultrapassara a primeira surpresa, sentia-se de repente cansado. Uma pessoa prepara-se para alguma coisa durante a vida inteira. Primeiro, sente-se ofendido. Depois quer vingança. A seguir, fica à espera. Havia muito que não aguardava. Já não sabia em que ponto o ressentimento e o desejo de vingança se haviam transformado em espera. Tudo perdura no tempo, mas torna-se tão pálido como aquelas fotografias muito antigas que ainda foram fixadas em chapas metálicas.
O palácio encerrava tudo, como um grande túmulo ornamentado, talhado em pedra, em que ossos de gerações se deterioravam, onde se desfaziam vestidos fúnebres de mulheres e homens de outros tempos, de seda cinzenta ou de pano negro. Encerrava em si também o silêncio, como um preso religioso que apodrece desmaiado na palha pútrida, numa masmorra, de barba comprida, esfarrapado e coberto de bolor. E encerrava a memória, a memória dos mortos que se ocultavam nos recantos ocos dos quartos, como se ocultam os fungos, a humidade, os morcegos, as ratazanas e os insectos nas caves húmidas das casas muito velhas. Sentia-se nos puxadores das portas o tremor duma mão, a emoção dum momento passado quando a mão hesitava em puxar essa maçaneta. Todas as casas onde a paixão tocou as pessoas com a sua força arrebatadora se enchem desse conteúdo obscuro.
É esse o sentido do amor e da amizade. A amizade deles era tão séria e silenciosa, como todos os grandes sentimentos que duram uma vida inteira. E tal como todos os grandes sentimentos, continha também um certo pudor e sentimento de culpa. Uma pessoa não pode apropriar-se impunemente de outra, separando-a das restantes.
A educação que trazia no sangue da casa, da floresta, de Paris e da sensibilidade da mãe, impunha-lhe que uma pessoa nunca falasse daquilo que o afligia, antes suportasse tudo em silêncio. O mais sensato era não falar de todo, assim lhe ensinaram. Mas não conseguia viver sem afecto, e isso também fazia parte da herança.
Uma pessoa sabe sempre a verdade, essa outra verdade que é oculta pelas representações, pelas máscaras e pelas circunstâncias da vida.
Em todos os poderes humanos existe um ligeiro, delicado e quase imperceptível desprezo por aqueles que dominamos. Só podemos dominar inteiramente almas humanas, se conhecemos, compreendemos e desprezamos muito discretamente aqueles que são forçados a render-se.
Essas mulheres traziam para as suas vidas o encanto dos primeiros amores e tudo aquilo que o amor significava: o desejo, os ciúmes e a solidão desconcertada. Mas atrás das mulheres, das representações e do mundo, oscilava um sentimento que era mais forte que todos os outros. Só os homens conhecem esse sentimento. Chama-se amizade.
— Era bom saber — continua, como se discutisse consigo próprio —, se existe amizade realmente? Não me refiro àquele prazer ocasional que faz com que duas pessoas fiquem contentes porque se encontraram, porque num determinado período das suas vidas pensavam da mesma maneira sobre certas questões, porque os seus gostos são semelhantes e os seus passatempos iguais. Nada disso é amizade. Às vezes, chego a pensar que essa é a relação mais forte na vida... talvez por isso seja tão rara. E o que há no seu fundo? Simpatia? É uma palavra imprópria, sem sentido, o seu conteúdo não pode ser suficientemente forte para que duas pessoas intervenham em defesa um do outro nas situações mais críticas da vida... apenas por simpatia? Talvez seja outra coisa?... Talvez exista uma pitada de Eros no fundo de todas as relações humanas? (...) O Eros da amizade não precisa do corpo... longe disso, incomoda mais do que o excita. Porém, não deixa de ser Eros. Eros está no fundo de todos os afectos, de todas as relações humanas. (...) A amizade, pensava eu — e tu, que andaste mais pelo mundo fora, certamente sabes mais e melhor que eu, aqui na minha solidão campestre —, é a relação humana mais nobre que pode haver entre os seres vivos humanos. (...) As simpatias que vi nascer entre pessoas diante dos meus olhos, acabaram sempre por se afogar nos pântanos do egoísmo e da vaidade. A camaradagem, o companheirismo, às vezes, parecem amizade. Os interesses comuns por vezes criam situações humanas que são semelhantes à amizade. E as pessoas também fogem da solidão, entrando em todo o tipo de intimidades de que, a maior parte das vezes, se arrependem, mas durante algum tempo podem estar convencidas de que essa intimidade é uma espécie de amizade. Naturalmente, nesses casos não se trata de verdadeira amizade. Uma pessoa imagina — e o meu pai entendia as coisas dessa maneira — que a amizade é um serviço. O amigo, assim como o namorado, não espera recompensa pelos seus sentimentos. Não quer contrapartidas, não considera a pessoa que escolheu para ser seu amigo como uma criatura irreal, conhece os seus defeitos e assim o aceita, com todas as suas consequências. Isso seria o ideal. E na verdade, vale a pena viver, ser homem, sem esse ideal? E se um amigo falha, porque não é um verdadeiro amigo, podemos acusá-lo, culpando o seu carácter, a sua fraqueza? Quanto vale aquela amizade, em que só amamos o outro pela sua virtude, fidelidade e perseverança? Quanto vale qualquer afecto que espera recompensa? Não seria nosso dever aceitar o amigo infiel da mesma maneira que o amigo abnegado e fiel? Não seria isso o verdadeiro conteúdo de todas as relações humanas, esse altruísmo que não quer nada e não espera nada, absolutamente nada do outro? E quanto mais dá, menos espera em troca? E se entrega ao outro toda a confiança duma juventude, toda a abnegação da idade viril e finalmente oferece a coisa mais preciosa que um ser humano pode proporcionar a outro ser humano, a sua confiança absoluta, cega e apaixonada, e depois se vê confrontado com o facto de o outro ser infiel e vil, tem direito de se ofender, de exigir vingança? E se se ofende e grita por vingança, era realmente amigo, o traído e abandonado? Vês, dediquei-me a essas questões teóricas quando fiquei sozinho. Naturalmente, a solidão não me deu resposta. (...) E cada livro continha uma pitada da verdade e cada recordação insinuava que é vão conhecer a verdadeira natureza das relações humanas, porque nenhum conhecimento torna uma pessoa mais sábia. E é por isso que não temos o direito de exigir a verdade e a fidelidade absolutas daquela pessoa que um dia tínhamos aceite como amigo, mesmo que os acontecimentos tivessem demonstrado que esse amigo foi infiel.
