olho o lago
e o corpo da lua
esquece que já foi amarelo
deita-se devagar
sobre o que é água
sobre o que é gelo.
olho o lago
adagas prendem o meu olhar
lágrimas
pássaros e lobos.
mas este é o meu voo
é meu estre uivo
escuto as vozes:
da magrugada
do medo
do mármore.
reencontro o vazio
de ser assim
ardor e poço
mansidão e rebeldia.
dentro eu sei
o voo que afinal queria.
repito o mantra
que combate a inércia:
«amanhã é
outro dia;
hoje falta pouco
para amanhã.»
sigo a sombra lunar
deixo nuas as mãos
que acariciam os olhos
e atravessam a noite.
há música.
a harpa.
o corpo quente.
eu queria um corpo em folha
outras dores, outros fantasmas
talvez mesmo
uma outra coleção de vozes.
mas sou este
em busca da maresia
cercado entre a raiz da prosa
e o que sucede pela poesia;
este corpo ambulante
entre luar e lago
entre gelo e luz
com palavras que me cercam
e se devolvem à minha pele.
como a primeira casa.
aos fantasmas peço silêncio.
visto o espelho
perco-me de vista.
não sei voltar a ler as margens.
preparo os pés; arrumo as sandálias
levanto a âncora
está preparada a canoa.
espera-me o lago, tão
perto da lua;
espera-me a madrugada, tão
perto de mim.
grito para experimentar
a ausência do eco:
era esta a vastidão que ansiava.
dois remos.
a travessia anunciada.
este lago há-de salvar-me
por um par de horas.
olho o corpo invisível da lua.
na lágrima,
um louco a benzer faróis.
desço o poço.
tenho os pés submersos
no sal que a canoa acolhe.
queria poder regressar
a uma espécie de casa.
eu não sou o voo
que afinal seria.
retorno à margem.
é azul-bruma o fio
onde estendo palavras
que hão de evaporar.
dormem longe
os pássaros e os lobos.
o meu labirinto inacabado
faz-se de um sal que não cessa.
diluiu-se o mármore
mas voltará.
perdi a fronteira que
havia traçado
entre medo e madrugada.
estão vivos os fantasmas
aprenderam a uivar.
preparo os pés.
reinicio a caminhada.
carrego na mão a âncora
que me macera o tornozelo.
evaporaram-se as palaras.
está nu o meu estendal.
respiro. espero.
oxalá os pássaros saibam
o caminho de volta até mim.
ONDJAKI
in, HÁ GENTE EM CASA
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