Irvin David Yalom
13 de Junho de 1931
(idade 89 anos)
Como médico e psiquiatra, tinha dito, baixinho, esse consolo no ouvido dos doentes graves.
Mas agora, ao pensar na jovem meditando, sentiu algo mais terno, uma onda de compaixão por ela e por todos os demais humanos que eram vítimas daquela excêntrica mudança de evolução que permite ter consciência de si mesmo, mas não as ferramentas psicológicas necessárias para lidar com a dor da existência transitória. E assim, por anos, séculos e milénios afora, construímos sem parar negações paliativas da finitude. Será que nós, será que algum de nós, jamais cessará de buscar um poder superior no qual possamos nos fundir e existir para sempre, parar de querer manuais de instruções dados por um Deus, de querer um desígnio maior, de buscar rituais e cerimónias?
Sempre detestou as formas que as religiões usam para tirar a razão e a liberdade de seus seguidores: os trajes cerimoniais, o incenso, os livros sagrados, os cantos gregorianos com seu som hipnotizante, os cilindros de oração dos budistas, os tapetes para ajoelhar, os mantos e solidéus, as mitras e os bastões dos bispos, as hóstias e os vinhos bentos, as extremaunções, as cabeças a bater e os corpos a balançar ao ritmo de velhas cantilenas. Ele considerava tudo aquilo a parafernália da mais poderosa e duradoura vigarice, que fortalecia os líderes e satisfazia o desejo de submissão da comunidade.
O que mais temos? O que mais senão aquele abençoado e milagroso intervalo de ser e estar consciente? Se algo deve ser homenageado e abençoado, deveria ser apenas isso, a incalculável dádiva do mero existir. Viver desesperado porque a vida acaba ou porque não tem outra finalidade maior ou desígnio intrínseco é pura ingratidão. Pensar num criador omnisciente e dedicar a vida a um ajoelhar-se sem fim parece sem sentido. Além de um desperdício: por que dar todo esse amor a um fantasma, quando há tão pouco amor na Terra? Melhor aceitar a solução de Einstein e Spinoza: apenas inclinar a cabeça e bater no chapéu para as elegantes leis e mistérios da natureza, mas tratar de viver.
Julius sempre soube da finitude e da evanescência da consciência. Mas há saber e saber. E a morte em cena fez com que ficasse mais próximo de realmente saber. Não que tivesse ficado mais sábio, mas a falta de outras coisas — ambição, desejo de sexo, dinheiro, prestígio, aplauso, popularidade — proporcionava uma visão mais pura. Não foi esse desprendimento a verdade pregada por Buda? Talvez fosse, mas ele preferia o caminho dos gregos: tudo pela moderação. Grande parte da graça da vida perde-se se nunca tirarmos os nossos mecanismos de protecção e partilharmos da alegria. Para quê correr para a porta de saída antes da hora de fechar?
Viu então um exemplar bastante manuseado de Assim falou Zaratustra, de Nietzsche.(…) Achava Zaratustra um livro corajoso, que, mais que qualquer outro, ensina como reverenciar e celebrar a vida. Sim, podia ser a resposta. (…) "Mudar", "eu quis assim" é o que chamo de redenção. Entendeu que as palavras de Nietzsche significavam que era preciso escolher a sua vida — ele tinha que usufruí-la em vez de ser "usufruído" por ela. Por outras palavras, tinha que amar o seu destino. E, acima de tudo, havia a pergunta que Zaratustra sempre fazia — se gostaríamos de repetir a mesma vida eternamente. Uma ideia curiosa e, quanto mais Julius pensava nela, mais seguro se sentia: a mensagem de Nietzsche para nós era viver de forma a querer a mesma vida sempre.(…) "Complete a sua vida." "Morra na hora certa". Isso mesmo. Viva o melhor possível e, só então, morra. Não deixe nada por viver. Por mais que Zaratustra exaltasse, até glorificasse a solidão, por mais que exigisse o isolamento para poder pensar, ainda assim estava preocupado em amar e exaltar os outros, em ajudá-los a aperfeiçoarem-se e a excederem-se, em compartilhar com eles a sua maturidade.
Compartilhar a sua maturidade — isso era com ele, pensou Julius.
Mas a dúvida continuava:
"Será que foste realmente, verdadeiramente, útil para os teus pacientes?
Talvez só tenha ajudado os que iam melhorar de qualquer jeito."
Tinha consciência dos seus fracassos também com as pessoas que não estavam preparadas para o seu avançado estilo de tratamento. "Espera aí, Julius", pensou ele. "Como é que sabes que foram realmente fracassos? Fracassos para sempre? Nunca mais viste os pacientes. Todos sabem que muita gente amadurece tarde." Bateu os olhos na pilha de fichas de Philip Slate. Por falar em fracasso, pensou ele, este foi um deles. Fracasso antigo e de bom tamanho. Philip Slate. Foi há mais de vinte anos, mas a imagem dele continuava nítida.(…) Philip Slate era tão alienado de si mesmo que nunca pensou em olhar para dentro, preferindo surfar na superfície da vida e dedicar toda a sua energia ao sexo. Olhou a ficha e leu a primeira anotação, feita vinte e cinco anos antes. "SOU dominado, contra minha vontade, por impulsos sexuais". "Por que não consigo fazer o que realmente quero?" Dominado pelo sexo desde os 13 anos — masturbação compulsiva da adolescência até hoje (às vezes, quatro a cinco vezes por dia), obcecado por sexo, masturba-se para se acalmar. Além do mais, lembrou-se da incrível imutabilidade de Philip: após três anos de tratamento, parecia não ter sido afectado, nem mudado nada. E estava mais dominado pelo sexo do que nunca. Que fim teria levado Philip Slate?
Eu estava descontrolado. Só queria sexo. Estava obcecado. Insaciável. Tremo de pensar na vida que levava. Queria seduzir o maior número possível de mulheres. Após o coito, a compulsão dava uma breve trégua, mas logo o desejo voltava.(…) Era só nesse curto período logo após o coito que eu conseguia viver plena e harmoniosamente, quando conseguia me conectar com os grandes pensadores do passado.(…) mas as tréguas, os espaços não-compulsivos eram curtos demais.(…) E era uma compulsão. Eu sabia que era.