Porque existe a verdade baseada nos factos. Aconteceu isto e aquilo. Aconteceu coisa e tal. Nesse ou naquele momento. Não é difícil averiguar isso. Os factos falam por si, como se costuma dizer, a caminho do fim da vida todos os factos são reveladores e gritam mais alto que os réus submetidos à tortura. Afinal, tudo aconteceu e não podem existir equívocos. Mas, às vezes, os factos são apenas consequências deploráveis. Uma pessoa não peca com aquilo que faz, mas com a intenção, com a qual comete isto ou aquilo. A intenção é tudo. (...) Uma pessoa pode cometer infidelidade, um acto infame, sim, até o pior, pode matar e,todavia, manter-se puro por dentro. Um acto ainda não é equivalente à verdade. É sempre apenas uma consequência, e se um dia, uma pessoa desempenha o papel de juiz e quer julgar, não pode contentar-se com os factos do relatório da polícia, tem de averiguar aquilo que os juristas chamam de motivo. O facto da tua fuga é fácil de compreender. O motivo é que não.
E às vezes cheguei a pensar que a amizade talvez seja uma ligação semelhante à união fatal dos gémeos. Uma identidade singular da inclinação, da simpatia, do gosto, da cultura e da paixão une duas pessoas ao mesmo destino. Faça o que fizer um deles contra o outro, os seus destinos são comuns. É inútil que um deles fuja do outro, porque sabem tudo, que é essencial, um do outro.
Afinal, uma pessoa sempre responde com a sua vida inteira às perguntas mais importantes. Não importa o que diz entretanto, com que palavras e argumentos se defende. No fim, no fim de tudo, com os factos da sua vida responde às perguntas que o mundo lhe dirigiu com tanta insistência. Essas perguntas são as seguintes: Quem és tu?... Que querias realmente?... Que sabias realmente?... A que foste fiel ou infiel?... A quê ou a quem mostraste ser corajoso ou cobarde?... São essas as perguntas. E uma pessoa responde como pode, duma maneira sincera ou mentindo; mas isso não tem grande importância. O importante é que no fim, uma pessoa responde com toda a sua vida.(...) Uma pessoa não sabe muitas vezes que palavras suas ou actos seus anunciam fatalmente, irrevogavelmente uma certa mudança nas relações humanas.
Aquela foi a última vez que fui à caça na minha floresta. (...)Não conhecias aquela paixão singular, a mais secreta paixão da vida do homem que, atrás de todas as representações,(...)vive nos nervos de cada homem, tão profundamente, como o fogo eterno no âmago da terra. Essa paixão é o desejo de matar. (...)O homem mata para defender algo, mata para obter algo, mata para se vingar de algo. Sorris com desprezo? Eras um artista, esses instintos baixos e brutais refinaram-se na tua alma?(...) a caça ainda representa um sacrifício, um vestígio deformado e ritual dum acto religioso ancestral que é dos tempos do nascimento do homem. Porque não é verdade que o caçador mata para obter a presa. A caça era sempre acompanhada por um ritual, ritual tribal e religioso. O bom caçador era sempre o primeiro homem da tribo, uma espécie de sacerdote. Naturalmente, tudo isso se desvaneceu com o passar do tempo. Mas os rituais, permaneceram. (...) Mas o sangue é sujidade?... Não creio. É a substância mais nobre que existe no mundo e quando o homem queria dizer ao seu Deus algo importante, algo inexprimível, fazia-o sempre oferecendo um sacrifício de sangue. O animal pára, não vê, não cheira nada, porque o vento sopra de frente, porém sabe que o seu destino é iminente; ergue a cabeça, vira o pescoço tenro, o seu corpo fica tenso, durante alguns instantes mantém-se diante de ti, numa postura magnífica, imóvel, como um homem que estaca desamparado perante o seu destino, impotente, porque sabe que o destino não é fortuito, nem um acidente, mas a consequência natural de circunstâncias correlacionadas, imprevisíveis e dificilmente inteligíveis. Tu também te deténs, no meio da folhagem densa, estás dependente nesse instante, tu, o caçador. E sentes na mão o tremor que é tão antigo como o homem, a disposição para matar, essa atracção proibida, a paixão que é mais forte que tudo o resto, o impulso que não é bom, nem é mau, mas é um dos impulsos secretos da vida: ser mais forte que o outro, mais hábil, ser um mestre, não falhar. O mesmo sentiste tu, talvez pela primeira vez na tua vida, no posto de vigia, na floresta, quando levantaste a tua arma e apontaste para me matar.
