terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Dádiva







“Fala-nos da dádiva.” 

 E ele respondeu:

 “Vós pouco dais quando dais de vossas posses. 
 É quando dais de vós próprios que realmente dais. 

 Pois, 
o que são vossas posses 
senão coisas que guardais 
por medo de precisardes delas amanhã? 

 E amanhã, 
que trará o amanhã 
ao cão ultraprudente 
que enterra ossos na areia movediça 
enquanto segue os peregrinos para a cidade santa? 

 E o que é o medo da necessidade 
senão a própria necessidade? 

 Não é vosso medo da sede, 
quando vosso poço está cheio, 
a sede insaciável? 

 Há os que dão pouco do muito que possuem, 
e fazem-no para serem elogiados, 
e seu desejo secreto desvaloriza suas dádivas. 

 E há os que têm pouco e dão-no integralmente. 
 Esses confiam na vida e na generosidade da vida, 
e seus cofres nunca se esvaziam. 

 E há os que dão com alegria, 
e essa alegria é já a sua recompensa. 

 E há os que dão com pena, 
e essa pena é o seu batismo. 

 E há os que dão sem sentir pena 
nem buscar alegria nem pensar na virtude: 
 Dão como, no vale, o mirto espalha sua fragrância no espaço. 

 Pelas mãos de tais pessoas, Deus fala; 
e através de seus olhos Ele sorri para o mundo. 

 É belo dar quando solicitado; 
é mais belo, porém, 
dar sem ser solicitado, 
por haver apenas compreendido; 

 E para os generosos, 
procurar quem recebe 
é uma alegria maior ainda que a de dar. 

 E existe alguma coisa que possais guardar? 
 Tudo o que possuís será um dia dado. 

 Dai agora, 
portanto, 
para que a época da dádiva seja vossa 
e não de vossos herdeiros. 

 Dizeis muitas vezes: 
“Eu daria, mas somente a quem merece”. 

 As árvores de vossos pomares não falam assim, 
nem os rebanhos de vossos pastos. 
 Dão para continuar a viver, 
pois reter é perecer. 

 Certamente, 
quem é digno de receber seus dias e suas noites 
é digno de receber de vós tudo o mais. 

 E quem mereceu beber do oceano da vida, 
merece encher sua taça em vosso pequeno córrego. 

 E que mérito maior haverá 
do que aquele que reside na coragem e na confiança, 
mais ainda, 
na caridade de receber? 

 E quem sois vós 
para que os homens devam expor o seu íntimo
 e desnudar seu orgulho 
a fim de que possais ver seu mérito despido 
e seu amor-próprio rebaixado? 

 Procurai ver, 
primeiro, 
se mereceis ser doadores e instrumentos do dom. 
 Pois, na verdade, 
é a vida que dá à vida, 
enquanto vós, 
que vos julgais doadores, 
são meras testemunhas. 

 E vós que recebeis – e vós todos recebeis – não 
assumais encargo de gratidão 
a fim de não pordes um jugo 
sobre vós e vossos benfeitores. 
 Antes, erguei-vos, 
junto com eles, 
sobre asas feitas de suas dádivas; 
 Pois se ficardes demasiadamente preocupados com vossas dívidas, 
estareis duvidando da generosidade 
daquele que tem a terra liberal por mãe 
e Deus por pai.”


Khalil Gibran
in, O Profeta



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