Thomas Mann. Na vossa idade, começou a escrever uma obra-prima, um maravilhoso romance chamado Os Buddenbrooks, que publicou quando tinha apenas vinte e seis anos.(…) Para mim, os trechos mais marcantes de Os Buddenbrooks estão no final do romance, quando o protagonista, o velho patriarca Thomas Buddenbrooks, está para morrer.(…) Em seu desespero, Thomas Buddenbrooks viu por acaso na sua estante um livro de filosofia barato e mal encadernado, que tinha comprado há anos numa barraca de livros na beira da estrada. Começou a ler e sentiu um conforto imediato. Ficou maravilhado, como Mann, "como um mestre podia dominar essa coisa cruel e irónica chamada vida".(…) Até chegar ao capítulo intitulado Sobre a morte e sua relação com nossa imortalidade e, inebriado pelas palavras, continuou, como se lesse para viver. Ao terminar, Thomas Buddenbrooks tinha se transformado num homem que encontrou o conforto e a paz que precisava.O que aprendeu o doente?” Será que eu queria continuar vivo no meu filho? Numa personalidade ainda mais fraca, insegura e medrosa do que a minha? Cego e pueril engano! O que o meu filho pode fazer por mim? Onde estarei depois de morto? Ah, é tão brilhantemente claro. Estarei em todos aqueles que já disseram, dizem ou dirão "eu", principalmente naqueles que dizem com mais segurança, mais força e alegria! (...) Será que alguma vez detestei a vida, esta pura, forte e implacável vida? Loucura e engano! Detestei apenas a mim mesmo por não conseguir suportá-la. Amo vocês todos, abençoados, e logo, logo, deixarei de estar separado de vocês por um cárcere apertado; dentro em breve, aquela parte de mim que os ama se libertará e estará com vocês e em vocês, com vocês e em vocês todos.” Quem era o autor do trecho que tanto transformou Thomas Buddenbrooks? Mann não revela no romance, mas, quarenta anos depois, ele escreveu um excelente ensaio onde dizia que o autor era Arthur Schopenhauer. E conta que, aos vinte e três anos, teve a grande alegria de ler Schopenhauer pela primeira vez.
Era verdade, ele nunca tinha realmente desfrutado o momento, nunca tinha sentido o presente, nunca pensou: "É isso, agora, hoje, é isso o que eu quero! Os velhos bons tempos são hoje, exactamente agora. Vou ficar neste instante, vou criar raízes neste lugar para sempre." Não, ele sempre achou que o melhor da vida ainda estava por ser descoberto e ansiava pelo futuro, quando estaria mais velho, mais inteligente, maior, mais rico. E então veio a revolta, a grande virada, a súbita e dramática desidealização do futuro e o início do doloroso desejar o que já tinha sido.
E o que pensava Vijay? Também devaneava sobre a conversa com Pam. Estranhamente animado, o coração dele batia forte. Procurou acalmar-se. Abriu a pasta de couro e pegou num velho e amassado maço de cigarros, mas não ia fumar (o maço estava vazio e além do mais ele sabia que os americanos são esquisitos em relação a cigarros). Queria apenas olhar o maço azul e branco com o perfil de uma mulher de chapéu e, em nítidas letras negras, a marca Cena Que Passa. Um de seus primeiros mestres religiosos tinha chamado a atenção para aquela marca que o pai dele fumava e pediu que iniciasse a meditação a pensar na vida como uma cena que passa, um rio levando todas as coisas, todas as experiências, todos os desejos, enquanto Vijay assistia, inabalável. Vijay pensou na imagem de um rio fluindo e ouviu as palavras mudas da sua mente anitya, anitya (passagem).
— Nada é permanente —lembrou-se ele —, a vida e todas as coisas passam, é tão certo e garantido quanto a paisagem a correr na janela do comboio. Fechou os olhos, respirou fundo e encostou a cabeça na poltrona. O pulso ficou mais lento e ele entrou no bem-vindo porto da serenidade.(…) A vida é uma cena que passa, medito sobre isso sempre que sinto uma turbulência interna.(…) tudo para receber um sorriso daquela adorável mulher, Pam, que era uma aparição, parte de uma cena que passa, logo sairia da vida dele e se dissolveria na inexistência do passado. (…)
— Talvez possamos nos encontrar outra vez no comboio, depois do retiro. Disse Pam.
— Não devemos pensar nisso. Goenka vai nos ensinar que só podemos viver no presente. Não existe ontem, nem amanhã. As lembranças do passado, as preocupações com o futuro só causam inquietação. O caminho para a serenidade está em observar o presente e deixar que flutue pelo rio da nossa consciência. — Sem olhar para trás, Vijay pôs a pasta no ombro, abriu a porta do compartimento e saiu.
— Nietzsche uma vez disse que, quando acordamos desanimados no meio da noite, os inimigos que derrotamos há muito tempo voltam para nos assustar — lembrou Philip.
Philip, sem deixar de olhar para o seu ponto preferido num lugar do tecto, respondeu logo: — Schopenhauer disse que as mulheres muito atraentes, assim como os homens muito inteligentes, estão destinados a viver isolados. E que os outros ficam cegos de inveja e de raiva da pessoa superior. Por isso, esses dois tipos nunca têm amigos íntimos do mesmo sexo.(…)
— Philip, estás a dizer que, para ser popular, a pessoa tem que ser burra ou feia? — perguntou Tony. — Exactamente — concordou Philip. — E a pessoa sensata não vai passar a vida a querer ser popular. Engano. A popularidade não mostra o que é verdadeiro ou bom, pelo contrário, nivela por baixo. Melhor buscar dentro de si mesmo os valores e metas.
— E quais são as suas metas e valores? — perguntou Tony.
Se Philip percebeu a agressividade da pergunta, não demonstrou e respondeu, sincero:
— Como Schopenhauer, quero desejar o menos possível e saber o mais possível.
Tony concordou, sem saber o que dizer.
Pam entendeu a ambivalência que sentia em relação à meditação. Goenka cumpriu o que disse. Deu exactamente o que prometeu: calma, tranquilidade ou, como costumava dizer, contrapeso. Mas a que preço? Se Shakespeare tivesse praticado a meditação Vipassana, teria escrito O rei Lear ou Hamlet? Alguma obra-prima da cultura ocidental teria sido escrita? Lembrou-se dos versos de Chapman: "Nenhuma pena pode escrever nada de eterno, se não for mergulhada na tinta das trevas."