Era o momento em que a noite se separa do dia, o mundo de baixo do mundo de cima. E talvez haja outras coisas que também se separam nesses momentos. É o último segundo em que a profundidade e a altura, a luz e a escuridão, tanto universal como humana, ainda se tocam, em que os que dormem despertam em sobressalto dos seus sonhos pesados e angustiantes, os doentes suspiram de alívio, porque sentem que o inferno da noite acabou e dará lugar a um sofrimento mais ordenado; a luz e a regularidade do dia revela e separa tudo que no caos obscuro da noite era um desejo convulsivo, uma ansiedade secreta, uma paixão delirante. Os caçadores e os animais selvagens gostam desse momento. Já não é noite, mas ainda não é dia. O perfume da floresta está tão vivo e selvagem nesse instante, como se todos os seres vivos começassem a despertar no grande dormitório do mundo, como se exalassem os seus segredos e suspiros maldosos, as plantas, os animais e também os seres humanos. (...) É um momento misterioso, os antigos, os pagãos celebraram-no nas profundezas da floresta, com devoção,com braços abertos e com o rosto virado para Oriente, naquela expectativa mágica, em que o homem, atado à matéria, anseia eternamente no coração e no mundo pelo momento da chegada da luz, ou seja, da razão e da compreensão. (...) A noite ainda está viva no fundo da floresta: a noite e tudo que esta palavra significa, com a consciência da presa, do amor, do vaguear, do prazer de viver desinteressado e da luta pela sobrevivência. É o momento em que não apenas nas profundidades da floresta, mas também na obscuridade dos corações humanos acontece algo. Porque os corações humanos também têm as suas noites, cheios de emoções tão selvagens, como os impulsos da caça que assaltam o coração do veado ou do lobo. O sonho, o desejo, a vaidade, o egoísmo, a ira lasciva do macho, a inveja, a vingança, essas paixões ocultam-se de tal modo na noite da alma humana, como o puma, o abutre e o chacal no deserto da noite do Oriente. Existem momentos em que já não é noite e ainda não é dia no coração humano, quando as feras saem dos esconderijos sombrios da alma, quando estremece no nosso coração e se transforma em movimento na nossa mão uma paixão que formámos e domesticámos em vão durante anos, às vezes, durante muito tempo... E tudo foi em vão, negámos desesperadamente, perante nós próprios, o sentido verdadeiro dessa paixão: o conteúdo real da paixão era mais forte que as nossas intenções, não se derreteu, ficou sólido. No fundo de cada relação humana existe uma matéria palpável e, por muitos que sejam os argumentos e habilidades, essa realidade não muda. A realidade simplesmente era que tu me odiavas durante vinte e dois anos, com aquela paixão, cujo ardor faz lembrar o das relações mais intensas — sim, do amor. Odiavas-me, e quando um sentimento, uma paixão se apodera por inteiro da alma humana, ao lado do entusiasmo sempre arde abafado também o desejo de vingança no fundo dessa fogueira... Porque a paixão não argumenta com palavras da razão. Para a paixão é completamente indiferente aquilo que recebe do outro, quer exprimir-se por inteiro, quer transmitir a sua vontade, mesmo que se não receba em troca mais do que sentimentos ternos, cortesia, amizade ou paciência. Todas as grandes paixões são sem esperança, de outra forma não seriam paixões, apenas acordos, compromissos razoáveis, trocas de interesses banais. Odiavas-me e esse ódio era um laço tão forte como se me tivesses amado. Porque é que me odiavas?... Tinha tempo suficiente, queria perceber esse sentimento. (...) Odiavas-me desde a nossa infância, desde o primeiro momento em que te conheci, naquela escola singular, onde melhoravam e adestravam os exemplares escolhidos do mundo que nós conhecemos, odiavas-me porque eu tinha algo que a ti faltava. (...) Mas no fundo da tua alma escondia-se uma emoção compulsiva — o desejo de ser diferente daquilo que eras. É a maior tragédia, com que o destino pode castigar o homem. O desejo de ser outro, diferente daquilo que somos: não pode arder um desejo mais doloroso no coração humano.
Temos de suportar o nosso carácter, o nosso temperamento, já que os seus defeitos, egoísmos e avidez, não os mudam nem a experiência, nem a compreensão.Temos de suportar que os nossos desejos não tenham plena repercussão no mundo. Temos de suportar que as pessoas que amamos, não nos amem, ou que não nos amem como gostaríamos. Temos de suportar a traição e a infidelidade, e o que é o mais difícil entre todas as tarefas humanas, temos de suportar a superioridade moral ou intelectual de uma outra pessoa.
