O escritor húngaro Sándor Márai (n. 1900 – m. 1989) ia completar 89 anos de idade quando resolveu dar um tiro na cabeça. Tinha perdido a mulher há três anos, assim como o filho adoptivo, vivia isolado, contaminado pelo cancro. Deixara a Hungria em 1948, insatisfeito com o regime comunista que então dominava o país. Viveu algum tempo em Itália até se fixar definitivamente em San Diego, nos EUA. Apesar de escrever originalmente em húngaro, foi durante muito tempo proibido no seu país. Só alguns anos depois de falecer, começou a sua obra a ser mundialmente traduzida e reconhecida como uma das mais estimulantes do séc. XX
Um dos primeiros elementos que captam a nossa atenção num livro é o título.
É o primeiro factor de sedução, pelo que a sua escolha, desde logo, emoldura o texto e cria um indicador de leitura que guia o leitor.
Em “ As velas ardem até ao fim”, pressupomos imediatamente estar na presença de um romance de dimensão espaço-temporal.
De facto, numa só noite e enquanto se consomem as velas até ao fim, narram-se 41 anos de vida dos personagens da obra. Movendo-se neste intervalo de tempo, o narrador revisita o passado e reescreve uma história de vida, descobrindo agora o que a primeira vivência omitiu, da vida de Henrik, Konrad e Krisztina.
Este livro é uma espécie de carta, quase um monólogo, sobre a amizade.
Todo o livro é referente a uma conversa, a uma só conversa, entre o General Henrik e o seu amigo Konrád, que fugiu para os Trópicos, de um dia para o outro há 41 anos atrás, voltando agora velho à Hungria para resolver a sua situação com o amigo de outrora. Há um segredo que os une e que os separou, e o General, magoado e traído quer respostas a perguntas que se foram formulando ao longo desses 41 anos. O General é um homem magoado que nunca conseguiu ultrapassar o sucedido, que viveu para questionar Konrád, porque sabia que este um dia iria voltar.
"O que vale a resposta que uma pessoa dá com palavras e não com a realidade da sua vida?... Vale pouco (...) São poucas as pessoas cujas palavras correspondem por completo à realidade das suas vidas. Talvez seja esse o fenómeno mais raro da vida."
Há que sublinhar que este livro divide-se em duas partes distintas:
- o pré-jantar, constituído pela apresentação das personagens, por algumas das suas memórias e pensamentos, que interpretei como sendo uma contextualização do que se seguiria.
- e o jantar, em que predomina o monólogo do general, quem acaba por ser o principal narrador de toda a história.
Trata-se de um romance comovente sobre a amizade, onde alguém prefere uma ruptura a um conflito, e onde ambos aparentemente perdem mas salvam a coerência de um sentimento maior, superior a qualquer outro objectivo de vida, de forma nobre e elevada.
O diálogo/monólogo de Henrik é cativante pela sinceridade e frontalidade, sem pôr em causa o sentimento comum mas explorando sem tabus todos os meandros de pensamento e comportamento de uma relação estranha mas pura.
É um livro sobre a amizade, sobre o amor, a inveja, o desejo, a confiança, a vingança, a traição, o ciúme, a ilusão e o envelhecimento… Sobre a vida.
Na juventude, dois jovens oficiais, Henrick e Konrad, conhecem-se e entre os dois desenvolve-se uma profunda amizade. Quando o primeiro, que há-de vir a ser general e está casado, convida o outro a visitá-los no seu castelo de caça, Konrad e a mulher de Henrick apaixonam-se.
Henrick, numa caçada ao veado, apercebe-se de que o amigo tentou matá-lo.
Após o afastamento deste, Krisztina adoece e o marido afasta-se completamente dela, até à sua morte.
Quarenta e um anos depois destes acontecimentos, o general, que entretanto se reformou e vive com a fiel governanta Nini, quase uma mãe, recebe uma carta do capitão Konrad, que entretanto viajou pelo Extremo Oriente e também se afastou do exército, a perguntar se o pode visitar no castelo.