Mergulhada na tinta das trevas: essa era a tarefa do grande escritor, mergulhar no sentimento das trevas, aproveitar a força da escuridão para criar. Senão, como os sublimes autores malditos (Kafka, Dostoievski, Virginia Woolf, Hardy, Camus, Plath, Poe) teriam iluminado a tragédia da condição humana? Não foi por saírem da vida, nem ficarem parados a assistir a vida passar.
Pam tinha lido um texto básico no avião a caminho da Índia e ficou impressionada com o poder e a verdade dos quatro grandes ensinamentos de Buda:
1. A vida é sofrimento.
2. O sofrimento é causado por apegos (a coisas, ideias, pessoas, e à própria vida).
3. Há um remédio para o sofrimento: a cessação do desejo, do apego, do eu.
4. Há um caminho para uma vida sem sofrimento: os oito passos da revelação.
Pam pensou de novo. Olhou em volta, para os assistentes em transe, as pessoas tranquilizadas, os ascetas nas suas cavernas na colina, satisfeitos com uma vida dedicada a varrer a mente com a meditação. Pensou se as quatro verdades seriam tão verdadeiras assim.
Será que o Buda entendeu bem? Será que o remédio não era pior do que a doença?
Para todo o canto que olhava, Pam via renúncia, sacrifício, limitação e resignação.
O que foi feito da vida? Da alegria, do entusiasmo e da paixão, do "aproveite cada dia"?
Será que a vida era uma tal angústia que deveria ser sacrificada em nome da calma?
Talvez as quatro grandes verdades fossem ligadas à cultura indiana. Talvez fossem verdades adequadas a 2.500 anos antes, num lugar oprimido pela pobreza, a superpopulação, a fome, a doença, a opressão das castas e a falta de qualquer esperança num futuro melhor.
Mas seriam verdades para ela agora?
Será que Marx não estava certo? Será que todas as religiões fincadas na libertação ou numa vida melhor depois da morte não visavam os pobres, os sofridos, os escravizados?
Philip quebrou o curto silêncio.
— Parece-me que Bonnie e Rebecca têm aflições parecidas. Bonnie detesta não ser popular, enquanto Rebecca detesta ter deixado de ser popular. As duas ficam presas ao que os outros pensam delas. Por outras palavras, acham que a felicidade está nas mãos e na cabeça dos outros. A solução para as duas é a mesma: quanto mais se tem dentro de si, menos se quer dos outros.
— Platão observou que o amor está em quem ama e não em quem é amado — disse Philip. Eu disse antes que, a minha meta na vida é desejar o menos possível e saber o mais possível. Amor, paixão, sedução são sentimentos fortes, servem para perpetuarmos a espécie e, como Rebecca mostrou, podem agir de forma inconsciente. Mas no final das contas, todos eles servem para atrapalhar a razão e interferir nos meus interesses culturais, por isso não quero nada com eles. (…) Há anos que deixei de me incomodar com a opinião alheia. Acredito piamente que o homem mais feliz é o que busca apenas a solidão. Refiro-me aos divinos Schopenhauer, Nietzsche e Kant. Eles acreditavam, como eu, que o homem com riqueza interior só quer do exterior a dádiva do lazer despreocupado para desfrutar da sua riqueza, isto é, do seu intelecto.
Rebecca foi a primeira a falar.
— Estar satisfeito, precisar tão pouco dos outros, jamais querer a companhia de alguém parece bem solitário, Philip.
— Pelo contrário. No passado, quando eu queria a companhia dos outros, pedia o que eles não iam dar, ou melhor, não podiam. Aí sim, vi o que era solidão. Vi muito bem. Não precisar de ninguém é nunca estar só. Eu busco a abençoada solidão — disse Philip.
Concordo com Schopenhauer que escreveu que a beleza é uma carta de recomendação de quem a possui. Acho óptimo ver uma pessoa muito bonita. Mas acho também que a opinião que o outro tem de mim não altera, ou não deve alterar, a opinião que tenho de mim mesmo.
Soa mecânico e desumano — retrucou Tony.
— Desumano mesmo era quando eu deixava que minha auto-estima flutuasse como uma cortiça de acordo com o que os outros achavam de mim.
— Tenho sempre em mente que somos todos condenados a sofrimentos dos quais não podemos escapar. Nenhum de nós escolheria viver, se soubesse o que tinha pela frente. Nesse sentido, somos, como diz Schopenhauer, companheiros de sofrimento e precisamos da tolerância e amor dos nossos companheiros na vida.
— É uma equação comprovada: quanto menos me relacionar com as pessoas, mais feliz fico. Quando tentei viver no mundo, estava sempre inquieto. Meu único caminho para a paz é ficar fora do mundo, não querer nada, não esperar nada, fazer conquistas contemplativas e superiores.
As três maiores revoluções do pensamento ameaçaram a noção do homem como centro de tudo. Primeiro, Copérnico demonstrou que a Terra não era o centro de todos os corpos celestes.
Depois, Darwin mostrou que não somos o centro na cadeia da vida e, como todas as outras criaturas, evoluímos a partir de outras formas de vida.
Finalmente, Freud descobriu que não mandamos na nossa própria casa, pois grande parte do nosso comportamento é governado por forças inconscientes. Sem dúvida, o co-revolucionário que Freud não reconheceu foi Arthur Schopenhauer. Muito antes de Freud nascer, Schopenhauer afirmou que somos dominados por grandes forças biológicas e nos iludimos achando que escolhemos conscientemente o que fazemos.
No livro, Grendel, de John Gardner, Grendel procura um sábio e ele diz-lhe que as escolhas excluem, ou seja, que para todo o sim existe um não. — Lembro-me que disseste que para envelhecer bem era preciso aceitar que as oportunidades diminuem.
— Heidegger falou de enfrentar o limite da possibilidade. Na verdade, ele ligava esse limite ao medo da morte. Para ele, "a morte é a impossibilidade de qualquer possibilidade."
Acho que estás a usar a tua profissão como desculpa para evitar a vida — disse Tony.