Éramos crianças e éramos amigos: isso é uma grande dádiva, devemos agradecer ao destino por tê-la desfrutado. Mas depois formou-se o teu carácter e não foste capaz de suportar que te faltasse algo que a mim foi dado, graças às minhas origens, à minha educação, uma espécie de dom divino... Qual era essa habilidade? Tratava-se de habilidade? Era simplesmente que o mundo olhava para ti com indiferença, às vezes com hostilidade, mas a mim, as pessoas ofereciam sorrisos e confiança. Tu desprezavas essa confiança e amizade que o mundo me proporcionava, desprezavas e, ao mesmo tempo, estavas a morrer de ciúmes. Provavelmente imaginavas — não de uma maneira explícita, naturalmente, mas através de sentimentos obscuros, que uma pessoa que é amada e amimada pelo mundo, tivesse algo de prostituta. Há pessoas de quem toda a gente gosta, para quem todos reservam um sorriso benévolo e carinhoso, e essas pessoas realmente têm algo de vanglorioso, algo de prostituta. Como vês, já não tenho medo das palavras — diz e sorri, como se quisesse encorajar o outro a não ter também medo. — Na solidão, uma pessoa chega a conhecer tudo e já não tem medo de nada. As pessoas, em cuja testa se reflecte o sinal divino que mostra que são protegidas pelos deuses, sentem-se realmente seres escolhidos e, na maneira como se apresentam perante o mundo, há uma certa segurança vaidosa. Mas se tu me vias assim, estavas enganado. Apenas os ciúmes podiam distorcer a minha imagem dessa maneira. Não se trata de me defender, porque quero saber a verdade, e quem procura a verdade, só pode começar a busca dentro de si. Aquilo que tu sentias em mim e em torno de mim, como uma graça e uma dádiva divina, não era outra coisa, apenas boa fé. Talvez essa boa fé incentivasse as pessoas a revelar-me os seus sentimentos, a mostrar-me benevolência, sorriso e confiança. E realmente, durante aquela década em que, depois de terminar a escola em Viena, servimos no exército, nem por um momento me abandonou o sentimento da segurança, a sensação que os deuses me tinham colocado um anel de sorte secreto, invisível, e não me podia acontecer nenhum mal, porque estava rodeado de sentimentos de amor e de confiança. Isso é o máximo que um homem pode obter da vida — diz seriamente. — É a maior graça. Quem nestas circunstâncias se torna presunçoso, arrogante ou altivo, quem não é capaz de suportar com humildade a predilecção do destino, quem não sabe que esse estado de graça dura apenas até não desperdiçarmos a dádiva dos deuses, sucumbe. O mundo só perdoa momentaneamente, àqueles que são modestos e humildes de coração...
Quando a juventude ia desaparecendo, quando a magia da infância acabou, a nossa relação começou a arrefecer. Não há processo emocional mais triste e mais desesperado que quando uma amizade entre dois homens arrefece. Porque entre um homem e uma mulher tudo tem determinadas condições, como o regateio no mercado. Mas o sentido mais profundo da amizade entre homens é precisamente o altruísmo, o facto de não querermos o sacrifício do outro, nem ternura, não querermos nada, apenas manter o acordo duma aliança silenciosa. Talvez fosse eu quem cometeu um erro, porque não te conhecia suficientemente. Conformei-me com o não me revelares tudo de ti, respeitava a tua inteligência, aquela superioridade singular e amarga que emanava do teu ser, acreditava que tu também me perdoavas, como o mundo, por ter uma certa capacidade de me aproximar das pessoas com facilidade e com serenidade, de ser amado ali,onde tu eras apenas tolerado — que me perdoavas o poder tratar o mundo por tu. Pensava que ficasses contente com isso. A nossa amizade era como a amizade dos homens nas lendas antigas. E enquanto eu andava nos caminhos mais ensolarados, tu permanecias na sombra deliberadamente.Não sei se sentes o mesmo?...
— Estavas a falar sobre a caça — diz o convidado evasivo.
— Sim, sobre a caça — responde o general. — Mas tudo isso tem a ver com a caça. Quando uma pessoa quer matar outra, naturalmente muitas coisas aconteceram antes, não só o acto de essa pessoa carregar e depois apontar a sua arma. Antes sucedeu também aquilo de que eu falava, que não me podias perdoar, que a nossa relação que se tinha formado nas águas profundas da infância, de um modo tão complexo e tenaz, como se os dois rapazes tivessem sido embalados nas folhas gigantes das rosas dos contos de fadas, no berço sonhado das pétalas de Victoria regia, — não sei se te lembras que criava aqui, na estufa, essa planta gavinhosa, misteriosa, que floresce apenas uma vez por ano, essa relação um dia deteriorou-se. O tempo mágico da infância acabou e ficaram dois homens, unidos por laços de uma relação meticulosa e misteriosa que se chamava, em linguagem comum, amizade. Também devemos saber isso antes de falarmos sobre a caça. Porque o momento em que se é mais culpado, não é necessariamente aquele em que se levanta a arma para matar alguém. A culpa existe antes, a culpa reside na intenção. E quando digo que essa amizade um dia se deteriorou, tenho de saber se se deteriorou realmente e se a resposta é sim, que e quem a deteriorou. Porque éramos diferentes, porém estávamos unidos, eu era diferente de ti, mas completávamo-nos bem, formávamos uma aliança, um acordo humano, e isso é muito raro na vida.
