À MARGEM DE MIM
NÃO HÁ HERÓIS
Digo-te do meu passado porque do futuro não sei.
Sou do tempo em que não havia heróis.
E eu também não o sou.
O escuro continua a ser ele mesmo.
Com tudo. Todas as sombras. Todos os mistérios. Todos os medos.
Vejo-me deitado. Na minha cama.
Com a porta aberta, a cabeça coberta e a luz acesa.
Para os afastar. A eles. Aos (meus) medos.
Mas sabes, eu sabia que eles não iam embora.
Eu sabia que continuavam lá.
Todos. Escondidos na luz. À minha espera.
Porque eu nunca fui um herói.
Fui sempre só um somatório de medos.
Todos os medos. Na luz.
Cheio de sombras escondidas.
Depois tu.
O ter de crescer para ti.
O ter de ser forte para ti.
E contigo fui-os esquecendo.
Arrumados. Em gavetas.
Mas sabes, hoje tenho ainda os medos.
E para além deles, um medo maior.
O medo de chegar e já não seres tu.
O medo que me esqueças.
Porque é tanto o que já esqueceste.
O pano em cima da mesa.
Os medicamentos na caixa.
O almoço.
As horas.
Até de ti.
Só resto eu. E tenho medo.
E agora não adianta cobrir a cabeça, abrir a porta, nem acender a luz.
Não resulta.
Não funciona com este medo.
Embora acenda a luz por diversas vezes - para ver se estás.
Embora deixe a porta aberta - para poderes circular.
Embora cubra por vezes a cabeça - para ficar mais junto a ti.
Um dia (breve) sei que serei eu.
Sei que irei chegar e já não irás estar.
Não vais ser mais tu.
Não irei ser mais eu para ti.
E eu, que não sou um herói.
Que sou apenas um somatório de medos, a saltar das gavetas.
Eu não sei.
Como vou conseguir viver, sem mim, em ti.
Filipe Paixão
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