sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Ontem voltei a ser feliz





Ontem jantei com uma mulher muito atraente. E nova. Mais ou menos trinta anos, loira natural, olhos verdes, uma pele e um sorriso lindos, boa figura

(cerca de um metro e setenta)

bem vestida, inteligente, com imensa graça, médica e tudo. E, por cima disto, um pai infinitamente sedutor: eu. A certa altura ela

(Chama-se Isabel, queria chamar-lhe Eva em homenagem à minha avó germânica mas a minha mãe tirou-me logo as peneiras com uma simples pergunta

– E se ela for feia?

porque, de facto, Eva e feia são duas coisas que não se aguentam bem juntas, de modo que mudei logo para Isabel)

a certa altura do jantar a Isabel começou a recordar-se de quando, em pequena, eu a levava ao Hospital Miguel Bombarda tal como o meu pai, éramos nós miúdos, nos levava também, e por ali andávamos com ele numa mistura de espanto e medo. Quer o meu pai quer eu gostámos imenso de trabalhar naquele sítio. As pessoas internadas fascinavam-me, aprendi o mais importante da vida com elas, com a sua criatividade, o seu humor, o seu sofrimento. A Isabel, então com cinco ou seis anos, lembrava-se de uma série de vinhetas extraordinárias. Por exemplo do doente

(classificavam-nos como doentes)

e orelha pegada a uma parede, à escuta, na careta franzida de quem espera ouvir. À nossa frente caminhava um enfermeiro a quem o doente pediu que encostasse também a orelha. O enfermeiro encostou, desencostou, disse ao doente

– Não ouvi nada

foi-se embora e ele para mim, apontando a parede, resignado

– Anda há horas nisto.

E continuou atento, imóvel, aguardando, porque aquilo, pensando bem, não era um hospital mas a Alice no País das Maravilhas a sério. Recordo-me da senhora que em lugar de

– Bom dia

me saudava

– Cri cri cri foguete

que me parece muito mais apropriado, ou do pintor francês que quando o meu pai lhe perguntou se tinha filhos respondeu indignado

– Não senhor doutor eu não fabrico cadáveres

ou da velhota grávida do Menino Jesus, sempre a tricotar casaquinhos de malha para a Divina Criança, ou do homem

(acho que já falei nele)

que me transmitiu, numa simples frase, a técnica da criação artística, que ainda hoje utilizo, ao informar-me

– Sabe, o mundo começou a ser feito por detrás

o que me ajudou a resolver, de golpe, uma série de dificuldades, ou do Valdemiro, que me ensinou a voar

– Cuidado com os ramos mais altos ou do sujeito que ligou para a Urgência declarando

– Daqui a meia hora estou aí para matar o chefe de equipa

bem vestido, bem penteado, de gravata e pistola na mão, disse-lhe

– Mate-me mas primeiro sente-se ao meu colo um bocadinho

e sentou-se de pistola na mão, e depois abraçou-me, e depois desatou a chorar porque a vida não é verdade, porque a vida senhor doutor, porque a vida, porque a vida, porque a vida, o enfermeiro pegou na pistola

– Isto tem mesmo balas sabia?

comigo cheínho de vontade de chorar por ele também. Meu Deus o que as pessoas sofrem, somos todos tão frágeis, tão à mercê de tudo, estamos tantas vezes tão infinitamente sós. No Hospital Miguel Bombarda, onde o professor Miguel Bombarda foi assassinado a tiro, ele, agonizante, impediu que matassem o seu assassino ordenando

– Deixem-no, é um pobre

e, de facto, somos todos tão pobres, estamos todos, tantas vezes, tão sós. Felizmente resta a esperança que as paredes, mesmo apesar de andarem há horas nisto, nos coloquem a palma no joelho e garantam, numa ternura que nos anima de novo

– Descanse que daqui a nada elas conversam consigo.



António Lobo Antunes





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