Assim, no velho castelo de caça na Hungria, onde outrora a aristocracia ouvia Chopin, os dois amigos recriam o enredo do triângulo amoroso vivido numa juventude dum mundo que desmoronou, no coração do império austro-húngaro, na viragem do séc. XIX para o séc. XX, num período convulsivo que termina com a desagregação do império e o desaparecimento do mundo e das regras que pautaram a vida dos personagens.
Estes dois homens, um rico de ascendência e o outro pobre tornam-se dependentes na sua existência. Separados por circunstâncias misteriosas, unidos por um segredo calado durante 40 anos.
A obra é ao mesmo tempo um tratado de reflexão humana e sociológica.
As dúvidas dos homens desvanecem-se, as memórias dos tempos esgotam-se no arder das velas.
Tudo anuncia o final de um ciclo.
O diálogo, quase um monólogo, é um olhar sobre o passado, numa visão de um homem que olha para trás com a perspectiva serena que só o passar dos anos proporciona.
Não há recriminações nem insultos, apenas um reencontro sereno de dois seres humanos que não querem fechar o ciclo sem se reencontrarem. E este reencontro é, sobretudo, um tratado e uma reflexão sobre uma amizade que arde até ao fim, como as velas do velho castelo.
“Éramos amigos, não companheiros, compadres ou camaradas. Éramos amigos e não há nada na vida que possa compensar uma amizade. Nem mesmo uma paixão devoradora pode oferecer tanto prazer como uma amizade silenciosa e discreta proporciona aqueles que são tocados pela sua força”.É, assim, uma história de relações humanas, maduras, em que se reconhece na pessoa que se escolheu para amigo os defeitos e se aceitam os mesmos, com todas as consequências. São dois sobreviventes do colapso da sociedade e do seu mundo interior.
E ao terminar de ler esta obra deste autor de excelência, vem-me à lembrança uma frase de um qualquer outro romance cujo título não recordo:
“ há na vida do ser humano um tempo para tudo, há mesmo um tempo para que os tempos se tornem a encontrar”.
Sándor não banaliza a amizade.
Sándor eleva a amizade ao colocar Konrad e Henrik a conversar à lareira toda uma noite, até que o sol voltasse a raiar pela manhã e até que as velas ardessem até ao fim.
Este encontro ocorre 41 anos após o último encontro entre estes dois amigos de infância. Os dois conheceram-se na academia militar e viveram a juventude juntos. No entanto, com o passar dos anos, foram-se diferenciando.
Henrik, filho de um grande general e de famílias ricas, aproximou-se da elite da época, começou a ascender no exército e a frequentar as festas das gentes importantes. Por outro lado, Konrad, filho de uma família humilde do norte que se sacrificou para que o filho pudesse entrar na academia e ser alguém na vida, revelou ser diferente ao aproximar-se da cultura. A música e os livros eram a sua paixão; não era um soldado de sangue como acontecia com Henrik. À medida que os anos foram passando a diferença cresceu mas nem por isso deixaram de fazer tudo juntos, mesmo quando Henrik se casou, Konrad continuou a conviver com o casal como se fizesse mesmo parte da família.
Mas um dia Konrad fugiu; desapareceu sem razão aparente e sem avisar ninguém.
A velhice actual de Konrád e Henrik é exposta através dos fantasmas que ficaram dos tempos vindouros onde estes dois amigos, conviveram e criaram uma personalidade em conjunto, desenvolvendo uma amizade muito pouco usual e ao mesmo tempo muito pura.
Mas tudo muda, tudo se altera e a separação foi inevitável.
É na partida de um e no ficar do outro que se passam quarenta e um anos.
Quarenta e um anos de espera, de ausência, de silêncio e igualmente de dúvida e mágoa, mas mais ainda de vontade de terem uma última conversa, um último desabafo.