Éramos amigos, não companheiros, compadres, ou camaradas. Éramos amigos e não há nada na vida que possa compensar uma amizade. Nem mesmo uma paixão devoradora pode oferecer tanto prazer como uma amizade silenciosa e discreta proporciona àqueles que são tocados pela sua força. Porque se nós não fôssemos amigos, não terias apontado a tua arma contra mim naquela manhã, na floresta, durante a caça. E se não fôssemos amigos, eu não teria ido à tua casa no dia seguinte, aonde nunca me tinhas convidado, onde guardavas o teu segredo, um segredo maléfico e incompreensível que envenenou a nossa amizade. E se não fosses meu amigo, não terias fugido no dia seguinte desta cidade, da minha proximidade, do local do crime, como os assassinos e os malfeitores, mas terias ficado aqui, ter-me-ias enganado e traído, e isso talvez me tivesse causado dor, talvez tivesse ferido a minha vaidade e o meu orgulho, mas tudo isso não teria sido tão grave como aquilo que fizeste, porque eras meu amigo. E se não fôssemos amigos, tu não terias regressado quarenta e um anos depois, outra vez como assassino e malfeitor que volta furtivamente ao local do crime. Porque tinhas de regressar, como vês. E agora tenho de te dizer algo de que me dei conta só pouco a pouco, não acreditava nisso, negava diante de mim mesmo, tenho de te confessar essa surpresa e revelação terrível: tu e eu ainda continuamos a ser amigos. Parece que nenhuma força exterior pode mudar as relações humanas. Tu mataste algo em mim, destruíste a minha vida e eu continuo a ser teu amigo. E hoje à noite, eu mato algo em ti, depois deixo-te voltar a Londres, aos trópicos, ou ao inferno e continuas a ser meu amigo. Temos de saber isso também, antes de falarmos da caça e de tudo aquilo que se seguiu. Porque a amizade não é um estado de espírito ideal. A amizade é uma lei humana rigorosa. Na antiguidade era a lei do mais forte, nela se baseavam os sistemas jurídicos das grandes civilizações. Para além das paixões e do egoísmo vivia essa lei, a lei da amizade, nos corações humanos. Era mais poderosa que a paixão que persegue os homens e as mulheres com uma força desesperada, para se unirem, a amizade não podia levar à desilusão, porque não queria nada do outro, podia-se matar o amigo, mas a amizade que se formou na infância entre duas pessoas, talvez nem a morte a pudesse matar: a sua recordação continua a viver na consciência das pessoas, como a recordação dum acto heróico silencioso. E realmente, é um acto heróico, no sentido fatal e tácito da palavra, sem o embate de sabres e espadas, um acto heróico, como qualquer atitude humana que é desinteressada. Era essa amizade que existia entre nós, e tu sabias isso bem. E naquele momento em que levantaste a arma para me matar, essa amizade talvez fosse mais intensa que a qualquer altura, durante os vinte e dois anos da nossa juventude. Lembras-te certamente do momento, porque isso tem sido o sentido e o conteúdo para o resto da tua vida.
Quando o destino, numa forma qualquer, se dirige directamente a nós, quase nos chama pelo nosso nome, no fundo da ansiedade e do medo sempre irradia uma certa atracção, porque o homem não quer só viver a todo o custo, não, o homem quer conhecer e aceitar o seu destino por completo e a todo o custo, até à custa do perigo e da destruição.
Percebo e sinto aquilo que tinha acontecido nesse dia: a minha vida tinha-se partido em dois, como uma paisagem rasgada por um terramoto — de um lado ficou a infância, tu e tudo aquilo que a vida passada significava; do outro lado começa aquele território obscuro e imenso que tenho de percorrer, o tempo que me resta para viver. E as duas partes da minha vida já não se tocam.
O que é que se pode perguntar das pessoas, com palavras? O que vale a resposta que uma pessoa dá com palavras e não com a realidade da sua vida?... Vale pouco — diz com determinação. — São poucas as pessoas cujas palavras correspondem por completo à realidade das suas vidas. Talvez seja esse o fenómeno mais raro na vida. Na altura, ainda não o sabia. Agora não me refiro aos mentirosos, aos safados. Só penso que conhecer a verdade, adquirir experiências, de nada serve, porque ninguém consegue mudar o seu carácter. Talvez não se possa fazer mais nada na vida que adaptar à realidade com inteligência e cautela a essa outra realidade inalterável, o carácter pessoal. É a única coisa que podemos fazer. E mesmo assim, não seríamos mais sábios, nem mais protegidos...
Cada um gera também aquilo que acontece consigo. Gera-o, invoca-o, não deixa de escapar àquilo que tem de acontecer. O homem é assim. Fá-lo, mesmo que saiba e sinta logo, desde o primeiro momento, que tudo o que faz é fatal. O homem e o seu destino seguram-se um ao outro, evocam-se e criam-se mutuamente. Não é verdade que o destino entre cego na nossa vida, não. O destino entra pela porta que nós mesmos abrimos, convidando-o a passar. Não há nenhum ser humano que seja bastante forte e inteligente para desviar com palavras ou com acções o destino fatal que advém, segundo leis irrevogáveis, da sua natureza, do seu carácter.
Muito tempo e muitas horas solitárias ensinam-me que se trata sempre disso, relações entre homem e mulher, amizades, relações mundanas, tudo depende disso: das diferenças que dividem a humanidade em dois grupos. Às vezes penso que só existem esses dois grupos no mundo, e todas as variantes da sua diversidade, as diferenças de classe social, de ideologia e de graus do poder, tudo advém dessa diversidade. E, tal como apenas as pessoas do mesmo grupo sanguíneo podem ajudar-se nos momentos do perigo, ao dar o seu sangue a alguém que pertence ao mesmo grupo, assim a alma humana só pode ajudar outra alma humana, se não for “diferente”, se o seu ponto de vista, a sua realidade mais secreta que a sua convicção, forem semelhantes. Lembrei-me das palavras do meu pai, que não lia livros, mas a quem a solidão e a vida tinham ensinado a conhecer a verdade; ele sabia dessa diversidade, sim, ele também tinha encontrado uma mulher a quem amava muito, a cujo lado, porém, se sentia sozinho, porque eram duas pessoas diferentes, dois temperamentos, dois ritmos de vida distintos, porque a minha mãe também era “diferente”, como tu, como a Krisztina...O sentimento que me unia a minha mãe, a ti e à Krisztina, era o mesmo: a mesma saudade, a mesma esperança incessante, a mesma vontade impotente e triste. Porque amamos sempre a pessoa “diferente”, procuramo-la em todas as situações e variantes da vida... sabes? O maior segredo e a maior dádiva da vida, é quando duas pessoas “semelhantes” se encontram. Isso é tão raro, como se a natureza impedisse com força e astúcia essa harmonia — talvez porque para a criação do mundo e para a renovação da vida necessita da tensão que se gera entre as pessoas que se procuram eternamente, mas que têm intenções e ritmos de vida opostos. Sabes, corrente alterna... onde quer que olhes, lá está essa troca de forças positivas e negativas.