— Vou contar uma coisa — disse Julius. — Anos atrás, em Xangai, estive numa catedral deserta. Sou ateu, mas gosto de conhecer lugares religiosos. Bem, dei uma volta na catedral, sentei.me no confessionário vazio e fiquei a invejar o padre-confessor. Que poder ele tinha! Tentei dizer: "Está perdoado meu filho, está perdoada, minha filha". Imaginei a enorme segurança dele por se considerar o elo do perdão que vinha directo do homem lá de cima. E como as minhas técnicas pareciam insignificantes em comparação com as dele. Mas depois que saí da catedral, conclui que pelo menos eu vivia de acordo com as normas da razão, e não tratava os meus pacientes como crianças, transformando mitologia em realidade.
— Você e Schopenhauer têm algo em comum quanto à religião. Ele achava que os líderes religiosos exploram a eterna necessidade que o homem tem do sobrenatural e tratam as pessoas como crianças, deixando-as numa eterna ilusão, e não contam que escondem a verdade em alegorias.
Na minha opinião, o que foi mostrado hoje aqui, o que causou tanto tormento inútil para mim e para outros, vem do supremo e universal poder do sexo, que o meu outro terapeuta, Schopenhauer, me ensinou que é totalmente intrínseco a nós ou, como se diz hoje, faz parte da nossa constituição. Nós, pobres mortais sofredores, somos tão vítimas do corpo que ficamos cheios de culpa por coisas que são naturais, como ficaram Stuart e Rebecca. E que temos a obrigação de nos livrarmos da escravidão do sexo.
Schopenhauer acreditava que o homem de força e valor não precisa dos outros; ele se basta. Essa teoria, ligada à certeza absoluta do próprio génio, serviu de racionalização para que ele evitasse, a vida inteira, aproximar-se dos outros. Costumava dizer que o facto de pertencer à "mais alta classe do género humano" obrigava-o a não desperdiçar os seus dons em nenhum relacionamento social, mas manter-se ao serviço da humanidade. Escreveu: "Minha inteligência não pertence a mim, mas ao mundo".
Há uma afirmação mais sombria: que os nossos semelhantes são desagradáveis, repulsivos e, portanto, devem ser evitados. Esta postura misantropa está em todos os escritos de Schopenhauer, que são cheios de escárnio e ironia. Vejamos o início do seu criterioso Ensaio Da doutrina da indestrutibilidade pela morte de nossa verdadeira natureza:
"Numa discussão, se um dos muitos que querem saber tudo, mas não aprendem nada, pergunta da continuação da vida após a morte, a resposta mais adequada e, principalmente, mais correta é: 'Depois da morte, você vai ser como era antes de nascer'".
Que desapontamento encontrar um pensador tão importante, mas tão agressivo; com tanta visão e, ao mesmo tempo, tão cego.
Ao ler os seus escritos, podemos fazer um manifesto da misantropia com regras de conduta pelas quais deveríamos nos pautar. Imagine como Schopenhauer, apoiando esse manifesto, se sentiria num grupo de terapia hoje!
• Não conte a um amigo o que o seu inimigo não pode saber.
• Considere todos os assuntos pessoais como secretos, e mantenha-se distante até de amigos próximos. (...) Se os factos mudarem, saber de algo, por mais inofensivo, a seu respeito será desvantagem para si.
• Metade da sabedoria consiste em não gostar nem odiar. Ficar calado e não acreditar em nada é a outra metade.
• A segurança é mãe da desconfiança (provérbio francês, que ele endossava).
• Esquecer os defeitos de um homem é como jogar fora dinheiro que custou a ganhar. Devemos nos proteger da familiaridade e da amizade idiotas.
• A única forma de um homem se manter superior aos demais é mostrar que não depende deles.
• Desconsiderar é ganhar consideração.
• Se temos alguém em alta consideração, devemos esconder tal facto como se fosse um crime.
• Melhor deixar que os homens sejam como são do que acreditar no que não são.
• Jamais devemos demonstrar raiva e ódio a não ser nas acções. (...) os animais de sangue frio são os mais venenosos.
• Sendo simpático e gentil, pode-se fazer com que as pessoas fiquem dóceis e maleáveis: a gentileza nos humanos tem o mesmo efeito do calor na cera.
— Pode não ser o que me perguntou, mas pensei numa observação de Schopenhauer de que poucas coisas deixam as pessoas tão satisfeitas quanto ouvir a desgraça alheia. Schopenhauer cita um poema de Lucrécio (poeta romano do século I a.C, informou Philip para Tony) em que alguém se diverte na praia a ver pessoas a lutar numa tempestade do mar. "É uma alegria para nós ver males que não nos atingem", diz ele.
— Bem, se tu queres mastigado, eis: entras neste grupo e fazes uma série de sonoras declarações. Dizes algumas coisas de filosofia e todos nós aprovamos. Algumas pessoas acham-te muito inteligente, como Rebecca e Bonnie, por exemplo. Eu também. Tens todas as respostas. Também és orientador e parece que estás a competir com Julius. Estamos na mesma página? E aí volta a nossa Pam e o que ela faz? Desmascara-te! Mostra que tens um passado bem complicado. Afinal de contas, tu não és o Sr. Cadastro Limpo. Na verdade, fodes-te com a Pam. E cais-te do pedestal. Tens que estar irritado com isso. Então, o que fazes? Vens aqui hoje e dizes ao Julius: qual é o seu segredo? Queres derrubá-lo do pedestal dele, ficar no mesmo nível do teu. Mesma página?
— É assim que vejo a situação. Porra, podia ser diferente? Philip olhou bem para Tony e respondeu. — As tuas observações são boas. — Virou-se para Julius: — Talvez eu deva- me desculpar consigo; Schopenhauer sempre preveniu para não deixarmos que a nossa experiência subjectiva influencie a nossa observação objectiva.
Julius disse: — Vou deixar a Pam falar na hora que ela quiser, Philip, mas quanto a mim, não é preciso se desculpar. O motivo para você estar aqui é exactamente entender o que diz e por que o diz. Quanto às observações de Tony, acho que atingiram o alvo.
— Philip, quero perguntar uma coisa — disse Bonnie. — É uma pergunta que Julius me fez muitas vezes: como se sentiu ao sair das duas últimas sessões?
— Não estava bem. Fiquei confuso, até agitado. Às vezes, acho que a discussão e o barulho daqui são destrutivos e me afastam do que eu realmente valorizo. Todo este enfoque no passado e nos nossos desejos de mudança no futuro só nos faz esquecer o detalhe fundamental de que a vida é apenas o presente, que está sempre a mudar. De que adianta toda essa agitação, sabendo como tudo vai terminar?