“(…)Uma pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o significado das coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso também é velhice. Quando já sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado, não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer… Depois envelhece o seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim, por partes. A seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se envelhece de verdade, fatal e definitivamente. Um dia acordas e esfregas os olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com exactidão: a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não pode acontecer nada de inesperado: não te surpreende nem o imprevisto, nem o invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal… e isso é precisamente a velhice. (…)”
Num pequeno castelo de caça na Hungria, em cujos salões se recebiam convidados, se organizavam saraus e se tocava Chopin, vive um general. O general nasceu naquele palácio, no mesmo quarto onde agora vive, como «uma pessoa que se habitua à dimensão da sua doença». Este homem, conforme percebemos no lento crescendo em que a intriga se desenrola, na tensão permanente em que o leitor junta breves pedaços de informação, já pouco sai para o mundo exterior, tal como nem visita as outras alas do palácio. Vive naquele confinamento porque já nada lhe resta na vida a não ser manter uma espera. O general pensa em décadas e não gosta de números exactos. Contudo, ficaremos a saber que entre um dia remoto e o dia presente, entre o dia 14 de Agosto e o dia 2 de Julho, passaram-se 41 anos, e 43 dias. Talvez essa suspensão do tempo seja porque esta é também a história do final de uma era, de um mundo depois da Guerra, do ocaso da vida. Talvez seja porque o tempo verdadeiro que interessa ao general é apenas seu – um lugar íntimo e subjectivo, feito das suas memórias, que permanecem tão concretas e vividas como os objectos daquele palácio, um espaço que perdeu entretanto o esplendor de então – talvez no mesmo momento em que o general perdeu quem lhe era mais querido. Porque aquele palácio é também um «grande túmulo ornamentado» em que se encerra «a memória dos mortos».
O general recebe Konrád, o seu amigo de infância e de juventude, que é apenas alguns meses mais velho do que ele: «completara os setenta e três anos na Primavera». Konrád que viveu 41 anos nos trópicos, tendo partido subitamente, sem explicação, depois de ter jantado naquela mesma sala, como jantava todas as noites, à mesma hora, na mesma companhia. Naquela sala grande cuja mesa está agora disposta exactamente da mesma forma, como 41 anos atrás, onde também ardiam aquelas mesmas velas azuis no centro da mesma, pois a mulher do general «gostava da luz das velas, gostava de tudo o que a fazia lembrar do passado».
Sandor Márai reinterpreta a culpa de Ana Karenine.
Krisztina, de “As velas ardem até ao fim”, é a absolvição de Ana.
A conjugação de personalidades resulta num complexo triângulo afectivo.
A culpabilização de Ana, na obra de Tolstoi, parece ser o resultado partilhado com Krisztina, mas a intenção de Márai é diferente.
“As velas ardem até ao fim” não é só, nem principalmente, um tratado sobre a amizade. Não é, também, uma história extraordinária. É uma história secular de amor e traição.
A qualidade desta obra fundamenta-se na capacidade do autor húngaro em pesquisar a formação psicológica das personagens. O diálogo entre o general e Konrád é uma longa sessão de psicanálise. O general, que é o marido e amigo traído, espera há 41 anos e 43 dias para resolver esse “processo” que o atormenta.
A participação de Konrád nesse diálogo, ao longo da noite, é muito reduzida. Ele é o ouvinte. O general precisa de exteriorizar o que pensa e sente. E será ele próprio a chegar às respostas para as perguntas que há anos o motivam a viver.
Se Sandor Márai deixa o fim em aberto, não o faz quanto à atribuição da culpa.
Krisztina é tão culpada quanto o marido e o seu amante.
São as fraquezas de todos os intervenientes nesta relação de tão forte amizade que resulta no isolamento do general, na ostracização de Krisztina e na fuga de Konrád.
A culpa, segundo Márai, não é de Ana Karenine e não é de Krisztina.
A culpa é património comum; é uma construção com vários intervenientes.
As velas ardem até ao fim, romance publicado em 1942 pelo escritor húngaro Sándor Márai, parece uma reflexão sobre a questão colocada por Aristóteles sobre a amizade entre desiguais. Há, subjacente ao pensamento de Aristóteles, a questão da reciprocidade. Para que uma amizade possa subsistir, na sua verdade, é necessária a reciprocidade e esta só pode existir entre iguais.
O romance de Márai é uma longa reflexão sobre a amizade e a sua impossibilidade na desigualdade.