Quanto desespero, quanta esperança cega existe atrás dessa tal diversidade!
Ouvia a voz do meu pai e percebi que o seu destino continua em mim, que tenho o mesmo carácter com os mesmos gostos que ele tinha, a minha mãe, tu e a Krisztina estão na outra margem, todos têm um papel diferente, a mãe, o amigo, a amante e esposa, todavia todos desempenham o mesmo papel na minha vida. Estão na outra margem, sim, aonde nunca consigo chegar...Podes alcançar tudo na vida, podes vencer tudo à tua volta e no mundo, a vida pode oferecer-te tudo, e podes tirar tudo da vida: mas nunca podes mudar os gostos, as inclinações, o ritmo da vida duma pessoa, aquela diferença que caracteriza por completo uma pessoa, a pessoa que é importante para ti, que te interessa. Não se pode fazer nada contra as leis do carácter humano, nunca.
Era como os animais selvagens: a educação cuidadosa, o convento das freiras, a cultura e a ternura do pai, tudo isso contribuiu para amansar as suas maneiras. A Krisztina era selvagem por dentro, indomável: tudo o que lhe dei, a riqueza e a posição social, não tinham verdadeiro valor para ela, e dessa independência interior e exigência de liberdade, que era o verdadeiro conteúdo do seu ser e do seu carácter, não queria entregar nada ao mundo, onde a conduzia... O seu orgulho também era diferente do daqueles que têm orgulho das suas posições, das suas origens, das suas riquezas, das suas situações sociais, ou de algum talento particular e individual. A Krisztina tinha orgulho daquela qualidade selvagem e nobre que vivia no seu coração e nos seus nervos, como uma espécie de veneno e uma herança. Era — como sabes bem —, uma pessoa soberana por dentro, e isso é muito raro hoje; ser independente, tanto em mulheres como em homens, é uma qualidade rara. Parece que não é uma questão de origem e de situação. Não era possível ofendê-la, ou colocá-la numa situação que a embaraçasse, não suportava as limitações, em nenhum sentido. E ainda sabia algo mais que é raro num carácter feminino: conhecia a responsabilidade dos seus próprios valores humanos. Trouxe também a paixão, o orgulho, a consciência soberana dos sentimentos incondicionais. Nunca conheci nenhuma outra pessoa que fosse capaz de responder tão plenamente a tudo o que o mundo e a vida lhe ofereciam: à música, a um passeio na floresta matinal, à cor e ao perfume duma flor, à palavra sábia e justa duma pessoa. Não conheci ninguém que fosse capaz de se alegrar com as coisas mais pequenas da vida, como ela: pessoas e animais, estrelas e livros, interessava-lhe tudo, sem ser presunçosa, nem se armar em sabichona, mas aproximava-se de tudo o que a vida lhe dava e mostrava, com a alegria incondicional duma criatura que veio ao mundo para desfrutá-lo. Como se tivesse uma ligação íntima com todos os fenómenos do mundo, percebes?... Sim, de certeza que percebes. Nessa proximidade imparcial havia também humildade, como se sentisse constantemente que a vida é uma grande dádiva e uma graça.
Aquilo que aconteceu, ou poderia ter acontecido?... Tudo isso seria vergonhoso, indigno de ti e de mim, indigno das memórias da nossa infância e amizade. Talvez fosse um alívio para ti contar tudo que era possível contar com factos. Não quero que sintas alívio — diz tranquilamente. Quero a verdade, e a verdade para mim já não são alguns factos policiais poeirentos e decrépitos, os segredos de paixões e equívocos antigos dum corpo de uma mulher, morto e reduzido a pó... que importância tem tudo isso para nós, para marido e amante, agora que esse corpo já não existe, e nós somos velhos, discutimos mais uma vez algumas questões, tentamos saber a verdade e depois caminhamos para a morte...Que importa, no fim da vida, a verdade e a mentira, o engano, a traição, a tentativa de homicídio ou mesmo o homicídio, que importa, onde, quando e quantas vezes me enganou contigo, com o meu melhor amigo, a minha mulher, o único e grande amor e esperança da minha vida, Krisztina?...Contarias essa verdade triste e miserável, confessarias tudo, contarias exactamente como começou, que ciúmes e inveja, medo e tristeza os empurrou para os braços um do outro, que sentias quando a abraçavas, que sentimentos de vingança e de culpa atormentava o corpo e a alma da Krisztina nesses anos... que importa isso? Afinal, tudo é tão simples — tudo o que foi e o que poderia ter sido. Tudo o que outrora eram factos, tornam-se em pó e cinzas. Aquilo que queimava os nossos corações de tal maneira que pensávamos que não podíamos suportá-lo, que morríamos ou matávamos alguém, tudo isso se torna em pó, menos consistente que o pó que o vento levanta e arrasta sobre os cemitérios. Seria uma vergonha e absurdo falar disso. De resto, sei tudo tão exactamente, como se um relatório policial apresentasse todos os pormenores. Poderia contar-te todo o processo, como o procurador no tribunal: que será depois?... Que posso fazer com essa verdade trivial, com os segredos dum corpo que já não existe? Que significa fidelidade, que é que podemos esperar da pessoa que amamos? Estou velho, reflecti muito sobre isso. A fidelidade não será um egoísmo terrível, egoísmo e vaidade, como a maior parte das coisas e pretensões humanas na vida? Quando exigimos fidelidade, queremos que a outra pessoa seja feliz? E se a outra pessoa não é feliz na prisão subtil da fidelidade, amamos essa pessoa de quem exigimos fidelidade? E se não amamos o outro de modo a fazê-lo feliz, temos o direito de exigir algo, fidelidade ou sacrifício? E tudo aquilo a que as pessoas chamam “engano”, essa rebelião triste e enfadonha dos corpos contra uma situação e contra uma terceira pessoa, parece terrivelmente insignificante, se olharmos para trás no fim da vida — insignificante, quase deplorável, como um acidente ou um mal-entendido. Quando alguém é jovem, e a sua mulher o engana com o seu único amigo, mais íntimo que um irmão, naturalmente sente que o mundo se desmoronou à sua volta. Pensa que deve ser assim, porque os ciúmes, a decepção, a vaidade podem causar uma dor tremenda. Mas isso passa... passa duma maneira incompreensível, não de um dia para o outro, não, essa ira nem com os anos se apazigua — mas finalmente passa, da mesma forma que a vida.