A maior obra de Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, que escreveu aos vinte e poucos anos, foi publicado em 1818, é um livro de incrível amplitude e profundidade, com observações argutas sobre lógica, ética, epistemologia, critério, ciência, matemática, beleza, arte, poesia, música, necessidade do sobrenatural, relacionamento do homem com os outros e consigo mesmo. A condição humana é apresentada em todos os seus aspectos mais sombrios: a morte, a solidão, a falta de sentido da vida e o sofrimento inerente a ela. Muitos eruditos afirmam que a obra de Schopenhauer tem mais boas ideias do que a de qualquer outro filósofo, excepto Platão. Os escritos de Schopenhauer têm muita ligação com a psicanálise, embora ela ainda não existisse na época. Sua maior obra começa com uma crítica e um adendo a Kant, que tinha revolucionado a filosofia com a conclusão de que nós fazemos parte, em vez de percebermos a realidade. Kant afirmou que todos os nossos sentidos são filtrados pelo sistema nervoso, que nos fornece um retrato do que chamamos realidade. Na verdade, essa realidade não passa de uma quimera, uma ficção que surge dos conceitos e catalogações feitos pela mente. Conceitos são também a causa e o efeito, sequência, quantidade, espaço e tempo; são construções e não entidades, isto é, coisas ou factos que possam existir lá, na natureza. Além disso, não podemos ver uma versão do que está lá, não temos como saber o que está realmente lá, ou seja, o que existe antes do nosso processo perceptivo e conceitual. Essa primeira entidade, que em alemão Kant chama de ding an sich (a coisa em si), está e precisa estar para sempre desconhecida por nós.
Embora Schopenhauer concorde que não podemos conhecer a coisa em si, acredita que podemos chegar mais perto dela do que acha Kant. E que Kant menosprezou uma grande fonte de informação do mundo perceptível (o mundo fenomenal): nosso próprio corpo! O corpo é um objeto material. Existe no tempo e no espaço. E nós temos um enorme e rico conhecimento do corpo que não vem através da percepção e da conceituação, mas de dentro, dos sentimentos. Adquirimos um conhecimento através do corpo que não podemos conceituar e comunicar porque a maior parte de nossa vida interior é desconhecida para nós. A vida interior é reprimida e não pode ser consciencializada porque conhecer nossa natureza mais profunda (nossa crueldade, medo, inveja, desejo sexual, agressividade, egoísmo) seria um peso maior do que poderíamos aguentar.
Lembram-se daquela velha teoria freudiana do inconsciente, do processo primitivo, do id, repressão, auto-ilusão? Não é essa a base da psicanálise? Lembre-se de que o principal livro de Schopenhauer foi publicado quarenta anos antes do nascimento de Freud. Em meados do século XIX, quando Freud (e Nietzsche) ainda estavam no primário, Schopenhauer era o filósofo alemão mais lido.
Como compreendemos essas forças inconscientes? Como fazemos com que elas se comuniquem entre si? Embora não possam ser conceituadas, podem ser sentidas e, segundo Schopenhauer, propagadas directamente, sem palavras, através das artes. Por isso ele deu mais atenção às artes (principalmente à música) do que qualquer outro filósofo.
E o sexo? Ele não tinha dúvidas da importância do sexo no comportamento. Nesse ponto, também, Schopenhauer foi um ousado pioneiro, pois nenhum filósofo antes teve a ideia (ou a coragem) de escrever sobre a importância fundamental do sexo para a nossa vida interior.
Filósofos como Hobbes, Hume e até Kant demonstraram tendências agnósticas, mas não ousaram afirmar a sua descrença. No mínimo, porque viviam do salário das empresas públicas e universidades onde trabalhavam e, portanto, eram proibidos de expressar qualquer sentimento anti-religioso. Schopenhauer jamais foi nem precisou ser empregado de nada nem de ninguém, tendo assim liberdade para escrever o que quisesse. Exactamente pelo mesmo motivo, um século e meio depois, Spinoza recusou convites para assumir altos cargos em universidades, continuando a trabalhar como polidor de lentes.
Qual a conclusão de Schopenhauer sobre o conhecimento do corpo? Foi que nós e toda a natureza temos uma força primária incansável, insaciável que ele chamou àcvontade. Nós queremos, queremos e queremos. Para cada desejo consciente há dez aguardando no inconsciente. A vontade não cessa de nos dirigir, pois assim que um desejo é alcançado, há outro e mais outro pela vida afora. Schopenhauer acreditava que a vida é uma roda de carência seguida de saciedade. Ficamos satisfeitos quando saciados? Por pouco tempo. Quase em seguida somos invadidos pelo tédio e obrigados a agir para escapar do horror do tédio. Por que o tédio é mau? Por que lutamos para afastá-lo? Porque é um estado do qual não conseguimos livrar-nos e que vem logo mostrar verdades subjacentes e desagradáveis sobre a vida: a nossa insignificância, a falta de sentido da vida, a nossa inexorável caminhada rumo à velhice e à morte. Portanto, o que é a vida senão um ciclo infinito de querer, satisfazer, entediar-se e depois querer de novo? Essa sequência vale para todas as formas de vida? É pior para os humanos, diz Schopenhauer, pois à medida que a inteligência aumenta, cresce também a intensidade do sofrimento. Existe alguém feliz? É possível ser feliz algum dia? Schopenhauer acredita que não. A vida, que consiste numa descida trágica e inevitável, não só é brutal, mas inteiramente excêntrica.
Será que as conclusões pessimistas de Schopenhauer sobre a condição humana são tão insuportáveis que ele acabou mergulhando na depressão? Ou foi o contrário: era tão infeliz que acabou concluindo que a vida é um fato triste que nem deveria ter ocorrido? Ciente desse enigma, ele nos lembrou (e a si mesmo) que a emoção tem o poder de toldar e falsificar o conhecimento: o mundo assume um aspecto sorridente quando temos motivo para nos alegrar, e um ar sombrio quando pesa sobre nós a tristeza.
Está sozinho, sem sexo, algumas mulheres oferecem consolo, tu aceitas e todos ficam felizes. Provavelmente, elas também gostaram. Quer dizer, costumamos falar nas mulheres como se elas só fossem usadas ou exploradas. Eu fico irritado, muito irritado, com essa história de homens a implorar por um pouco de sexo enquanto as mulheres, sentadas nos seus tronos de rainhas, resolvem se aceitam ou não nos concederem esse favor. Como se elas também não gostassem de sexo.
Uma noite dessas, li um trecho de Epícteto que achei interessante e tirei algumas cópias. Fiz uma tradução livre do latim. — Philip pegou as cópias na pasta, deu uma para cada pessoa e disse, de cor: Numa viagem, quando o navio ancora num porto, sais para pisar na água e colher raízes e conchas na praia. Mas precisas estar sempre atento ao navio, pois o capitão pode chamar para embarque e tu precisas juntar as tuas coisas, não pode ser como as ovelhas que amarram e fecham no porão. O mesmo acontece na vida. E se tens esposa e filhos, em vez de conchas e raízes, precisas reuni-los. Quando o capitão chamar, corre para o navio, esquece tudo e não olhes para trás. Se já és idoso, fica perto do navio, assim estarás pronto para o embarque.
Por outras palavras, vivemos de forma mais autêntica se pensarmos no simples facto de existir, no milagre da vida. Se nos focarmos em ser, não vamos nos prender tanto às digressões da vida, isto é, aos objectos materiais da ilha, não vamos perder de vista a existência em si. A ideia é estarmos atentos para não nos perdermos na agitação da vida.
Heidegger chamava isso ser absorvido pelo quotidiano da vida.
Sei que você, Pam, detesta Heidegger, mas não é por ele ter tido opiniões políticas equivocadas que vamos privar-nos da dádiva das suas conclusões filosóficas. Então, para parafraseá-lo, cair no quotidiano da vida faz com que fiquemos presos como as ovelhas. Não devemos nos preocupar em como as coisas são, mas maravilharmo-nos por elas serem, por existirem.
— Para mim, há consolo na ideia de que a minha morte dá sentido à minha vida. — Philip continuou, com um entusiasmo que não era comum nele: — Há um consolo na ideia de não deixar que a minha essência seja devorada por trivialidades, por sucessos ou fracassos insignificantes, pelo que eu possuo, por preocupações em ser popular, quem gosta de mim, quem não gosta. Para mim, há consolo no facto de ser livre para apreciar o milagre de ser.
Epícteto, assim como Schopenhauer, achava que o apego excessivo aos bens materiais, às pessoas, ou até a si mesmo é a maior causa de sofrimento. E o sofrimento não pode ser reduzido se evitarmos o apego?
— Pam, você revirou os olhos como quem não está a gostar — disse Rebecca. — Essa conversa sobre apego faz lembrar a meditação na Índia?
— É mesmo — disse Pam. — Eu não aguentava mais me desapegar de tudo, inclusive da ideia doida de que podemos separar nosso apego do nosso eu. Acabei por achar que era tudo uma grande negação da vida. E aquele texto que Philip deu, qual é a mensagem? Quer dizer, que tipo de viagem, que tipo de vida é que tu levas se estás tão preocupada com a partida do navio que não podes aproveitar o que há em volta, nem desfrutar das outras pessoas? Acho que você, Philip, tem como solução para os seus problemas renunciar à vida — disse ela, virando-se para Philip. — Você não vive, não ouve os outros e, quando fala, não me parece que estar a ouvir alguém vivo, a respirar.
— Uma das ideias de Schopenhauer que me ajudou — disse Philip — foi que a relativa felicidade tem três origens: o que se é, o que se tem e o que se é para os outros. Ele sugere que nos fixemos apenas no primeiro item, não em ter e no que os outros pensam de nós, porque não podemos controlar essas coisas, elas podem e serão tiradas de nós, da mesma forma que o envelhecimento vai levando a beleza. Na verdade, diz ele, possuir tem um outro lado, pois o que possuímos acaba nos possuindo.
Se Arthur Schopenhauer fosse vivo hoje, seria candidato a uma psicoterapia? Claro! Ele tinha muitos sintomas. Em A meu respeito, lamenta que a natureza tivesse lhe dado um temperamento ansioso e uma desconfiança, sensibilidade, impetuosidade e orgulho incompatíveis com a serenidade de um filósofo. Tinha uma sexualidade muito intensa e, mesmo quando jovem, lastimava ser dominado por sentimentos animalescos. Arthur queria se livrar do sexo. Gostava dos momentos de serenidade, quando podia observar o mundo com calma, e abominava o anseio sexual que atormentava o seu corpo. Comparava o desejo à luz do dia, que esconde as estrelas. À medida que envelheceu, apreciou o declínio do desejo e a tranquilidade que chegou.
Seguindo o mesmo caminho de Zaratustra, ele tinha compartilhado o seu amadurecimento, conseguido se aproximar dos outros e vivia de uma forma que gostaria de repetir pela eternidade.
Julius interrompeu para perguntar se ele notava que já tinha contado aquilo várias vezes.
Stuart respondeu:
— Mas não devemos tratar coisas que continuam a incomodar-nos? Ou não?
— Julius então fez uma pergunta forte:
— O que achou que sentiríamos com a repetição?
— Que iam achar um tédio, uma coisa chata.
— Pense nisso, Stuart. Qual é a vantagem de você ser um tédio ou um chato? Depois, pense porque as pessoas não se interessam em ouvi-lo.
— Não é possível falar em Schopenhauer sem começar por Kant, o filósofo que, junto com Platão, respeitava os outros acima de tudo. Kant morreu em 1804, quando Schopenhauer tinha dezasseis anos, e revolucionou a filosofia com a conclusão de que é impossível sentirmos a realidade em qualquer sentido verdadeiro porque todas as nossas percepções, nossas informações sensoriais, são filtradas e processadas pelo nosso mecanismo neuroanatómico. Todas as informações são conceituadas por elaborações arbitrárias como espaço e tempo e... em vez de percebermos o mundo como ele é, temos a nossa versão pessoal do que é. Propriedades como espaço, tempo, quantidade, causalidade estão em nós e não no mundo, nós as impomos à realidade.
Mas, então, qual é a realidade pura? O que está no mundo, aquela entidade pura, antes de nós a processarmos? Kant disse que jamais saberemos.
