Faço uma linha a meio do corpo, como num
tratado de tordesilhas, para dividir o que me
pertence e o que apenas pertence ao espelho
que te reflecte, quando passas a meio do quarto,
e de um lado és presente e material aos
meus olhos, e do outro lado és só imagem,
como se estivesses a entrar numa espécie de
realidade em que não existe hoje nem ontem,
mas apenas a beleza que dura para além do
tempo e das circunstâncias em que te vejo.
É um tratado que faço entre mim e mim para
te dividir, e saber que este corpo que hoje
possuo logo deixará de me pertencer quando
o deitar no poema, como alguma vénus de
rubens ou banhista de renoir, envoltas
em véus ou em arbustos, à luz das velas ou
do sol. E sinto o que tenho quando te perco,
e o teu corpo se imprime para lá dessa linha
abstracta que te separa de ti própria, quando
em ti se juntam a realidade e o seu reflexo.
Mas se tiro da tua frente esse espelho, é
dentro de mim que tu te reflectes, e sou eu
o espelho em que entras para deixares de
fazer parte de mim, e seres quem aqui vive,
e para sempre respira neste último verso.
Nuno Júdice
in, Formulas de Uma Luz Inexplicável
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