Há algo pior que a morte e o sofrimento... quando uma pessoa perde o amor-próprio. Por isso tinha medo do segredo, o segredo comum, de Krisztina, de ti e de mim. Há algo que pode doer, ferir e queimar de tal maneira que talvez nem a morte seja capaz de dissolver esse sofrimento: se uma ou duas pessoas ferem aquele amor-próprio profundo, sem o qual não podemos viver em dignidade. Vaidade, dirias tu. Sim, vaidade... porém, essa dignidade é o conteúdo mais profundo da vida humana. Por isso temia o segredo. Por isso aceitamos qualquer solução, mesmo uma solução vil e cobarde. Foi isso que vi. E vivi. Não é cobardia isso, não... é a última defesa do instinto para viver.
Se me tivesse pedido o divórcio, eu tê-lo-ia concedido. Mas ela não queria nada. Porque ela também era alguém, à sua maneira, à sua maneira feminina, ela também tinha sido ferida por aqueles que amava; um, porque fugiu duma paixão, não quis queimar-se numa ligação, que sabia que era fatal; o outro, porque soube a verdade, esperou e guardou silêncio. A Krisztina também tinha carácter, num sentido diferente daquele em que nós, homens, interpretamos a palavra. A ela também aconteceu algo nesses anos, não só a ti e a mim. O destino tinha-nos tocado e tinha-se cumprido, e nós três suportámos esse destino.
E hoje percebi com a razão, o que já percebi há muito tempo com o coração: a infidelidade e o engano, a vossa traição... compreendi, e que mais posso dizer sobre isso?... Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o significado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso é também velhice. Quando já sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer...Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com exactidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreende nem o imprevisto, nem o invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal... e isso é precisamente a velhice. Porém, há ainda algo vivo no teu coração, uma recordação, algum objectivo de vida indefinido, gostarias de tornar a ver alguém, gostarias de dizer ou saber alguma coisa, e sabes bem que um dia chegará esse momento e então, de repente, já não será tão fatalmente importante saber e responder à verdade, como pensaste durante as décadas de espera. Uma pessoa compreende o mundo, pouco a pouco, e depois morre. Compreende os fenómenos e a razão das acções humanas. A linguagem simbólica do inconsciente... porque as pessoas comunicam os seus pensamentos por símbolos, já reparaste? Como se falassem numa língua estrangeira, ou em chinês, sobre as coisas essenciais, e depois essa língua tem de ser traduzida para a linguagem da realidade. Não sabemos nada de nós próprios. Falamos sempre sobre os nossos desejos, e tentamos esconder-nos desesperada e inconscientemente. A vida torna-se quase interessante, quando já aprendeste as mentiras das pessoas, e começas a desfrutar e a notar que dizem sempre uma coisa diferente daquilo que pensam e querem realmente... Sim, um dia chega o reconhecimento da verdade: e isso significa a velhice e a morte. Mas então, isso já não dói.
Mais tarde, quando soube muitas coisas e percebi tudo, porque o tempo trouxe à ilha da minha solidão alguns destroços, sinais reveladores das substâncias desse naufrágio, olhei para o passado, cheio de piedade, vi-os, aos dois rebeldes, a minha mulher e o meu amigo, duas pessoas, atemorizadas e com remorsos, arrependidas e consumidas pela paixão obstinada, infelizes que se revoltaram e celebraram um pacto de vida e morte contra mim... Coitados! — pensei. (...)E deixas cair a tua mão com a arma, na manhã em que me queres matar, porque já não aguentas essa corrida, esse jogo de esconder, essa miséria. O que podes tu fazer? Levas a Krisztina contigo? Tens de renunciar à tua posição, és pobre e a Krisztina também, não podem aceitar nada de mim, não, não podes fugir com ela, nem viver com ela, não podes casar com ela, mantê-la como amante significa um perigo de morte, ou ainda mais: a cada momento tens de contar com a denúncia e a descoberta, tens medo das contas que tens de me prestar, precisamente a mim, teu amigo e irmão. Essa situação de perigo, não a aguentas durante muito tempo. E um dia, quando o momento amadureceu e surgiu entre nós os dois de uma forma palpável, levantas a arma; e eu, mais tarde, sinto pena de ti sinceramente por esse momento,várias vezes. Deve ser uma tarefa extremamente penosa e pesada matar alguém a quem estamos ligados — diz sem ênfase. — Não és suficientemente forte para essa tarefa. Ou o momento passa, e já não podes fazer nada. Porque também existe isso, o momento — o tempo traz e leva as coisas arbitrariamente, e não somos apenas nós que colocamos as nossas acções e os fenómenos no decorrer do tempo. Acontece que o momento traz consigo uma possibilidade e isso tem um tempo exacto — e se o momento passou, de repente já não podes fazer nada. A tua mão tomba com a arma.