— Mas Schopenhauer fez outro caminho. Ele viu que Kant tinha omitido uma informação fundamental e imediata sobre nós mesmos: o corpo e os sentimentos. Insistia que podemos nos conhecer a partir de dentro. Temos um conhecimento directo e imediato, que não depende das nossas percepções. Assim, foi o primeiro filósofo a olhar impulsos e sentimentos a partir de dentro, e pelo resto da vida escreveu muito sobre as preocupações interiores: sexo, amor, morte, sonhos, sofrimento, religião, suicídio, relações com os outros, vaidade, auto-estima. Mais que qualquer outro filósofo, ele tratou daqueles impulsos sombrios que ficam lá no fundo, que não suportamos encarar e por isso precisamos reprimir.
Freud é Schopenhauer, tal a quantidade de psicanálise freudiana existente em Schopenhauer. Embora Freud quase não tenha reconhecido essa influência, não há dúvida que conhecia bem os escritos do filósofo. Nas décadas de 1860 e 1870, quando Freud estudava em Viena, todos falavam em Schopenhauer. Na minha opinião, sem Schopenhauer não haveria Freud, como, aliás, não existiria Nietzsche da forma como conhecemos. Aliás, a influência de Schopenhauer sobre Freud, principalmente na teoria dos sonhos, no inconsciente e nos mecanismos de repressão, foi tema da minha dissertação de doutorado.
— Schopenhauer — continuou Philip, olhando de esguelha para Tony e falando rápido para não ser interrompido — resolveu a minha sexualidade. Fez com que eu visse que o sexo está em tudo e que, a um nível mais profundo, é o centro de tudo o que fazemos, permeando todas as relações humanas, influenciando até questões de estado.
— Primeiro — prosseguiu Philip, sem titubear —, em vez de criticar esse comportamento perverso, há duzentos anos Schopenhauer entendeu a realidade que estava por trás: a simples e enorme força do sexo. O sexo é nosso maior impulso (o de viver e se reproduzir), não pode ser reprimido. Não pode ser afastado com argumentos. Já falei como Schopenhauer observa que o sexo se infiltra em tudo. Vejam o escândalo dos padres católicos pedófilos, pensem em todas as áreas de actuação humana, todas as profissões, todas as culturas, todas as épocas. Perceber isso foi muito importante para mim, assim que conheci a obra de Schopenhauer: ele, uma das grandes inteligências do mundo fez com que, pela primeira vez na vida, eu me sentisse totalmente compreendido. Schopenhauer me fez ver que estamos condenados a girar sempre na roda da vontade: desejamos uma coisa, conseguimos, desfrutamos um instante de satisfação que logo passa a tédio e seguimos para o próximo "eu quero". O desejo não acaba, seria preciso saltar da roda da vontade. Foi o que fez Schopenhauer e o que eu fiz.
— Saltar da roda? O que quer dizer isso? — perguntou Pam.
— Quer dizer anular completamente a vontade. Aceitar que a nossa natureza mais íntima é uma luta implacável, que esse sofrimento está em nós desde o começo, e que somos condenados por nossa própria natureza. Quer dizer que precisamos primeiro entender o nada essencial deste mundo de ilusão e depois procurar uma forma de negar a vontade. Como todos os grandes artistas, temos que procurar viver no mundo das ideias platónicas. Algumas pessoas fazem isso através da arte; outras, do ascetismo religioso. Schopenhauer fez evitando o mundo do desejo, comungando com os grandes pensadores e praticando a contemplação estética; tocava flauta uma ou duas horas por dia. Quer dizer que, além de actores, precisamos ser plateia. Precisamos admitir a força vital que existe na natureza e que se manifesta na vida de cada um e que acabará sendo recuperada quando a pessoa deixar de existir. — É o modelo que sigo. Minha maior relação é com os grandes pensadores, que leio diariamente. Procuro não encher a minha cabeça com coisas corriqueiras e pratico a contemplação jogando xadrez ou ouvindo música, também diariamente. Ao contrário de Schopenhauer, não tenho talento para tocar um instrumento.
Pam dirigiu-se a Philip.
— Quer saber por que se sentiu compreendido por Schopenhauer e não por Julius?
Porque Schopenhauer morreu há cento e quarenta anos e Julius está vivo.
Você não sabe se relacionar com os vivos.
— Se ele não fala, eu falo por ele — disse Pam.
— Ele obedece à orientação de Schopenhauer. — Pegou um papel na bolsa e leu:
• Fale sem emoção.
• Não seja espontâneo.
• Mantenha-se independente de todos.
• Considere-se a única pessoa na cidade com um relógio para saber as horas. Isso vai ser-lhe útil.
• Desconsiderar é ganhar consideração.
Lembrou-se também de ficar abraçado com ela muito tempo. Foi por esse exacto motivo que ele a considerou perigosa e resolveu na mesma hora não se encontrar mais com ela. Ela era uma ameaça à liberdade dele. Buscava um alívio sexual rápido, uma credencial para obter a abençoada paz e solidão. Ele nunca desejava a carne. Desejava a liberdade, livrar-se da escravidão do desejo para entrar, embora por pouco tempo, no não-desejo dos verdadeiros filósofos. Só após o alívio do prazer ele podia ter pensamentos elevados e apreciar os seus amigos, os grandes pensadores cujos livros eram como cartas dirigidas para ele.
— Lembro-me de Philip dizer que não perdoar e imperdoável são duas coisas diferentes, não é, Philip? — perguntou Stuart. Philip concordou com a cabeça.
— Não sei se entendi — disse Tony.
— Imperdoável deixa a responsabilidade fora de ti, enquanto não perdoar coloca a responsabilidade em quem não quer perdoar — explicou Philip. Tony fez sinal de entender.
— É a diferença entre assumir a responsabilidade pelo que faz ou culpar o outro?
— Exatamente. E, como disse Julius, a análise termina quando acaba a culpa e surge a responsabilidade — disse Philip.
— Tony, ainda tens muito a aprender sobre mulheres. Para de implorar, é humilhante. Disseste que as mulheres podem usar-te como quiserem porque só queres uma coisa delas: sexo. Isso deprecia-te e a elas também.
— Você melhorou tanto, Philip — disse Bonnie. — Está tão mais acessível, tão mais afável. Vou ser sincera, como você era quando começou aqui, eu não via ninguém a consultar você como terapeuta, nem mesmo eu.
— Infelizmente — respondeu Philip —, estar acessível aqui significa que preciso saber das desgraças de todos, o que só aumenta a minha. Diga, como esse acessível pode ser útil? Quando eu estava na vida, estava péssimo. Nos últimos doze anos fui um visitante, um observador da vida que se passava na minha frente e vivi num mar de tranquilidade.
Philip levantou e abaixou as mãos abertas para ilustrar o mar.
— Agora que este grupo me obrigou a voltar à vida, estou de novo angustiado. Contei da agitação que tive depois do grupo, algumas semanas atrás. Ainda não voltei à calma de antes.
— Acho que há um erro no que você falou, Philip — disse Stuart. — Tem a ver com estar na vida. Bonnie se adiantou.
— Eu ia dizer isso. Acho que você nunca esteve na vida realmente. Você nunca falou num verdadeiro relacionamento. Não ouvi nada sobre amigos e, quanto a mulheres, você disse que era um destruidor.
Philip balançou a cabeça.
— Todas as pessoas com as quais me relacionei me magoaram.
Não achas que estás a decidir uma coisa importante com base em informações de segunda mão, quer dizer, informações que não são a tua experiência imediata?
"Um carpinteiro não vai dizer-me: "Ouça o discurso que escrevi sobre a arte da carpintaria". Ele se compromete a construir uma casa e constrói. (...) Seja assim você também: coma como um homem, beba como um homem. (...) case-se, tenha filhos, participe da comunidade, saiba como suportar as afrontas e os outros."- Epícteto
Acho que os textos de filósofos que você escolheu foram para confirmar a sua opinião e acho que foge da vida apoiando-se na filosofia. Usa Epícteto conforme lhe convém ou não.
Precisas colocar a intenção e a acção no mesmo nível. É preciso que sejam congruentes, será essa a palavra? — Tony olhou para Julius, que concordou.
— E talvez por isso devas fazer terapia. A terapia trata de congruência.
— Uma pergunta, Philip: será que os seus métodos não estão obsoletos?
— Outro dia — continuou Julius —, fiquei a pensar como lhe dizer isto; imaginei então uma cidade antiga que construiu uma muralha para se proteger das inundações de um rio. Séculos depois, o rio já estava seco há muito tempo, mas a cidade ainda gastava muito dinheiro na conservação da muralha.
— Você fala de continuar a usar uma solução, apesar de o problema ter acabado — disse Tony. — Como colocar um curativo numa ferida que já sarou.
— Discordo — disse Philip para Julius e Tony. — A minha ferida não está curada, ainda exige cuidados. A prova é que fico pouco à vontade no grupo.
— Esse não é um bom exemplo. Você não tinha experiência em ficar próximo, em demonstrar sentimentos, em ter retorno do que fala ou faz, e em abrir-se com os outros. Isso é novo para você, que viveu ensimesmado anos e eu pus você no meio deste grupo forte. Claro que tinha de ficar pouco à vontade. Mas quero falar do seu problema manifesto, a obsessão sexual que talvez tenha acabado. Você está mais velho, passou por muita coisa, deve ter chegado à terra da calmaria sexual. É um lugar óptimo, clima bom, ensolarado. Estou nele há anos.
— Eu diria que Schopenhauer te curou, mas agora precisas curar-te dele — disse Tony.
— Philip, quero responder ao seu comentário sobre a orientação que você e eu temos — disse Julius. — Não creio que estejamos tão distantes quanto você acha. Concordo bastante com o que você e Schopenhauer disseram sobre o drama da condição humana. Nossa discordância está no que fazer. Como viver? Como encarar o fato de sermos mortais? Como viver, sabendo que somos apenas formas de vida, jogadas num universo indiferente, sem qualquer finalidade definida?
— Como você sabe — continuou Julius —, embora eu tenha mais interesse por filosofia do que a maioria dos terapeutas, não sou especialista. Mas sei de outros grandes pensadores que enfrentaram esses duros factos e encontraram soluções bem diferentes das de Schopenhauer. Falo especialmente de Camus, Sartre e Nietzsche, que defendem a acção, em vez da resignação de Schopenhauer. O filósofo que conheço melhor é Nietzsche. Como você sabe, assim que soube da minha doença e entrei em pânico, abri Assim falou Zaratustra e fiquei ao mesmo tempo calmo e inspirado, sobretudo pelo comentário que celebra a vida, dizendo que devemos viver de forma que possamos aceitar, se nos oferecerem viver outra vez e mais outra, exactamente da mesma forma. Pensei na minha vida e senti que tinha vivido bem, não tinha arrependimentos, embora, claro, detestasse o facto da minha mulher ter morrido. O livro ajudou-me a resolver como eu deveria viver o tempo que me restava: continuando a fazer exactamente o que sempre me deu prazer e fez sentido para mim.
Lutero considerou a própria neurose como se fosse a de um paciente universal e depois tentou resolver em escala mundial o que não conseguiu resolver nele. Acho que Schopenhauer também cometeu esse grande erro e você foi atrás.
—Talvez — disse Philip, de forma conciliadora — a neurose seja uma construção social e precisemos de um tipo de terapia e de filosofia para cada tipo de pessoa: um, para os que apreciam a proximidade com os demais; outro, para os que preferem a vida intelectual
— Então, está a ficar mais claro — disse Julius — que seu erro de avaliação envolve também os relacionamentos humanos. Outro exemplo: você citou a visão de vários filósofos a respeito da vida e da morte, mas não o que eles (estou me referindo aos gregos) falaram sobre as alegrias àaphilia, a amizade. Lembro-me de um dos meus supervisores citar um trecho de Epicuro onde diz que a amizade é o ingrediente mais importante para uma vida feliz, e que fazer uma refeição sem a presença de um amigo era viver como um leão ou um lobo. E a definição de Aristóteles para amigo (aquele que incentiva e destaca o que o outro tem de melhor) é parecida com a ideia que faço do terapeuta ideal.
— E qual é o seu verdadeiro eu? — insistiu Julius.
Philip olhou bem nos olhos de Julius.
— É um monstro, um predador. Solitário. Matador de insetos.
Seus olhos lacrimejaram.
— Cheio de ódio. Intocável. Ninguém que me conheceu gostou de mim. Jamais. Nem podia.
Irvin D. Yalom
in, A Cura de Schopenhauer
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