O livro é um exercício de rememoração da relação entre Henrik, rico aristocrata e general, e Konrád, proveniente de uma família polaca decadente. A amizade entre ambos começa no início da frequência do colégio militar, por volta dos dez anos, e prolonga-se por mais 22 anos, quando Konrád abandona o exército e, de um dia para o outro, desaparece, instalando-se em Singapura e vagueando pelo mundo.
Konrád regressa ao castelo do amigo para um longo jantar.
Este encontro ocorre quando Konrad regressa 41 anos depois de ter abandonado Viena.
Assim que Henrik sabe que o seu velho amigo regressou, manda um carro à cidade para o ir buscar e pediu à sua fiel criada que retractasse o grande salão para que este se assemelhasse à última vez que Konrad lá esteve. Uma encenação exacta do último jantar em que apenas estava Konrad, Henrik e Krisztina, a mulher de Henrik. Desde então que aquele salão nunca mais fora utilizado.
Um quase monólogo de Henrik apenas entrecortado, aqui e ali, por perguntas ou frases misteriosas do amigo. O monólogo é, em primeiro lugar, a descrição da traição de Konrád à amizade entre ambos. No dia anterior ao desaparecimento de Konrád, este terá sentido um desejo intenso de assassinar o amigo. Além disso, manteve um caso amoroso com Krisztina, a mulher do General. Konrad nunca desmente as acusações, mas também nunca as confirma, como se tudo aquilo, passado tantos anos, não fizesse já sentido.
Havia algo no relacionamento dos dois, ternura, seriedade, dedicação, algo fatal…
Fatal foi Konrád ter apresentado Krisztina, sua amiga de infância, a Henrik.
Logo depois, Henrik casa-se com Krisztina, o seu único grande amor.
A relação dos dois amigos começa a mudar e, nada voltaria a ser como dantes.
A desigualdade entre os amigos – aquilo que supostamente conduziu a traição de Konrád, e esta é mais o seu desaparecimento do que o desejo do homicídio ou o caso amoroso – reside não no destino das duas famílias de origem (uma nobre e pujante e a outra decaída), mas no facto de responderem a ethos diferentes. Henrik é um militar, na linha da velha aristocracia do império austro-húngaro. Konrád, por seu lado, não tem espírito de militar, é meditabundo, com propensão para a música e, ainda por cima, vagamente aparentado com Chopin.
A desigualdade dos amigos nasce no ethos que os anima e dá forma ao carácter, como se entre o dever e a ordem militares e a criação artística, com um princípio de anarquia subjacente, existisse uma incompatibilidade estrutural.
O livro explora vários conceitos de amizade, ao ponto de questionar se a amizade verdadeira existe realmente, ao ponto de ser altruísta e não egoísta. Ou se por contrário somos amigos de quem nos convém, devido a um egoísmo inconsciente, na medida em que esperamos sempre algo em troca, nem que seja a própria amizade, o próprio amor, da outra parte.
O autor defende que a verdadeira amizade não deve nunca esperar algo em troca, e que considera isso inatingível e por isso que amizade nesse conceito total e verdadeiro não existe.
Contudo, deve-se recolocar o romance na sua época.
Publicado em 1942, o monólogo rememorativo em que assenta a acção dramática mostra que essa desigualdade pertence a um mundo que já terminou. O confronto entre dois velhos não passa de cinzas de um mundo que ardeu até ao fim na Guerra de 1914-1918. Em 1942, era tempo de outra guerra, mas a única acção possível para homens de mais de 70 anos é a reminiscência ou o silêncio, a constatação da inutilidade de tudo, mesmo do rancor causado por uma amizade traída.
1942: A Europa estava mergulhada na Segunda Grande Guerra, com o Reino da Hungria a fazer parte do eixo que apoiava a estratégia nazi. Uma das características geralmente associadas ao livro de Márai é a nostalgia da multiculturalidade do Império Austro-Húngaro, aflorada em brevíssimas passagens que parecem indiferentes ao corpo do texto.
É bom lembrar, no entanto, que as duas personagens centrais do livro provêm de contextos socioculturais diversos.
O general Henrik é rico e nobre, vive num palácio com Nini, a velha ama que o criou, filha do carteiro da aldeia, fiel companhia de uma vida solitária. Havia vinte anos que não recebiam visitas quando Konrád, amigo de infância, resolve reaparecer passados 41 anos de uma ausência intrigante. No colégio que frequentaram quando eram rapazes de 10 anos, provenientes dos palácios da Boémia, dos solares da Morávia, dos castelos tiroleses e dos palacetes de caça, das casas de província húngaras, eram rapazes eslavos de testa estreita, em cujo sangue se misturavam todas as características humanas do Império. É neste ambiente multicultural que germinará a amizade entre dois seres bem distintos. Tinham dez anos quando se conheceram.
Konrád era filho de um funcionário público da Galícia. A mãe era polaca, de origens muito humildes.
Henrik é rico e exerce sobre os outros uma espécie de fascínio que não advém apenas da sua posição social privilegiada. Por ser bem formado, com bom coração, chegando a ser, muitas vezes ingénuo, o poder que acaba por ter sobre os outros não é usado de forma leviana. Reconhece a sorte que tem e partilha-a sem procurar o reconhecimento dos outros. Não tinha ouvido para a música e achava-a perigosa. Apenas lia livros sobre cavalos e viagens. Seguiu a carreira militar. Chegou a general.
Konrád, ao contrário de Henrik é pobre e menos expansivo. Konrád era sereno e reservado. Gostava de música. Tocava piano com a mãe de Henrik, uma condessa parisiense. Lia livros sobre história, sobre o desenvolvimento social. Nunca há-de ser um verdadeiro soldado, dizia o pai de Henrik ao filho.É uma pessoa mais introspectiva e um apaixonado pela música. Embora a amizade que sente por Henrik seja sincera, esta não deixa de ser assombrada por alguma inveja. Inveja porque, enquanto Henrik nunca conheceu qualquer dificuldade na vida, Konrád vive angustiado pelo esforço que a sua educação exige dos pais. Conhece o mundo em que Henrik se movimenta e, por despeito, a que prefere chamar de superioridade intelectual, despreza esse mundo e as pessoas que dele vivem e que sem ele não sabem viver.
No início do livro, Konrád e a condessa francesa, mãe de Henrik, tocam a quatro mãos com imensa paixão, a Fantaisie Polonaise de Chopin. Quando Henrik e o pai ficam sozinhos na sala, o pai diz a Henrik:
"- Konrád nunca há-de ser um verdadeiro soldado.
- Porquê? - perguntou Henrik.
- Porque é uma pessoa diferente."
Os "diferentes" da família...a Condessa francesa mãe de Henrik, Konrád e Krisztina.
Apesar das alusões platónicas e kantianas, a referência mais evidente será a Ética a Nicómaco, de Aristóteles, segundo a qual um homem ama o seu próprio bem ao amar um amigo.
Mas há uma outra dimensão neste romance que extravasa a questão da amizade.
Grande parte do livro é um longo monólogo de Henrik sobre aquilo que terá levado Konrád a desaparecer durante 41 anos. O monólogo ocorre durante o jantar do reencontro, pautado pelo ritmo das velas a arderem até ao fim. Esta marcação do tempo, altamente musical, remete também para algo que começa a separar Henrik de Konrád quando ainda eram jovens. O primeiro foi educado para a espada, é um homem do real, um militar, a sua relação com o mundo apoia-se nos factos, estes são o cerne da realidade. Mas por detrás da realidade há algo mais, há uma verdade que lhe escapa. Ele sabe disso e é isso que o frustra.
Konrád, ao contrário de Henrik, refugia-se na música. A música é uma linguagem perigosa, dois corpos comunicam através da música de um modo simbólico que Henrik não entende, mas Konrád desenvolve.
"- Que é que queres deste homem? – pergunta Nini.
- A verdade – disse o general.
- Conheces bem a verdade.
- Não conheço… É mesmo a verdade que não conheço.
- Mas conheces a realidade – disse a ama numa voz aguda, ofensiva.
- A realidade não é a verdade – retorquiu o general. – A realidade é apenas um pormenor."
«A realidade não é a verdade. (…) A realidade é apenas um pormenor», diz Henrik a Nini quando esta o questiona sobre as vantagens do reencontro com Konrád passados 41 anos.
Estão agora na casa dos 70, a juventude passou, algo os separou e Henrik quer saber o quê.
Não lhe importam os factos, esses ele sabe-os, não lhe importa a realidade, essa ele conhece.
«Diz-me, o que há lá no íntimo?» — pergunta Henrik a Konrád.Mas este praticamente não fala, limita-se a ouvir. Os leitores saberão apenas a versão da história segundo Henrik, e a versão da história deixa-nos no limbo entre os factos da realidade e uma intimidade impossível de decifrar.
«Não se trata de me defender, porque quero saber a verdade, e quem procura a verdade, só pode começar a busca dentro de si»A verdade parece inacessível, está na morte. Pelo meio, o amor a uma mulher, a traição, a fuga, uma tentativa de assassinato, acusações de cobardia esgrimindo exemplos de coragem íntima, desinteressada, sacrificial, a memória de alguém que já não existe, ou existe de certa maneira como elo entre os dois, a vingança…
«Tudo o que outrora eram factos, tornam-se em pó e cinzas»A verdade escapa aos factos porque a verdade é muito mais profunda do que a realidade, esta observa-se à superfície, não determina a amizade entre dois homens.
«Li e reli Platão», diz o general. Nota-se. Ele sabe o que é uma ideia. Só a realidade se compreende, as ideias são modelos inalcançáveis até à hora da morte, até à hora da verdade.
"Sim, um dia chega o reconhecimento da verdade: e isso significa a velhice e a morte".Muito mais do que uma história de amizade, o livro é a partitura a partir da qual ouvimos uma espécie de música que nos oferece simbolicamente um pouco de verdade. A amizade é o pretexto para escutarmos essa música composta por Sándor Márai… em solidão.
Ficamos sem saber por que voltou Konrád.
Qual a sua versão dos acontecimentos? O que o fez regressar? Qual a sua verdade?
Tudo o que sabemos é-nos dito por Henrik.
Konrád terá fugido por cobardia. Mas fugiu de quê?
E em que é que a coragem lhe falhou, se é que falhou?
Poderá a morte desfazer o mistério?
A traição entre amigos é das coisas moralmente mais repugnantes, pelo menos no universo masculino e segundo os seus códigos de conduta, ou segundo antigos códigos de conduta. Há nisso, uma clara vertente política. Se nem os amigos pessoais são de fiar, como se poderá admitir a fiabilidade da amizade cívica que suporta uma comunidade?
"Percebo e sinto aquilo que tinha acontecido naquele dia: a minha vida tinha-se partido em dois, como uma paisagem rasgada por um terramoto - de um lado ficou a infância, tu e tudo aquilo que a vida passada significava; do outro lado começa aquele território obscuro e imenso que tenho de percorrer, o tempo que me resta viver"
Só uma profunda amizade é capaz de sobreviver à passagem do tempo, à distância, à mentira, à traição. Sobrevive mas não volta a ser o que era.
“(…) os pormenores, às vezes, são muito importantes. Dum certo modo ligam todo o conjunto, colam a matéria base das recordações.”
Que pormenores nos ficam? Que pormenores colam as nossas memórias?
Um romance sobre a amizade é certo, mas também sobre decisões, remorsos, consequências, honestidade e sobrevivência, sem esquecer o ciúme, a suspeita e o amor.
O quadro de Krisztina, após o jantar, poderia voltar ao seu lugar, o que pode ser visto como reconciliação com o passado ou outro sintoma da inutilidade de todas as paixões humanas.
Talvez ambas as coisas.
"Percorrem o corredor, cheio de quadros pendurados na parede.
A mancha que indica o lugar do retrato da Krisztina, faz parar o general.
— O quadro — diz — já podes voltar a pô-lo no seu lugar.
— Sim — responde a ama.
— Não tem importância — diz o general.
— Eu sei."
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