E na manhã seguinte, partes para os trópicos.
A Krisztina sabia que tu querias matar-me naquela manhã, na caça?
E não nego que tinha a suspeita, durante as décadas passadas, de que aquele momento, na floresta matinal, na caça, não foi só um acaso, uma ideia repentina, uma ocasião, um momento inspirado pelo mundo inferior — não, atormenta-me a suspeita de que aquele momento foi precedido por vários outros momentos sensatos, totalmente diurnos. Porque a Krisztina, quando soube que tinhas fugido, disse: “Era um cobarde” — é o que ela diz, são as últimas palavras que ouço da sua boca, e também o seu último juízo pronunciado sobre ti. E fico sozinho com estas palavras. Era um cobarde, porquê?... — pergunto-me muito mais tarde. Cobarde, em que sentido? Para viver? Para viver nós três juntos, ou para viver vocês dois separados? Cobarde para morrer? Não tinha coragem e não queria nem viver nem morrer com a Krisztina?...Ou apenas era cobarde para outra coisa, não para viver nem para morrer, não para fugir nem para trair, não era cobarde para me tirar a Krisztina nem para abdicar da Krisztina, não, era simplesmente cobarde para cometer um acto muito singelo e punível do ponto de vista da lei, que discutiram e planearam os dois, a minha mulher e o meu melhor amigo? E esse plano não resultou, porque eras cobarde?...
É para isso que ainda queria resposta na vida.
Sim, teria sido mais humano se uma bala tivesse acabado com aquilo que o tempo não podia resolver: a dúvida de que vocês se tivessem unido contra mim para me matar, e que tu, afinal, foste cobarde para executar. É isso que ainda gostava de saber.
Nós dois, sobrevivemos a uma mulher — diz num tom confidencial. — Tu, ao te ires embora, eu, ao ficar aqui. Sobrevivemos com cobardia ou com cegueira, com ressentimento ou com prudência, o facto é que sobrevivemos. Sobreviver a alguém, a quem amámos tanto que teríamos sido capazes de matar por ela, sobreviver a alguém, a quem estávamos ligados de tal maneira que quase morremos por isso, é um dos crimes mais misteriosos e inqualificáveis da vida. Mas nós os dois sabemos— diz em voz baixa e seca. — E sabemos também que com toda a nossa inteligência ressentida, cobarde e orgulhosa, não salvaguardámos nada para nós próprios, porque ela morreu, nós estamos vivos, e nós três estávamos ligados duma maneira ou de outra, na vida e na morte. Isso é muito difícil de compreender, e quando uma pessoa o compreende, fica particularmente inquieta. Que pretendeste ao sobreviver a tudo, que ganhaste com isso?...Conseguiste libertar-te de situações embaraçosas? Que importam situações, quando se trata da verdade da vida, de que existe uma mulher no mundo a quem estás ligado, e essa mulher é a esposa daquela pessoa que é o teu amigo, com quem te unem laços igualmente?... E o que importa tudo aquilo que as pessoas pensam sobre isso? Nada — diz com simplicidade. — No fim,o mundo não importa nada. Só importa o que fica nos nossos Corações.
A segunda pergunta resume-se em saber o que ganhámos com toda a nossa inteligência, orgulho e superioridade? Se não tivesse sido aquela atracção penosa por uma mulher que morreu, qual teria sido o verdadeiro conteúdo da nossa vida? Sei que é uma pergunta difícil. Eu não sei responder-lhe. Vivi tudo, vi tudo, e não sei responder a essa pergunta. Vi paz e guerra, vi miséria e grandiosidade, vi-te cobarde e vi-me a mim mesmo vaidoso, vi luta e concordância. Mas no fundo, o significado da vida e das nossas acções talvez tenha sido esse laço que nos uniu a alguém— laço ou paixão, chama-lhe o que quiseres. Essa é a pergunta? Sim, é essa. Gostava que me dissesses — continua tão baixo como se tivesse medo de que alguém estivesse atrás das suas costas ouvindo as suas palavras —, qual é a tua opinião sobre isso? Pensas também que o significado da vida não seja outro senão a paixão, que um dia invade o nosso coração, a nossa alma e o nosso corpo, e depois arde para sempre, até à morte? Aconteça o que acontecer? E que se nós vivemos essa paixão, talvez não tenhamos vivido em vão? É assim tão profunda, tão maldosa, tão grandiosa e desumana a paixão?... E talvez não se dirija a uma pessoa em concreto, mas apenas ao desejo mesmo?... Essa é a pergunta. Ou dirige-se a uma pessoa em concreto, desde sempre e para sempre à única e mesma pessoa misteriosa, que pode ser boa ou má, mas cujas acções e qualidades não influenciam a intensidade da paixão que nos une a ela?
Responde, se sabes responder — diz mais alto e insistente.
— Porque é que perguntas? — replica o outro tranquilamente. — Sabes que é assim.
Percorrem o corredor, cheio de quadros pendurados na parede. A mancha que indica o lugar do retrato da Krisztina, faz parar o general.
— O quadro — diz — já podes voltar a pô-lo no seu lugar.
— Sim — responde a ama.
— Não tem importância — diz o general.
— Eu sei
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário