domingo, 26 de julho de 2020

As velas ardem até ao fim...excertos








 Agora que ultrapassara a primeira  surpresa, sentia-se de repente cansado. Uma  pessoa  prepara-se  para  alguma  coisa  durante  a  vida  inteira.  Primeiro, sente-se ofendido. Depois quer vingança. A seguir, fica à espera. Havia muito que não aguardava.  Já não sabia em que ponto o ressentimento  e o  desejo  de vingança  se  haviam  transformado  em  espera.  Tudo  perdura  no tempo,  mas torna-se  tão  pálido  como  aquelas  fotografias  muito  antigas  que  ainda  foram fixadas  em  chapas  metálicas.


O  palácio  encerrava  tudo,  como  um  grande  túmulo  ornamentado, talhado  em  pedra,  em  que  ossos  de  gerações  se  deterioravam,  onde  se desfaziam  vestidos  fúnebres  de  mulheres  e  homens  de  outros  tempos,  de seda  cinzenta  ou  de  pano  negro.  Encerrava  em  si  também  o  silêncio,  como um  preso  religioso  que  apodrece  desmaiado  na  palha  pútrida,  numa masmorra,  de  barba  comprida,  esfarrapado  e  coberto  de  bolor.  E  encerrava  a memória,  a  memória  dos  mortos  que  se  ocultavam  nos  recantos  ocos  dos quartos,  como  se  ocultam  os  fungos,  a  humidade,  os  morcegos,  as  ratazanas e  os  insectos  nas  caves  húmidas  das  casas  muito  velhas.  Sentia-se  nos puxadores  das  portas  o  tremor  duma  mão,  a  emoção  dum  momento  passado quando  a  mão  hesitava  em  puxar  essa  maçaneta.  Todas  as  casas  onde  a paixão  tocou  as  pessoas  com  a  sua  força  arrebatadora  se  enchem  desse conteúdo  obscuro.


É  esse  o  sentido  do  amor  e  da  amizade.  A  amizade  deles  era  tão séria  e  silenciosa,  como  todos  os  grandes  sentimentos  que  duram  uma  vida inteira. E tal como todos os grandes sentimentos, continha também um certo pudor  e  sentimento  de  culpa.  Uma  pessoa  não  pode  apropriar-se impunemente de outra, separando-a das restantes.


A  educação  que  trazia  no  sangue  da  casa,  da  floresta,  de  Paris  e  da sensibilidade  da  mãe,  impunha-lhe  que  uma  pessoa  nunca  falasse  daquilo que  o  afligia,  antes  suportasse  tudo  em  silêncio.  O  mais  sensato  era  não  falar de  todo,  assim  lhe  ensinaram.  Mas  não  conseguia  viver  sem  afecto,  e  isso também  fazia  parte  da  herança.


Uma  pessoa  sabe  sempre  a  verdade,  essa  outra  verdade  que  é  oculta pelas  representações,  pelas  máscaras  e  pelas  circunstâncias  da  vida. 


Em todos os poderes humanos existe um  ligeiro,  delicado  e  quase  imperceptível  desprezo  por  aqueles  que dominamos.  Só  podemos  dominar  inteiramente  almas  humanas,  se conhecemos,  compreendemos  e  desprezamos  muito  discretamente  aqueles que  são  forçados  a  render-se.


Essas  mulheres traziam  para  as  suas  vidas  o  encanto  dos  primeiros  amores  e  tudo  aquilo  que o  amor  significava:  o  desejo,  os  ciúmes  e  a  solidão  desconcertada.  Mas  atrás das  mulheres,  das  representações  e  do  mundo,  oscilava  um  sentimento  que era mais  forte que  todos  os outros.  Só  os homens  conhecem  esse sentimento. Chama-se amizade.



— Era bom  saber —  continua, como se  discutisse consigo próprio  —, se existe  amizade  realmente?  Não  me  refiro  àquele  prazer  ocasional  que  faz com  que  duas  pessoas  fiquem  contentes  porque  se  encontraram,  porque num determinado período  das suas  vidas pensavam  da mesma  maneira  sobre certas questões,  porque  os  seus  gostos  são  semelhantes  e  os  seus  passatempos iguais.  Nada  disso  é  amizade.  Às  vezes,  chego  a  pensar  que  essa  é  a  relação mais  forte  na  vida...  talvez  por  isso  seja  tão  rara.  E  o  que  há  no  seu  fundo? Simpatia?  É  uma  palavra  imprópria,  sem  sentido,  o  seu  conteúdo  não  pode ser  suficientemente  forte  para  que  duas  pessoas  intervenham  em  defesa  um do outro  nas  situações  mais  críticas  da  vida...  apenas  por  simpatia?  Talvez seja  outra  coisa?...  Talvez  exista  uma  pitada  de  Eros  no  fundo  de  todas  as relações  humanas?  (...)  O  Eros  da  amizade  não  precisa  do  corpo...  longe disso,  incomoda  mais  do  que  o  excita.  Porém,  não  deixa  de  ser  Eros.  Eros está  no  fundo  de  todos  os  afectos,  de  todas  as  relações  humanas.  (...) A  amizade,  pensava  eu  —  e  tu,  que andaste mais  pelo mundo  fora,  certamente sabes  mais e  melhor  que eu,  aqui na  minha  solidão  campestre  —,  é  a  relação  humana  mais  nobre  que  pode haver  entre  os  seres  vivos  humanos.  (...) As simpatias  que  vi  nascer  entre  pessoas  diante  dos  meus  olhos,  acabaram sempre  por  se  afogar  nos  pântanos  do  egoísmo  e  da  vaidade. A camaradagem,  o  companheirismo,  às  vezes,  parecem  amizade.  Os  interesses comuns  por  vezes  criam  situações  humanas  que  são  semelhantes  à  amizade. E  as  pessoas  também  fogem  da  solidão,  entrando  em  todo  o  tipo  de intimidades  de  que,  a  maior  parte  das  vezes,  se  arrependem,  mas  durante algum  tempo  podem  estar  convencidas  de  que  essa  intimidade  é  uma espécie  de  amizade.  Naturalmente,  nesses  casos  não  se  trata  de  verdadeira amizade.  Uma  pessoa  imagina  —  e  o  meu  pai  entendia  as  coisas  dessa maneira  —  que  a  amizade  é  um  serviço.  O  amigo,  assim  como  o  namorado, não espera recompensa pelos seus sentimentos. Não quer contrapartidas, não considera  a  pessoa  que  escolheu  para  ser  seu  amigo  como  uma  criatura irreal,  conhece  os  seus  defeitos  e  assim  o  aceita,  com  todas  as  suas consequências.  Isso  seria  o  ideal.  E  na  verdade,  vale  a  pena  viver,  ser homem,  sem  esse  ideal?  E  se  um  amigo  falha,  porque  não  é  um  verdadeiro amigo,  podemos  acusá-lo,  culpando  o  seu  carácter,  a  sua  fraqueza?  Quanto vale  aquela  amizade,  em  que  só  amamos  o  outro  pela  sua  virtude,  fidelidade e  perseverança?  Quanto  vale  qualquer  afecto  que  espera  recompensa?  Não seria  nosso  dever  aceitar  o  amigo  infiel  da  mesma  maneira  que  o  amigo abnegado  e  fiel?  Não  seria  isso  o  verdadeiro  conteúdo  de  todas  as  relações humanas,  esse  altruísmo  que  não  quer  nada  e  não  espera  nada, absolutamente  nada  do  outro?  E  quanto  mais  dá,  menos  espera  em  troca?  E se  entrega  ao  outro  toda  a  confiança  duma  juventude,  toda  a  abnegação  da idade  viril  e  finalmente  oferece  a  coisa  mais  preciosa  que  um  ser  humano pode  proporcionar  a  outro  ser  humano,  a  sua  confiança  absoluta,  cega  e apaixonada, e depois se vê confrontado com o facto  de o outro ser infiel e vil, tem  direito  de  se  ofender,  de  exigir  vingança?  E  se  se  ofende  e  grita  por vingança,  era  realmente  amigo,  o  traído  e  abandonado?  Vês,  dediquei-me  a essas  questões  teóricas  quando  fiquei  sozinho.  Naturalmente,  a  solidão  não me  deu  resposta. (...)  E  cada  livro  continha uma  pitada  da  verdade e  cada  recordação  insinuava  que  é  vão  conhecer  a  verdadeira  natureza  das relações  humanas,  porque  nenhum  conhecimento  torna  uma  pessoa  mais sábia.  E  é  por  isso  que  não  temos  o  direito  de  exigir  a  verdade  e  a  fidelidade absolutas  daquela  pessoa  que  um  dia  tínhamos  aceite  como  amigo,  mesmo que os acontecimentos tivessem demonstrado que esse amigo foi infiel.



Porque  existe  a  verdade  baseada  nos  factos. Aconteceu  isto  e  aquilo.  Aconteceu  coisa  e  tal.  Nesse  ou  naquele  momento. Não  é  difícil  averiguar  isso.  Os  factos  falam  por  si,  como  se  costuma  dizer,  a caminho  do  fim  da  vida  todos  os  factos  são  reveladores  e  gritam  mais  alto que os  réus  submetidos  à  tortura.  Afinal, tudo  aconteceu  e  não  podem  existir equívocos.  Mas,  às  vezes,  os  factos  são  apenas  consequências  deploráveis. Uma  pessoa  não  peca  com  aquilo  que  faz,  mas  com  a  intenção,  com  a  qual comete  isto  ou  aquilo.  A  intenção  é  tudo. (...) Uma  pessoa pode  cometer  infidelidade,  um  acto  infame,  sim,  até  o  pior,  pode  matar  e,todavia,  manter-se  puro  por  dentro.  Um  acto  ainda  não  é  equivalente  à verdade.  É  sempre  apenas  uma  consequência,  e  se  um  dia,  uma  pessoa desempenha  o  papel  de  juiz  e  quer  julgar,  não  pode  contentar-se  com  os factos  do relatório  da  polícia,  tem  de  averiguar  aquilo  que  os  juristas chamam  de motivo.  O  facto  da  tua  fuga  é  fácil  de  compreender.  O  motivo  é que não.


E  às  vezes cheguei  a  pensar  que  a  amizade  talvez  seja  uma  ligação  semelhante  à  união fatal  dos  gémeos.  Uma  identidade  singular  da  inclinação,  da  simpatia,  do gosto, da cultura e da paixão une duas  pessoas ao mesmo destino. Faça o que fizer  um  deles  contra  o  outro,  os  seus  destinos  são  comuns.  É  inútil  que  um deles  fuja  do  outro,  porque  sabem  tudo,  que  é  essencial,  um  do  outro.


Afinal,  uma  pessoa  sempre responde  com  a  sua  vida  inteira  às  perguntas  mais  importantes.  Não  importa o que  diz  entretanto,  com que  palavras  e  argumentos  se defende.  No  fim,  no fim  de  tudo,  com  os  factos  da  sua  vida  responde  às  perguntas  que  o  mundo lhe  dirigiu  com  tanta  insistência.  Essas  perguntas  são  as  seguintes:  Quem  és tu?...  Que  querias  realmente?...  Que  sabias  realmente?...  A  que  foste  fiel  ou infiel?...  A  quê  ou  a  quem  mostraste  ser  corajoso  ou  cobarde?...  São  essas  as perguntas.  E  uma  pessoa  responde  como  pode,  duma  maneira  sincera  ou mentindo;  mas  isso  não  tem  grande  importância.  O  importante  é  que  no fim,  uma  pessoa  responde  com  toda  a  sua  vida.(...) Uma pessoa  não  sabe muitas  vezes que  palavras  suas ou  actos seus  anunciam fatalmente,  irrevogavelmente  uma  certa  mudança  nas  relações  humanas.


Aquela foi a última vez que fui à caça na minha floresta. (...)Não  conhecias  aquela paixão singular, a  mais  secreta  paixão  da  vida  do  homem  que,  atrás  de  todas  as representações,(...)vive  nos  nervos  de  cada  homem,  tão profundamente,  como  o  fogo  eterno  no  âmago  da  terra.  Essa  paixão  é  o desejo  de  matar. (...)O  homem  mata  para  defender  algo,  mata para  obter  algo,  mata  para  se  vingar  de  algo. Sorris  com  desprezo? Eras  um  artista,  esses  instintos  baixos  e  brutais  refinaram-se  na  tua  alma?(...) a caça  ainda  representa  um  sacrifício,  um  vestígio  deformado  e  ritual  dum acto  religioso  ancestral  que  é  dos  tempos  do  nascimento  do  homem.  Porque não é verdade que o caçador mata para obter a presa.  A  caça  era  sempre  acompanhada  por um  ritual,  ritual  tribal  e  religioso.  O  bom  caçador  era  sempre  o  primeiro homem  da  tribo,  uma  espécie  de  sacerdote.  Naturalmente,  tudo  isso  se desvaneceu  com  o  passar  do  tempo. Mas  os  rituais, permaneceram. (...) Mas  o  sangue  é  sujidade?...  Não  creio.  É  a substância mais nobre que existe no mundo e  quando o homem queria dizer ao  seu  Deus  algo  importante,  algo  inexprimível,  fazia-o  sempre  oferecendo um  sacrifício  de  sangue. O  animal  pára, não  vê,  não  cheira  nada,  porque  o  vento  sopra  de  frente,  porém  sabe  que  o seu destino é iminente; ergue a cabeça, vira o pescoço tenro, o seu corpo fica tenso,  durante  alguns  instantes  mantém-se  diante  de  ti,  numa  postura magnífica,  imóvel,  como  um  homem  que  estaca  desamparado  perante  o  seu destino,  impotente,  porque  sabe  que  o  destino  não  é  fortuito,  nem  um acidente,  mas  a  consequência  natural  de  circunstâncias  correlacionadas, imprevisíveis  e  dificilmente  inteligíveis. Tu  também  te  deténs,  no  meio  da  folhagem densa,  estás  dependente  nesse  instante,  tu,  o  caçador.  E  sentes  na  mão  o tremor  que  é  tão  antigo  como  o  homem,  a  disposição  para  matar,  essa atracção  proibida,  a  paixão  que  é  mais  forte  que  tudo  o  resto,  o  impulso  que não  é  bom,  nem  é  mau,  mas  é  um  dos  impulsos  secretos  da  vida:  ser  mais forte  que  o  outro,  mais  hábil,  ser  um  mestre,  não  falhar. O  mesmo  sentiste  tu,  talvez  pela  primeira vez na  tua vida,  no posto  de vigia,  na floresta, quando  levantaste a  tua arma  e apontaste para me matar.


Era  o  momento  em  que  a  noite  se  separa  do  dia,  o mundo de  baixo do  mundo de  cima.  E talvez  haja outras  coisas que  também se  separam  nesses  momentos.  É  o  último  segundo  em  que  a  profundidade  e a  altura,  a  luz  e  a  escuridão,  tanto  universal  como  humana,  ainda  se  tocam, em  que  os  que  dormem  despertam  em  sobressalto  dos  seus  sonhos  pesados  e angustiantes,  os  doentes  suspiram  de  alívio,  porque  sentem  que  o  inferno  da noite  acabou  e  dará  lugar  a  um  sofrimento  mais  ordenado;  a  luz  e  a regularidade  do  dia  revela  e  separa  tudo  que  no  caos  obscuro  da  noite  era um  desejo  convulsivo,  uma  ansiedade  secreta,  uma  paixão  delirante.  Os caçadores e  os animais  selvagens  gostam desse  momento. Já  não  é noite,  mas ainda  não  é  dia.  O  perfume  da  floresta  está  tão  vivo  e  selvagem  nesse instante,  como  se  todos  os  seres  vivos  começassem  a  despertar  no  grande dormitório  do  mundo,  como  se  exalassem  os  seus  segredos  e  suspiros maldosos,  as  plantas,  os  animais  e  também  os  seres  humanos. (...)  É  um  momento  misterioso,  os antigos,  os  pagãos  celebraram-no  nas  profundezas  da  floresta,  com  devoção,com  braços  abertos  e  com  o  rosto  virado  para  Oriente,  naquela  expectativa mágica, em que o homem, atado à matéria, anseia eternamente no coração e no  mundo  pelo  momento  da  chegada  da  luz,  ou  seja,  da  razão  e  da compreensão. (...)   A  noite  ainda  está  viva no  fundo  da  floresta:  a  noite  e  tudo que  esta  palavra  significa,  com  a  consciência  da  presa,  do  amor,  do  vaguear, do  prazer  de  viver  desinteressado  e  da  luta  pela  sobrevivência.  É  o  momento em  que  não  apenas  nas  profundidades  da  floresta,  mas  também  na obscuridade  dos  corações  humanos  acontece  algo.  Porque  os  corações humanos  também  têm  as  suas  noites,  cheios  de  emoções  tão  selvagens, como  os  impulsos  da  caça  que  assaltam  o  coração  do  veado  ou  do  lobo.  O sonho,  o  desejo,  a  vaidade,  o  egoísmo,  a  ira  lasciva  do  macho,  a  inveja,  a vingança,  essas  paixões  ocultam-se  de  tal  modo  na  noite  da  alma  humana, como  o  puma,  o  abutre  e  o  chacal  no  deserto  da  noite  do  Oriente.  Existem momentos  em  que  já  não  é  noite  e  ainda  não  é  dia  no  coração  humano, quando  as  feras  saem  dos  esconderijos  sombrios  da  alma,  quando  estremece no  nosso  coração  e  se  transforma  em  movimento  na  nossa  mão  uma  paixão que  formámos  e  domesticámos  em  vão  durante  anos,  às  vezes,  durante muito  tempo...  E  tudo  foi  em  vão,  negámos  desesperadamente,  perante  nós próprios,  o  sentido  verdadeiro  dessa  paixão:  o  conteúdo  real  da  paixão  era mais  forte  que  as  nossas  intenções,  não  se  derreteu,  ficou  sólido.  No  fundo de  cada  relação  humana  existe  uma  matéria  palpável  e,  por  muitos  que sejam  os  argumentos  e  habilidades,  essa  realidade  não  muda.  A  realidade simplesmente  era  que  tu  me  odiavas  durante  vinte  e  dois  anos,  com  aquela paixão,  cujo  ardor  faz  lembrar  o  das  relações  mais  intensas  —  sim,  do  amor. Odiavas-me, e  quando  um  sentimento,  uma  paixão  se  apodera  por  inteiro  da alma  humana,  ao  lado  do  entusiasmo  sempre  arde  abafado  também  o  desejo de  vingança  no  fundo  dessa  fogueira...  Porque  a  paixão  não  argumenta  com palavras  da  razão.  Para  a  paixão  é  completamente  indiferente  aquilo  que recebe  do  outro,  quer  exprimir-se  por  inteiro,  quer  transmitir  a  sua  vontade, mesmo que se não receba em  troca mais do que sentimentos ternos, cortesia, amizade  ou  paciência.  Todas  as  grandes  paixões  são  sem  esperança,  de outra forma não seriam paixões, apenas  acordos, compromissos razoáveis, trocas de interesses  banais.  Odiavas-me  e  esse  ódio  era  um  laço  tão  forte  como  se  me tivesses  amado.  Porque  é  que  me  odiavas?...  Tinha  tempo  suficiente,  queria perceber  esse  sentimento. (...) Odiavas-me desde  a  nossa  infância,  desde  o  primeiro  momento  em  que  te  conheci, naquela  escola  singular,  onde  melhoravam  e  adestravam  os  exemplares escolhidos do mundo que nós conhecemos, odiavas-me porque eu tinha algo que  a  ti  faltava. (...) Mas no  fundo da  tua alma escondia-se uma  emoção  compulsiva  —  o  desejo  de  ser  diferente  daquilo  que  eras.  É  a maior  tragédia,  com  que  o  destino  pode  castigar  o  homem.  O  desejo  de  ser outro, diferente  daquilo que  somos:  não  pode arder  um  desejo mais  doloroso no coração humano.



Temos  de suportar  o  nosso  carácter,  o  nosso  temperamento,  já  que  os  seus  defeitos, egoísmos  e  avidez,  não  os  mudam  nem  a  experiência,  nem  a  compreensão.Temos  de  suportar  que  os  nossos  desejos  não  tenham  plena  repercussão  no mundo.  Temos  de  suportar  que  as  pessoas  que  amamos,  não  nos  amem,  ou que  não  nos  amem  como  gostaríamos.  Temos  de  suportar  a  traição  e  a infidelidade, e o que é o mais difícil entre todas as tarefas humanas, temos de suportar  a  superioridade  moral  ou  intelectual  de  uma  outra  pessoa.



Éramos  crianças  e éramos  amigos:  isso  é  uma  grande  dádiva,  devemos  agradecer  ao  destino  por tê-la  desfrutado.  Mas  depois  formou-se  o  teu  carácter  e  não  foste  capaz  de suportar  que  te  faltasse  algo  que  a  mim  foi  dado,  graças  às  minhas  origens,  à minha  educação,  uma  espécie  de  dom  divino...  Qual  era  essa  habilidade? Tratava-se  de  habilidade?  Era  simplesmente  que  o  mundo  olhava  para  ti com  indiferença,  às  vezes  com  hostilidade,  mas  a  mim,  as  pessoas  ofereciam sorrisos  e  confiança.  Tu  desprezavas  essa  confiança  e  amizade  que  o  mundo me  proporcionava,  desprezavas  e,  ao  mesmo  tempo,  estavas  a  morrer  de ciúmes.  Provavelmente  imaginavas  —  não  de  uma  maneira  explícita, naturalmente,  mas  através  de  sentimentos  obscuros,  que  uma  pessoa  que  é amada  e  amimada  pelo  mundo,  tivesse  algo  de  prostituta.  Há  pessoas  de quem  toda  a  gente  gosta,  para  quem  todos  reservam  um  sorriso  benévolo  e carinhoso,  e  essas  pessoas  realmente  têm  algo  de  vanglorioso,  algo  de prostituta.  Como  vês,  já  não  tenho  medo  das  palavras  —  diz  e  sorri,  como  se quisesse  encorajar  o  outro  a  não  ter  também  medo.  —  Na  solidão,  uma pessoa  chega  a  conhecer  tudo  e  já  não  tem  medo  de  nada.  As  pessoas,  em cuja  testa  se  reflecte  o  sinal  divino  que  mostra  que  são  protegidas  pelos deuses,  sentem-se  realmente  seres  escolhidos  e,  na  maneira  como  se apresentam perante o mundo, há uma certa  segurança vaidosa. Mas se tu me vias  assim,  estavas  enganado.  Apenas  os  ciúmes  podiam  distorcer  a  minha imagem  dessa  maneira.  Não  se  trata  de  me  defender,  porque  quero  saber  a verdade,  e  quem  procura  a  verdade,  só  pode  começar  a  busca  dentro  de  si. Aquilo  que  tu  sentias  em  mim  e  em  torno  de  mim,  como  uma  graça  e  uma dádiva  divina,  não  era  outra  coisa,  apenas  boa  fé. Talvez  essa  boa  fé  incentivasse  as  pessoas  a  revelar-me  os  seus  sentimentos,  a mostrar-me  benevolência,  sorriso  e  confiança. E  realmente, durante  aquela  década  em  que,  depois  de  terminar  a  escola  em  Viena, servimos no exército, nem por um momento me abandonou o sentimento da segurança,  a  sensação  que  os  deuses  me  tinham  colocado  um  anel  de  sorte secreto,  invisível,  e  não  me  podia  acontecer  nenhum  mal,  porque  estava rodeado  de  sentimentos  de  amor  e  de  confiança.  Isso  é  o  máximo  que  um homem  pode  obter  da  vida  —  diz  seriamente.  —  É  a  maior  graça.  Quem nestas  circunstâncias  se  torna  presunçoso,  arrogante  ou  altivo,  quem  não  é capaz  de  suportar  com  humildade  a  predilecção  do  destino,  quem  não  sabe que  esse  estado  de  graça  dura  apenas  até  não  desperdiçarmos  a  dádiva  dos deuses,  sucumbe.  O  mundo  só  perdoa  momentaneamente,  àqueles  que  são modestos e  humildes  de  coração...


Quando  a  juventude  ia  desaparecendo,  quando  a  magia  da  infância acabou,  a  nossa  relação  começou  a  arrefecer.  Não  há  processo  emocional mais  triste  e  mais  desesperado  que  quando  uma  amizade  entre  dois  homens arrefece.  Porque  entre  um  homem  e  uma  mulher  tudo  tem  determinadas condições,  como  o  regateio  no  mercado.  Mas  o  sentido  mais  profundo  da amizade  entre  homens  é  precisamente  o  altruísmo,  o  facto  de  não querermos  o  sacrifício  do  outro,  nem  ternura,  não  querermos  nada,  apenas manter  o  acordo  duma  aliança  silenciosa.  Talvez  fosse  eu  quem cometeu um erro,  porque  não  te  conhecia  suficientemente.  Conformei-me  com  o não  me  revelares  tudo  de  ti,  respeitava  a  tua  inteligência,  aquela superioridade  singular  e  amarga  que  emanava  do  teu  ser,  acreditava  que  tu também me  perdoavas,  como  o  mundo,  por  ter  uma  certa capacidade  de  me aproximar  das  pessoas  com  facilidade  e  com  serenidade,  de  ser  amado  ali,onde  tu  eras  apenas  tolerado  —  que  me  perdoavas  o  poder  tratar  o  mundo por  tu.  Pensava  que  ficasses  contente  com  isso.  A  nossa  amizade  era  como  a amizade  dos  homens  nas  lendas  antigas.  E  enquanto  eu  andava  nos caminhos  mais  ensolarados,  tu  permanecias  na  sombra  deliberadamente.Não sei se sentes o mesmo?...
— Estavas a falar sobre a caça — diz o convidado evasivo.
—  Sim,  sobre  a  caça  —  responde  o  general.  —  Mas  tudo  isso  tem  a  ver com  a  caça.  Quando  uma  pessoa  quer  matar  outra,  naturalmente  muitas coisas  aconteceram  antes,  não  só  o  acto  de  essa  pessoa  carregar  e  depois apontar a sua  arma. Antes sucedeu  também aquilo de  que eu falava,  que não me  podias perdoar,  que  a  nossa  relação  que  se  tinha  formado  nas  águas profundas  da  infância,  de  um  modo  tão  complexo  e  tenaz,  como  se  os  dois rapazes  tivessem  sido  embalados  nas  folhas  gigantes  das  rosas  dos  contos  de fadas,  no  berço  sonhado  das  pétalas  de  Victoria  regia,  —  não  sei  se  te lembras  que  criava  aqui,  na  estufa,  essa  planta  gavinhosa,  misteriosa,  que floresce  apenas  uma  vez  por  ano,  essa  relação  um  dia  deteriorou-se.  O  tempo mágico  da  infância  acabou  e  ficaram  dois  homens,  unidos  por  laços  de  uma relação  meticulosa  e  misteriosa  que  se  chamava,  em  linguagem  comum, amizade.  Também  devemos  saber  isso  antes  de  falarmos  sobre  a  caça. Porque  o  momento  em  que  se  é  mais  culpado,  não  é  necessariamente aquele  em  que  se  levanta  a  arma  para  matar  alguém.  A  culpa  existe  antes,  a culpa  reside  na  intenção.  E  quando  digo  que  essa  amizade  um  dia  se deteriorou,  tenho  de  saber  se  se  deteriorou  realmente  e  se  a  resposta  é  sim, que  e  quem  a  deteriorou.  Porque  éramos  diferentes,  porém  estávamos unidos,  eu  era  diferente  de  ti,  mas  completávamo-nos  bem,  formávamos uma  aliança,  um  acordo  humano,  e  isso  é  muito  raro  na  vida. 



Éramos  amigos,  não  companheiros,  compadres,  ou  camaradas.  Éramos amigos  e  não  há  nada  na  vida  que  possa  compensar  uma  amizade.  Nem mesmo  uma  paixão  devoradora  pode  oferecer  tanto  prazer  como  uma amizade  silenciosa  e  discreta  proporciona  àqueles  que  são  tocados  pela  sua força.  Porque  se  nós  não  fôssemos  amigos,  não  terias  apontado  a  tua  arma contra  mim  naquela  manhã,  na  floresta,  durante  a  caça.  E  se  não  fôssemos amigos,  eu  não  teria  ido  à  tua  casa  no  dia  seguinte,  aonde  nunca  me  tinhas convidado,  onde  guardavas  o  teu  segredo,  um  segredo  maléfico  e incompreensível  que  envenenou  a  nossa  amizade.  E  se  não  fosses  meu amigo,  não  terias  fugido  no  dia  seguinte  desta  cidade,  da  minha proximidade,  do  local  do  crime,  como  os  assassinos  e  os  malfeitores,  mas terias  ficado  aqui,  ter-me-ias  enganado  e  traído,  e  isso  talvez  me  tivesse causado  dor,  talvez  tivesse  ferido  a  minha  vaidade  e  o  meu  orgulho,  mas tudo  isso  não  teria  sido  tão  grave  como  aquilo  que  fizeste,  porque  eras  meu amigo.  E  se  não  fôssemos  amigos,  tu  não  terias  regressado  quarenta  e  um anos  depois,  outra  vez  como  assassino  e  malfeitor  que  volta  furtivamente  ao local  do  crime.  Porque  tinhas  de  regressar,  como  vês.  E  agora  tenho  de  te dizer  algo  de  que  me  dei  conta  só  pouco  a  pouco,  não  acreditava  nisso, negava  diante  de  mim  mesmo,  tenho  de  te  confessar  essa  surpresa  e revelação  terrível:  tu  e  eu  ainda  continuamos  a  ser  amigos.  Parece  que nenhuma  força  exterior  pode  mudar  as  relações  humanas.  Tu  mataste  algo em  mim,  destruíste  a  minha  vida  e  eu  continuo  a  ser  teu  amigo.  E  hoje  à noite,  eu  mato  algo  em  ti,  depois  deixo-te  voltar  a  Londres,  aos  trópicos,  ou ao  inferno  e  continuas  a  ser  meu  amigo.  Temos  de  saber  isso  também,  antes de  falarmos  da  caça  e  de  tudo  aquilo  que  se  seguiu.  Porque  a  amizade  não  é um  estado  de  espírito  ideal.  A  amizade  é  uma  lei  humana  rigorosa.  Na antiguidade era a lei do mais forte, nela  se baseavam os sistemas jurídicos das grandes  civilizações.  Para  além  das  paixões  e  do  egoísmo  vivia  essa  lei,  a  lei da  amizade,  nos  corações  humanos.  Era  mais  poderosa  que  a  paixão  que persegue  os  homens  e  as  mulheres  com  uma  força  desesperada,  para  se unirem,  a  amizade  não  podia  levar  à  desilusão,  porque  não  queria  nada  do outro,  podia-se  matar  o  amigo,  mas  a  amizade  que  se  formou  na  infância entre  duas  pessoas,  talvez  nem  a  morte  a  pudesse  matar:  a  sua  recordação continua  a  viver  na  consciência  das  pessoas,  como  a  recordação  dum  acto heróico  silencioso.  E  realmente,  é  um  acto  heróico,  no  sentido  fatal  e  tácito da  palavra,  sem  o  embate  de  sabres  e  espadas,  um  acto  heróico,  como qualquer  atitude  humana  que  é  desinteressada.  Era  essa  amizade  que  existia entre  nós,  e  tu  sabias  isso  bem.  E  naquele  momento  em  que  levantaste  a arma  para  me  matar,  essa  amizade  talvez  fosse  mais  intensa  que  a  qualquer altura,  durante  os  vinte  e  dois  anos  da  nossa  juventude.  Lembras-te certamente do  momento, porque  isso tem  sido o  sentido  e o  conteúdo para  o resto  da  tua  vida.



Quando  o  destino,  numa forma  qualquer,  se  dirige  directamente  a  nós,  quase  nos  chama  pelo  nosso nome,  no  fundo  da  ansiedade  e  do  medo  sempre  irradia  uma  certa  atracção, porque  o  homem  não  quer  só  viver  a  todo  o  custo,  não,  o  homem  quer conhecer  e  aceitar  o  seu  destino  por  completo  e  a  todo  o  custo,  até  à  custa do perigo e da destruição.


Percebo  e  sinto  aquilo  que  tinha acontecido  nesse  dia:  a  minha  vida  tinha-se  partido  em  dois,  como  uma paisagem  rasgada  por  um  terramoto  —  de  um  lado  ficou  a  infância,  tu  e tudo  aquilo  que  a  vida  passada  significava;  do  outro  lado  começa  aquele território  obscuro  e  imenso  que  tenho  de  percorrer,  o  tempo  que  me  resta para  viver.  E  as  duas  partes  da  minha  vida  já  não  se  tocam.


O  que  é  que  se  pode perguntar  das  pessoas,  com  palavras?  O  que  vale  a  resposta  que  uma  pessoa dá  com  palavras  e  não  com  a  realidade  da  sua  vida?...  Vale  pouco  —  diz com  determinação.  —  São  poucas  as  pessoas  cujas  palavras  correspondem por  completo  à  realidade  das  suas  vidas.  Talvez  seja  esse  o  fenómeno  mais raro  na  vida.  Na  altura,  ainda  não  o  sabia. Agora  não  me  refiro  aos mentirosos,  aos  safados.  Só  penso  que  conhecer  a  verdade,  adquirir experiências,  de  nada  serve,  porque  ninguém  consegue  mudar  o  seu carácter. Talvez  não se  possa fazer  mais nada  na  vida que  adaptar à  realidade com  inteligência  e  cautela  a essa  outra  realidade  inalterável,  o  carácter pessoal.  É  a  única  coisa  que  podemos  fazer.  E  mesmo  assim,  não  seríamos mais  sábios,  nem  mais  protegidos...


Cada  um  gera  também  aquilo  que  acontece  consigo.  Gera-o,  invoca-o,  não  deixa  de  escapar  àquilo  que  tem  de  acontecer.  O  homem  é assim.  Fá-lo,  mesmo  que  saiba  e  sinta  logo,  desde  o  primeiro  momento,  que tudo  o  que  faz  é  fatal.  O  homem  e  o  seu  destino  seguram-se  um  ao  outro, evocam-se  e  criam-se  mutuamente.  Não  é  verdade  que  o  destino  entre  cego na  nossa  vida,  não.  O  destino  entra  pela  porta  que  nós  mesmos abrimos, convidando-o a passar. Não há nenhum ser  humano que seja bastante forte e inteligente  para  desviar  com  palavras  ou  com  acções  o  destino  fatal  que advém, segundo leis irrevogáveis, da sua natureza, do  seu carácter.



Muito  tempo  e  muitas  horas  solitárias  ensinam-me  que  se  trata sempre  disso,  relações  entre  homem  e  mulher,  amizades,  relações mundanas,  tudo  depende  disso:  das  diferenças  que  dividem  a  humanidade em  dois  grupos.  Às  vezes  penso  que  só  existem  esses  dois  grupos  no  mundo, e  todas  as  variantes  da  sua  diversidade,  as  diferenças  de  classe  social,  de ideologia  e  de  graus  do  poder,  tudo  advém  dessa  diversidade. E,  tal  como apenas  as  pessoas  do  mesmo  grupo  sanguíneo  podem  ajudar-se  nos momentos  do  perigo,  ao  dar  o  seu  sangue  a  alguém  que  pertence  ao  mesmo grupo,  assim  a  alma  humana  só  pode  ajudar  outra  alma  humana,  se  não  for “diferente”,  se  o  seu  ponto  de  vista,  a  sua  realidade  mais  secreta  que  a  sua convicção,  forem  semelhantes. Lembrei-me  das  palavras  do  meu  pai, que  não  lia  livros,  mas  a  quem  a  solidão  e  a  vida  tinham  ensinado  a conhecer  a  verdade;  ele  sabia  dessa  diversidade,  sim,  ele  também  tinha encontrado  uma  mulher  a  quem  amava  muito,  a  cujo  lado,  porém,  se  sentia sozinho,  porque  eram  duas  pessoas  diferentes,  dois  temperamentos,  dois ritmos  de  vida  distintos,  porque  a  minha  mãe  também  era  “diferente”,  como tu,  como  a  Krisztina...O sentimento  que  me  unia  a  minha  mãe,  a  ti  e  à  Krisztina,  era  o  mesmo:  a mesma saudade, a mesma esperança incessante, a mesma vontade impotente e  triste.  Porque  amamos  sempre  a  pessoa  “diferente”,  procuramo-la  em  todas as  situações e  variantes  da  vida...  sabes?  O  maior  segredo  e  a  maior  dádiva  da vida, é quando duas pessoas “semelhantes” se encontram. Isso  é tão raro, como se  a  natureza  impedisse  com  força  e  astúcia  essa  harmonia  —  talvez  porque para  a  criação  do  mundo  e  para  a  renovação  da  vida  necessita  da  tensão  que se  gera  entre  as  pessoas  que  se  procuram  eternamente,  mas  que  têm intenções  e  ritmos  de  vida  opostos.  Sabes,  corrente  alterna...  onde  quer  que olhes,  lá  está  essa  troca  de  forças  positivas  e  negativas.
Quanto  desespero, quanta  esperança  cega  existe  atrás  dessa  tal  diversidade!



Ouvia  a voz  do  meu  pai  e  percebi  que  o  seu  destino  continua  em  mim,  que  tenho o  mesmo  carácter  com  os  mesmos  gostos  que  ele  tinha,  a  minha  mãe,  tu  e  a Krisztina  estão  na  outra  margem,  todos  têm  um  papel  diferente,  a  mãe,  o amigo,  a  amante  e  esposa,  todavia  todos  desempenham  o  mesmo  papel  na minha  vida.  Estão  na  outra  margem,  sim,  aonde  nunca  consigo  chegar...Podes  alcançar  tudo  na  vida,  podes  vencer  tudo  à  tua  volta  e  no  mundo,  a vida  pode  oferecer-te  tudo,  e  podes  tirar  tudo  da  vida:  mas  nunca podes mudar os  gostos,  as  inclinações,  o  ritmo  da  vida  duma  pessoa,  aquela diferença  que  caracteriza  por  completo  uma  pessoa,  a  pessoa  que  é importante  para  ti,  que  te  interessa. Não se pode fazer nada contra as leis do carácter humano, nunca.


Era  como  os  animais selvagens: a educação  cuidadosa, o convento  das freiras, a  cultura e  a ternura do  pai,  tudo  isso  contribuiu  para  amansar  as  suas  maneiras.  A  Krisztina  era selvagem  por  dentro,  indomável:  tudo  o  que  lhe  dei,  a  riqueza  e  a  posição social,  não  tinham  verdadeiro  valor  para  ela,  e  dessa  independência  interior e  exigência  de  liberdade,  que  era  o  verdadeiro  conteúdo  do  seu  ser  e  do  seu carácter,  não  queria  entregar  nada  ao  mundo,  onde  a  conduzia...  O  seu orgulho  também  era  diferente  do  daqueles  que  têm  orgulho  das  suas posições,  das  suas  origens,  das  suas  riquezas,  das  suas  situações  sociais,  ou  de algum  talento  particular  e  individual.  A  Krisztina  tinha  orgulho  daquela qualidade  selvagem  e  nobre  que  vivia  no  seu  coração  e  nos  seus  nervos, como  uma  espécie  de  veneno  e  uma  herança.  Era  —  como  sabes  bem  —, uma  pessoa  soberana  por  dentro,  e  isso  é  muito  raro  hoje;  ser  independente, tanto em mulheres como em homens, é  uma qualidade rara. Parece que não é  uma  questão  de  origem  e  de  situação. Não  era  possível  ofendê-la,  ou colocá-la  numa  situação  que  a  embaraçasse,  não  suportava  as  limitações,  em nenhum  sentido.  E  ainda  sabia  algo  mais  que  é  raro  num  carácter  feminino: conhecia  a  responsabilidade  dos  seus  próprios  valores  humanos. Trouxe também a  paixão, o  orgulho, a  consciência soberana  dos sentimentos incondicionais.  Nunca  conheci  nenhuma  outra  pessoa  que  fosse  capaz  de responder  tão  plenamente  a  tudo  o  que  o  mundo  e  a  vida  lhe  ofereciam:  à música,  a  um  passeio  na  floresta  matinal,  à  cor  e  ao  perfume  duma  flor,  à palavra  sábia  e  justa  duma  pessoa.  Não  conheci  ninguém  que fosse  capaz  de  se  alegrar  com  as  coisas  mais  pequenas  da  vida,  como  ela: pessoas  e  animais,  estrelas  e  livros,  interessava-lhe  tudo,  sem  ser  presunçosa, nem  se  armar  em  sabichona,  mas  aproximava-se  de  tudo  o  que  a  vida  lhe dava  e  mostrava,  com  a  alegria  incondicional  duma  criatura  que  veio  ao mundo  para  desfrutá-lo.  Como  se  tivesse  uma  ligação  íntima  com  todos  os fenómenos  do  mundo,  percebes?...  Sim,  de  certeza  que  percebes.  Nessa proximidade  imparcial  havia  também  humildade,  como  se  sentisse constantemente  que  a  vida  é  uma  grande  dádiva  e  uma  graça.



Aquilo  que  aconteceu,  ou  poderia  ter  acontecido?...  Tudo  isso  seria vergonhoso, indigno de  ti e de  mim, indigno  das memórias da  nossa infância e  amizade.  Talvez  fosse  um  alívio  para  ti  contar  tudo  que  era  possível  contar com  factos.  Não  quero  que  sintas  alívio  —  diz  tranquilamente.  Quero  a verdade,  e  a  verdade  para  mim  já  não  são  alguns  factos  policiais  poeirentos  e decrépitos,  os  segredos  de  paixões  e  equívocos  antigos  dum  corpo  de  uma mulher,  morto  e  reduzido  a  pó...  que  importância  tem  tudo  isso  para  nós, para  marido  e  amante,  agora  que  esse  corpo  já  não  existe,  e  nós  somos velhos, discutimos mais uma vez algumas  questões, tentamos saber a verdade e  depois  caminhamos  para  a  morte...Que importa,  no  fim da  vida,  a  verdade e  a  mentira,  o engano,  a  traição, a tentativa de homicídio ou mesmo o  homicídio, que importa, onde, quando e  quantas  vezes  me  enganou  contigo,  com  o  meu  melhor  amigo,  a  minha mulher,  o  único  e  grande  amor  e  esperança  da  minha  vida,  Krisztina?...Contarias  essa  verdade  triste  e  miserável,  confessarias  tudo,  contarias exactamente  como  começou,  que  ciúmes  e  inveja,  medo  e  tristeza  os empurrou  para  os  braços  um  do  outro,  que  sentias  quando  a  abraçavas,  que sentimentos  de  vingança  e  de  culpa  atormentava  o  corpo  e  a  alma  da Krisztina nesses anos... que  importa isso? Afinal,  tudo é tão  simples —  tudo o que  foi  e  o  que  poderia  ter  sido.  Tudo  o  que  outrora  eram  factos,  tornam-se em  pó  e  cinzas.  Aquilo  que  queimava  os  nossos  corações  de  tal  maneira  que pensávamos  que  não  podíamos  suportá-lo,  que  morríamos  ou  matávamos alguém, tudo  isso  se  torna  em  pó, menos  consistente  que o  pó  que  o  vento  levanta  e  arrasta  sobre  os  cemitérios.  Seria  uma  vergonha  e absurdo falar  disso.  De  resto,  sei  tudo  tão exactamente,  como  se  um  relatório policial  apresentasse  todos  os  pormenores.  Poderia  contar-te  todo  o  processo, como o  procurador  no tribunal:  que será  depois?...  Que posso  fazer com  essa verdade  trivial,  com  os  segredos  dum  corpo  que  já  não  existe? Que  significa fidelidade,  que  é  que  podemos  esperar  da  pessoa  que  amamos?  Estou  velho, reflecti  muito  sobre  isso.  A  fidelidade  não  será  um  egoísmo  terrível,  egoísmo e  vaidade,  como  a  maior  parte  das  coisas  e  pretensões  humanas  na  vida? Quando  exigimos  fidelidade,  queremos  que  a  outra  pessoa  seja  feliz?  E  se  a outra pessoa não  é feliz na  prisão subtil da  fidelidade, amamos essa  pessoa de quem exigimos fidelidade? E  se não  amamos o outro  de modo a  fazê-lo feliz, temos o  direito  de  exigir algo,  fidelidade  ou  sacrifício? E  tudo  aquilo  a  que  as  pessoas  chamam “engano”,  essa  rebelião  triste  e  enfadonha  dos  corpos  contra  uma  situação  e contra  uma  terceira  pessoa,  parece  terrivelmente  insignificante,  se  olharmos para  trás  no  fim  da  vida  —  insignificante,  quase  deplorável,  como  um acidente ou um mal-entendido. Quando  alguém  é  jovem,  e  a  sua  mulher  o engana  com  o  seu  único  amigo,  mais  íntimo  que  um  irmão,  naturalmente sente  que  o  mundo  se  desmoronou  à  sua  volta.  Pensa  que  deve  ser  assim, porque  os  ciúmes,  a  decepção,  a  vaidade  podem  causar  uma  dor  tremenda. Mas isso passa...  passa duma  maneira incompreensível, não de  um dia  para o outro,  não,  essa  ira  nem  com  os  anos  se  apazigua  —  mas  finalmente  passa, da  mesma  forma  que  a  vida.


Há algo  pior  que  a  morte  e  o  sofrimento...  quando  uma  pessoa  perde  o  amor-próprio.  Por  isso  tinha  medo  do  segredo,  o  segredo  comum,  de  Krisztina,  de ti  e  de  mim.  Há  algo  que  pode  doer,  ferir  e  queimar  de  tal  maneira  que talvez  nem  a  morte  seja  capaz  de  dissolver  esse  sofrimento:  se  uma  ou  duas pessoas  ferem  aquele  amor-próprio  profundo,  sem  o  qual  não  podemos  viver em  dignidade.  Vaidade,  dirias  tu.  Sim,  vaidade...  porém,  essa  dignidade  é  o conteúdo  mais  profundo  da  vida  humana.  Por  isso  temia  o  segredo.  Por  isso aceitamos qualquer solução, mesmo  uma solução  vil e cobarde. Foi  isso  que  vi.  E  vivi.  Não  é  cobardia  isso,  não...  é  a última  defesa  do  instinto  para  viver.


Se  me  tivesse  pedido  o  divórcio,  eu  tê-lo-ia concedido.  Mas  ela  não  queria  nada.  Porque  ela  também  era  alguém,  à  sua maneira,  à  sua  maneira  feminina,  ela  também  tinha  sido  ferida  por  aqueles que  amava;  um,  porque  fugiu  duma  paixão,  não  quis  queimar-se  numa ligação,  que  sabia  que  era  fatal;  o  outro,  porque  soube  a  verdade,  esperou  e guardou  silêncio.  A  Krisztina  também  tinha  carácter,  num  sentido  diferente daquele  em  que  nós,  homens,  interpretamos  a  palavra.  A  ela  também aconteceu  algo  nesses  anos,  não  só  a  ti  e  a  mim.  O  destino  tinha-nos  tocado e  tinha-se  cumprido,  e  nós  três  suportámos  esse  destino.



E hoje percebi com a razão, o que já percebi  há  muito tempo  com  o  coração: a  infidelidade  e o  engano,  a  vossa traição...  compreendi,  e  que  mais  posso  dizer  sobre  isso?...  Uma  pessoa envelhece  lentamente:  primeiro  envelhece  o  seu  gosto  pela  vida  e  pelas pessoas,  sabes,  pouco  a  pouco  torna-se  tudo  tão  real,  conhece  o  significado das  coisas,  tudo  se  repete  tão  terrível  e  fastidiosamente.  Isso  é  também velhice.  Quando  já  sabe  que  um  corpo  não  é  mais  que  um  corpo.  E  um homem,  coitado,  não  é  mais  que  um  homem,  um  ser  mortal,  faça  o  que fizer...Depois  envelhece  o  seu  corpo;  nem  tudo  ao  mesmo  tempo,  não, primeiro envelhecem  os olhos,  ou  as pernas,  o  estômago, ou  o  coração. Uma pessoa  envelhece  assim,  por  partes.  A  seguir,  de  repente,  começa  a envelhecer  a  alma:  porque  por  mais  enfraquecido  e  decrépito  que  seja  o corpo,  a  alma  ainda  está  repleta  de  desejos  e  de  recordações,  busca  e  deleita-se,  deseja  o  prazer.  E  quando  acaba  esse  desejo  de  prazer,  nada  mais  resta que  as  recordações,  ou  a  vaidade;  então  é  que  se  envelhece  de  verdade,  fatal e  definitivamente.  Um  dia  acordas  e  esfregas  os  olhos:  já  não  sabes  porque acordaste.  O  que  o  dia  te  traz,  conheces  tu  com  exactidão:  a  Primavera  ou  o Inverno,  os  cenários  habituais,  o  tempo,  a  ordem  da  vida.  Não  pode acontecer  nada  de  inesperado:  não  te  surpreende  nem  o  imprevisto,  nem  o invulgar  ou  o  horrível,  porque  conheces  todas  as  probabilidades,  tens  tudo calculado,  já  não  esperas  nada,  nem  o  bem,  nem  o  mal...  e  isso  é precisamente  a  velhice.  Porém,  há  ainda  algo  vivo  no  teu  coração,  uma recordação,  algum  objectivo  de  vida  indefinido,  gostarias  de  tornar  a  ver alguém,  gostarias  de  dizer  ou  saber  alguma  coisa,  e  sabes  bem  que  um  dia chegará  esse  momento  e  então,  de  repente,  já  não  será  tão  fatalmente importante  saber  e  responder  à  verdade,  como  pensaste  durante  as  décadas de  espera.  Uma  pessoa  compreende  o  mundo,  pouco  a  pouco,  e  depois morre.  Compreende  os  fenómenos  e  a  razão  das  acções  humanas.  A linguagem  simbólica  do  inconsciente...  porque  as  pessoas  comunicam  os seus pensamentos por  símbolos, já  reparaste? Como  se falassem  numa língua estrangeira, ou em chinês, sobre as coisas  essenciais, e depois essa língua tem de  ser  traduzida  para  a  linguagem  da  realidade.  Não  sabemos  nada  de  nós próprios.  Falamos  sempre  sobre  os  nossos  desejos,  e  tentamos  esconder-nos desesperada e inconscientemente. A vida torna-se quase interessante, quando já  aprendeste  as  mentiras  das  pessoas,  e  começas  a  desfrutar  e  a  notar  que dizem  sempre  uma  coisa  diferente  daquilo  que  pensam  e  querem realmente...  Sim,  um  dia  chega  o  reconhecimento  da  verdade:  e  isso significa  a  velhice  e  a  morte.  Mas  então,  isso  já  não  dói. 



Mais tarde,  quando  soube muitas  coisas  e percebi  tudo, porque  o  tempo  trouxe  à  ilha  da  minha  solidão  alguns  destroços,  sinais reveladores  das  substâncias  desse  naufrágio,  olhei  para  o  passado,  cheio  de piedade,  vi-os,  aos  dois  rebeldes,  a  minha  mulher  e  o  meu  amigo,  duas pessoas,  atemorizadas  e  com  remorsos,  arrependidas  e  consumidas  pela paixão  obstinada,  infelizes  que  se  revoltaram  e  celebraram  um  pacto  de  vida e  morte  contra  mim...  Coitados!  —  pensei. (...)E  deixas  cair  a tua  mão  com  a arma,  na  manhã  em  que  me  queres  matar,  porque  já  não  aguentas  essa corrida,  esse  jogo  de  esconder,  essa  miséria.  O  que  podes  tu  fazer?  Levas  a Krisztina  contigo?  Tens  de  renunciar  à  tua  posição,  és  pobre  e  a  Krisztina também,  não  podem  aceitar  nada  de  mim,  não,  não  podes  fugir  com  ela, nem  viver  com  ela,  não  podes  casar  com  ela,  mantê-la  como  amante significa um perigo de  morte, ou  ainda mais: a  cada momento tens  de contar com  a  denúncia  e  a  descoberta,  tens  medo  das  contas  que  tens  de  me prestar,  precisamente  a  mim,  teu  amigo  e  irmão.  Essa  situação  de  perigo, não  a  aguentas  durante  muito  tempo.  E  um  dia,  quando  o  momento amadureceu  e  surgiu  entre  nós  os  dois  de  uma  forma  palpável,  levantas  a arma;  e  eu,  mais  tarde,  sinto  pena  de  ti  sinceramente  por  esse  momento,várias  vezes.  Deve  ser  uma  tarefa  extremamente  penosa  e  pesada  matar alguém  a  quem  estamos  ligados  —  diz  sem  ênfase.  —  Não  és suficientemente  forte  para  essa  tarefa. Ou  o  momento  passa,  e  já  não  podes fazer  nada.  Porque  também  existe  isso,  o  momento  —  o  tempo  traz  e  leva  as coisas  arbitrariamente,  e  não  somos  apenas  nós  que  colocamos  as  nossas acções e  os  fenómenos no  decorrer do  tempo.  Acontece que  o  momento traz consigo  uma  possibilidade  e  isso  tem  um  tempo  exacto  —  e  se  o  momento passou, de  repente  já  não  podes  fazer  nada. A  tua  mão  tomba  com  a  arma.
E na manhã seguinte, partes para os trópicos.



A  Krisztina  sabia  que  tu  querias matar-me naquela manhã, na caça?
E  não  nego  que  tinha a  suspeita,  durante  as  décadas  passadas,  de  que  aquele  momento,  na  floresta matinal,  na  caça,  não  foi  só  um  acaso,  uma  ideia  repentina,  uma  ocasião, um  momento  inspirado  pelo  mundo  inferior  —  não,  atormenta-me  a suspeita  de  que  aquele  momento  foi  precedido  por  vários  outros  momentos sensatos,  totalmente  diurnos. Porque  a  Krisztina,  quando  soube  que  tinhas fugido,  disse:  “Era  um  cobarde”  —  é  o  que  ela  diz,  são  as  últimas  palavras que  ouço  da  sua  boca,  e  também  o  seu  último  juízo  pronunciado  sobre  ti.  E fico  sozinho  com  estas  palavras.  Era  um  cobarde,  porquê?...  —  pergunto-me muito  mais  tarde.  Cobarde,  em  que  sentido?  Para  viver?  Para  viver  nós  três juntos,  ou  para  viver  vocês  dois  separados?  Cobarde  para  morrer?  Não  tinha coragem  e  não  queria  nem  viver  nem  morrer  com  a  Krisztina?...Ou  apenas  era  cobarde  para  outra  coisa,  não  para  viver  nem  para morrer,  não  para  fugir  nem  para  trair,  não  era  cobarde  para  me  tirar  a Krisztina nem para abdicar da Krisztina,  não, era simplesmente cobarde para cometer  um  acto  muito  singelo  e  punível  do  ponto  de  vista  da  lei,  que discutiram  e  planearam  os  dois,  a  minha  mulher  e  o  meu  melhor  amigo? E esse plano  não  resultou,  porque  eras  cobarde?...
É  para  isso  que  ainda  queria resposta  na  vida.
Sim,  teria  sido  mais  humano  se  uma  bala  tivesse  acabado com  aquilo  que  o  tempo  não  podia  resolver:  a  dúvida  de  que  vocês  se tivessem  unido  contra  mim  para  me  matar,  e  que  tu,  afinal,  foste  cobarde para  executar.  É  isso  que  ainda  gostava  de  saber.



Nós  dois,  sobrevivemos  a  uma  mulher  —  diz  num  tom confidencial.  —  Tu,  ao  te  ires  embora,  eu,  ao  ficar  aqui.  Sobrevivemos  com cobardia  ou  com  cegueira,  com  ressentimento  ou  com  prudência,  o  facto  é que  sobrevivemos. Sobreviver  a alguém,  a  quem  amámos  tanto  que  teríamos  sido  capazes  de  matar  por  ela, sobreviver  a  alguém,  a  quem  estávamos  ligados  de  tal  maneira  que  quase morremos  por  isso,  é  um  dos  crimes  mais  misteriosos  e  inqualificáveis  da vida.  Mas  nós  os  dois  sabemos—  diz  em  voz  baixa  e  seca.  —  E  sabemos  também  que  com  toda  a  nossa inteligência  ressentida,  cobarde  e  orgulhosa,  não  salvaguardámos  nada  para nós  próprios,  porque  ela  morreu,  nós  estamos  vivos,  e  nós  três  estávamos ligados duma maneira ou de outra, na vida e na morte. Isso é muito difícil de compreender,  e  quando  uma  pessoa  o  compreende,  fica  particularmente inquieta.  Que  pretendeste  ao  sobreviver  a  tudo,  que  ganhaste  com  isso?...Conseguiste  libertar-te  de  situações  embaraçosas?  Que  importam  situações, quando  se  trata  da  verdade  da  vida,  de  que  existe  uma  mulher  no  mundo  a quem  estás  ligado,  e  essa  mulher  é  a  esposa  daquela  pessoa  que  é  o  teu amigo, com quem te unem laços igualmente?... E  o que importa tudo aquilo que as pessoas pensam sobre isso? Nada — diz com simplicidade. — No fim,o mundo não importa nada. Só importa o que fica nos nossos Corações.


A  segunda  pergunta  resume-se  em  saber  o  que  ganhámos  com  toda  a nossa  inteligência,  orgulho  e  superioridade?  Se  não tivesse  sido  aquela  atracção  penosa  por  uma  mulher  que  morreu,  qual  teria sido  o  verdadeiro  conteúdo  da  nossa  vida?  Sei  que  é  uma  pergunta  difícil. Eu  não  sei  responder-lhe.  Vivi  tudo,  vi  tudo,  e  não  sei  responder  a  essa pergunta. Vi  paz  e  guerra,  vi  miséria  e  grandiosidade, vi-te  cobarde  e  vi-me  a mim  mesmo  vaidoso,  vi  luta  e  concordância.  Mas  no  fundo,  o  significado  da vida  e  das  nossas  acções  talvez  tenha  sido  esse  laço  que  nos  uniu  a  alguém—  laço  ou  paixão,  chama-lhe  o  que  quiseres.  Essa  é  a  pergunta?  Sim,  é  essa. Gostava que me dissesses — continua tão baixo como se tivesse medo de que alguém  estivesse  atrás  das  suas  costas  ouvindo  as  suas  palavras  —,  qual  é  a tua  opinião  sobre  isso?  Pensas  também  que  o  significado  da  vida  não  seja outro  senão  a  paixão,  que  um  dia  invade  o  nosso  coração,  a  nossa  alma  e  o nosso  corpo,  e  depois  arde  para  sempre,  até  à  morte?  Aconteça  o  que acontecer? E  que  se  nós  vivemos  essa  paixão,  talvez  não  tenhamos  vivido  em vão?  É  assim  tão  profunda,  tão  maldosa,  tão  grandiosa  e  desumana  a paixão?...  E  talvez  não  se  dirija  a  uma  pessoa  em  concreto,  mas  apenas  ao desejo  mesmo?...  Essa  é  a  pergunta.  Ou  dirige-se  a  uma  pessoa  em  concreto, desde  sempre  e  para  sempre  à  única  e  mesma  pessoa  misteriosa,  que  pode ser  boa  ou  má,  mas  cujas  acções  e  qualidades  não  influenciam  a  intensidade da paixão que nos  une a ela?
Responde, se sabes  responder — diz mais  alto e insistente.
— Porque é  que perguntas?  — replica  o outro tranquilamente.  — Sabes que é assim.




Percorrem  o  corredor,  cheio  de  quadros  pendurados  na  parede.  A  mancha que indica o lugar do retrato da Krisztina, faz parar o general.
— O quadro — diz — já podes voltar a pô-lo no seu lugar.
— Sim — responde a ama.
— Não tem importância — diz o general.
— Eu sei









Sem comentários:

Enviar um comentário